Sociologia na Pandemia 9#

 

Fazer morrer e deixar morrer: efeitos da Covid-19 e da estupidez nas periferias

 

Por Luana Motta e Gabriel Feltran

 

Desde o anúncio dos primeiros casos de contaminação por Covid-19 no Brasil, em fevereiro de 2020, a desigualdade passou a ser tema recorrente no debate público. A ideia de que estamos todos expostos ao vírus por sermos todos seres humanos não encontra correspondência na realidade; há certos corpos mais expostos tanto à contaminação quanto aos efeitos políticos, sociais, econômicos e sanitários do vírus, bem como da pandemia. 

Acadêmicos, epidemiologistas, médicos, químicos, microbiologistas, economistas e cientistas sociais, mas também matérias jornalísticas e nas redes de movimentos sociais e ONGs de periferias, já alertavam e debatiam como os efeitos do vírus se distribuiria desigualmente. As preocupações iam desde a ausência de pesquisas sobre o comportamento do vírus em ambientes como as favelas, ou a falta de modelos estatísticos e epidemiológicos para prever como a pandemia poderia se desenvolver nesses territórios, até o silêncio dos governos sobre planos e estratégias específicos para essas localidades. Ressaltava-se os problemas de infra-estrutura urbana pré-existentes, que poderiam agravar o cenário. 

Ainda que num primeiro momento a incidência dos casos tenha se concentrado em territórios e sujeitos mais ricos, já sabíamos que seus efeitos, com o desenrolar da pandemia, seriam mais intensos e letais entre os mais pobres; que a desigualdade inicial do alastrar do vírus se inverteria. Talvez a notícia que marca esta inversão tenha sido aquela da primeira morte por Covid-19 no Rio de Janeiro, a de uma empregada doméstica que se contaminara através da patroa, que havia chegado da Europa recentemente. Dois meses depois desta morte, já está evidente que as periferias urbanas têm experimentado a pior face da pandemia.

Em projeto piloto na cidade de São Paulo, pesquisadores, em conjunto com o IBOPE e o Laboratório Fleury, coletaram amostras de sangue de uma amostra de 520 pessoas, em seis distritos da capital paulista, investigando a existência de anticorpos para o Sars-CoV-2, causador da Covid-19, produzidos dias depois da infecção [1]. Entre os seis distritos escolhidos, três foram escolhidos por terem os maiores números de casos e estarem entre os mais ricos da cidade; os outros três foram incluídos por terem as maiores taxas de mortalidade, distritos dentre os mais pobres da cidade. Um dos resultados indica que onde há mais óbitos, distritos pobres, testa-se muito pouco; ou seja, o número oficial de casos está muito mais subnotificado nas periferias. Nos distritos mais ricos testa-se mais e oferece-se muito melhor tratamento. Os resultados da pesquisa confirmam os dados oficiais: no que tange à distribuição territorial dos óbitos, as mortes por coronavírus na cidade de São Paulo são sensivelmente mais altas nas periferias, em especial em áreas de cortiços, favelas e conjuntos habitacionais [2]. 

Tragédia anunciada: em São Paulo, morre-se hoje, ao menos, 10 vezes mais de Covid-19 nas periferias do que em bairros centrais da cidade, da elite e das classes médias. As razões dessa tragédia são diversas. Muitos moradores de periferias são trabalhadores e continuam realizando suas atividades laborais, não têm a opção de cumprir a quarentena. Seus deslocamentos pela cidade são feitos, na maioria dos casos, em transporte público, ambiente em que o risco de contaminação é muito elevado. Além disso, problemas persistentes e já antigos de infraestrutura urbana e serviços essenciais, como o saneamento precário, a intermitência no abastecimento de água, as ruas e vielas estreitas e pouco ventiladas nas favelas, além de residências com muitos moradores, são elementos decisivos para a aceleração da disseminação do vírus. Soma-se a tudo isso o fato de que as periferias, com exceções pontuais, têm serviços de saúde precários, insuficientes ou inexistentes (o que inclui falta de vagas em hospitais, atendimento no tempo adequado, distância dos hospitais ou centros de referência, etc.). Este é o cenário que os mapas e os números produzidos por colegas e jornalistas, ainda que preliminares, têm nos mostrado.

Nosso trabalho de pesquisa tem sido o de entender as periferias, a cidade e o conflito urbano a partir das próprias periferias; partimos do pressuposto de que centro e margem se produzem mutuamente [3]. Essa aposta metodológica e epistemológica, de um olhar relacional para o que existe nas periferias, para o que elas são, e não para o que elas ainda não seriam, é profícua também para entender a pandemia. Os relatos de nossos interlocutores e amigos mais próximos nas favelas e bairros pobres de Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, mas também de notícias de redes de ONGs e movimentos sociais comunitários, são de que os problemas nesses territórios não se encerram nas elevadas taxas contaminação e mortalidade por coronavírus [4]. 

A fome está de volta às favelas. Pesquisa recente do CEBRAP demonstra que um dos problemas mais recorrentemente mencionados por líderes comunitários é a falta de alimentos. Desemprego crescente, trabalhos ainda mais precários e cortes nos salários têm atingido em cheio as quebradas. A tudo isso se soma a dificuldade de acesso – por razões técnicas ou por desinformação – ao “auxílio” de R$ 600,00 do governo federal. Alguns são considerados não aptos a receberem, outros enfrentam problemas com a liberação do benefício, outros tantos estão com “erros” em seus cadastros.  

Frente a este duro cenário, nos chegam notícias de mobilizações de vários tipos. O “nós por nós” das favelas nunca pareceu tão evidente. À arrecadação de roupas, cobertores, alimentos e produtos de higiene pessoal, somam-se distribuição de máscaras e álcool em gel, medicamentos e mesmo elaboração de estratégias comunitárias de comunicação em saúde, com brigadas coordenadas centralmente. As organizações de base e as estratégias de Saúde da Família do SUS são, novamente, vitais seja para distribuir esses recursos arrecadados, seja para cadastrar as famílias mais necessitadas. A criação de comissões de acompanhamento de parcelas do território, registros dos casos (confirmados e/ou suspeitos), registros de mortos pela Covid-19 também contam com igrejas e associações de base. Também as iniciativas do mundo do crime têm aparecido, mesmo que de modo muito fragmentado. Circulam notícias de toques de recolher, regras específicas para circulação de pessoas nas comunidades e, em alguns casos, de obrigatoriedade do uso de máscaras. De modo mais tímido, também temos visto ações de igrejas evangélicas e católicas de assistência, distribuição de alimentos, produtos de higiene pessoal, etc. 

Ainda que revelem a presença de distintas instâncias normativas legítimas nas periferias, essas são ações de mitigação, que incidem sobre as condições básicas e mais urgentes de vida. Moradores, associações, movimentos socais, mundo do crime ou igrejas não têm a capacidade de incidir sobre o atual problema de saúde pública, nem sobre a tragédia da coordenação dessas ações no plano federal. Não conseguem conter a expansão da contaminação e, muito menos, evitar as elevadas taxas de mortalidade. Não se pode fazer muito apenas no plano local, frente a uma pandemia. 

Imaginemos que tivéssemos um estadista no governo, com um primeiro escalão de ministros da mais alta capacidade técnica e política. Imaginemos que, no mês de fevereiro, esses atores se reunissem com seus estrategistas e montassem um plano unívoco de prevenção do vírus, que não estava em território nacional exceto por dois casos, já isolados. Sonhemos que o ministério da saúde fosse ocupado por alguém que conhece o SUS e sua incrível capilaridade, bem como capacidade de coordenação. Que esse ministério liderasse os colegas para que escolas, CRAS, CREAS, CAPs e outros equipamentos públicos, munidos de uma estratégia única entre governo central, estados e municípios, tivesse prevenido a chegada do vírus no Brasil e, no caso de contaminação comunitária, estabelecesse regras rígidas, junto da segurança pública, para que ela fosse minimizada imediatamente. Nesse caso, estaríamos agora relaxando nossas medidas de isolamento, como faz atualmente a Alemanha. Assim, entende-se que não há ausência de Estado nas periferias e favelas brasileiras. Há profunda ausência de coordenação e responsabilidade e há precariedade de determinados serviços públicos nesses territórios, sem dúvida. 

Mas os efeitos da presença estatal inconsequente é assassina, nesses territórios. Não bastasse a pandemia, operações policiais voltam a acontecer e a matar jovens pobres e negros, os operadores mais baixos dos mercados ilegais, nos territórios que estudamos. No momento em que o Presidente da República afirma que os brasileiros estão acostumados a nadar em córregos de águas contaminadas, sem que nenhum problema aconteça, lembramo-nos de que a expectativa de vida nos distritos periféricos de São Paulo é de 55 anos de idade, enquanto nos Jardins, na mesma cidade, têm-se a expectativa média de viver 80 anos.  É presença estatal, ainda, o anúncio de que O Governo Federal estuda utilizar navios para isolar e tratar pessoas de baixa renda infectadas com a doença que não necessitem ficar na UTI. A solução […] é considerada promissora para o caso do Rio de Janeiro, estado com […] uma população de cerca de 1,5 milhão vivendo em centenas de comunidades” [5].

Sim, pressupõe-se novamente que as favelas, contaminadas pelas elites, podem produzir um efeito rebote. Melhor isolar essa gente em navios, quem sabe seja até melhor lançar esse pessoal em alto mar. Depois de alguns anos lidando com as notícias diárias, não parece difícil notar que há sim um projeto político estatal em curso, com foco nas periferias. Não há ausência estatal. Ainda que a pandemia escancare e agudize a desigualdade, a pobreza, a falta de acesso a serviços públicos e direitos básicos, o acúmulo do debate da sociologia urbana brasileira nos indica que o que vem pela frente será ainda pior. 

A plausibilidade de consentirmos com essa realidade parece ter como base de sustentação uma nova figuração das resoluções do conflito urbano. Se nas últimas três décadas, o conflito urbano teve seu cerne radicalmente deslocado do problema da integração das classes trabalhadoras para a questão da violência que emanaria desses espaços, a pandemia é uma oportunidade.  

Essa nova figuração do conflito urbano brasileiro nos parece ser um elemento decisivo para compreendermos o que tem se passado nas periferias, em tempos de pandemia. Ao longo dos anos 2000 muito se discutiu no Brasil sobre a idéia foucaltiana de que, na modernidade e com o advento do biopoder, a governamentalidade tratar-se-ia de fazer viver e deixar morrer. Especialmente nos últimos anos, em que temos assistido ao crescimento da letalidade policial e ao agravamento das condições de pobreza nas periferias, nós que estudamos esses espaços e vidas marginais temos nos perguntado se estas ideias ainda valem, politica ou analiticamente. A pandemia parece nos indicar que o cenário é ainda mais grave. Há algumas semanas noticiou-se que o Governo Federal solicitou à empresa privada que controla a distribuição da transferência de renda, que evitasse quem tem parentes na cadeia [6]. Se não há mais horizonte de integração universal e se a alteridade se radicaliza, sobretudo frente aqueles considerados sem recuperação, é hora de resolver o assunto: fazer morrer os bandidos, como de costume, e deixar morrer a massa daqueles que não foram atletas. “E daí?”

 

Luana Motta é professora do Departamento de Sociologia da UFSCar.

Gabriel Feltran é professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

 

Notas

[1] Para uma síntese dos achados da pesquisa ver episódio 15 do Podcast Luz no Fim da Quarentena, em https://piaui.folha.uol.com.br/radio-piaui/luz-no-fim-da-quarentena/

[2]https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/04/bairros-com-maior-numero-de-mortes-por-coronavirus-em-sp-concentram-favelas-e-conjuntos-habitacionais.ghtml

[3] DAS, V.; POOLE, D. (eds.). Anthropology in the margins of the state. Santa Fé: School of American Research Press, 2004, p. 225-252.

[4] Nessa mesma direção, pesquisa da Rede de Pesquisa Solidária, indica problemas decorrentes da pandemia que não se encerram na doença em si. Ver https://redepesquisasolidaria.org/wp-content/uploads/2020/05/boletim-7-pps.pdf

[5] https://www.agazeta.com.br/brasil/morador-de-favelas-brasileiras-infectados-com-coronavirus-podem-ir-para-navios-0320

[6]https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/05/14/governo-nega-auxilio-emergencial-para-parentes-de-presos.htm