Sociologia na Pandemia #8
A utilidade das palavras
Por Jorge Leite Jr.
Vamos salvar o pensamento
De alianças com carrascos
E casamentos com carrancas
Que na voz que o mundo te arranca
Vale é o tanto quanto lavras
A utilidade das palavras
Nei Lisboa
Atualmente, para se caracterizar a pandemia causada pela dispersão global do novo coronavírus SARS–CoV-2 (causador da doença chamada COVID–19), tanto na ciência quanto na mídia, o termo “peste” não é utilizado. Isso mostra um avanço civilizatório. Afinal, a linguagem não é apenas um instrumento para descrever o mundo, mas também para criá-lo.
Herdeiro de uma visão religiosa e derivado da lógica das “pragas” enviadas por um deus, o termo peste evoca a noção de uma doença genérica decorrente de um castigo divino; é um tipo de punição pelo desrespeito ou teimosia humana frente às ordens de uma poderosa entidade sobrenatural e que atinge toda uma população (Delumeau, 1993). Por seu caráter místico, a palavra peste carrega em si a violência de uma vingança desmedida e o sofrimento de uma condenação. Não foi por acaso que, no início da AIDS na década de 80 do século XX, ela foi chamada de “peste gay”, por certos grupos religiosos (Duby, 1999).
Além disso, “peste” também supõe algo que se determina no plano divino e que, depois de decidido, torna-se tanto inevitável de acontecer quanto impossível de parar. Assim, a peste é um acontecimento que deixa o ser humano sem ter como se proteger. É por isso que durante o processo de mudança epistemológica que moldou a ciência moderna, o termo peste foi gradualmente substituído por endemia, epidemia ou pandemia de acordo com sua localização, duração e/ou alcance. Ocorre então a alteração da visão de um castigo coletivo e inevitável, para um problema público teoricamente previsível, evitável e tratável. A morte coletiva deixa de ser vista como um destino e passa a ser encarada como um desafio sanitário e populacional que pode ser superado.
Apesar desta mudança importante nos campos epistemológico e linguístico, que tem como pressuposto a noção de agência humana com sua capacidade de prever e atuar antes e depois de uma crise gerada por agentes patógenos, isso não significa que outros elementos das dinâmicas sociais estejam excluídos de interferir nos modelos de saúde pública. Assim, diversos interesses políticos, econômicos e culturais influenciam nas decisões que os países irão tomar em relação a seus sistema de saúde, tanto na prevenção de doenças e promoção da saúde quanto no atendimento terapêutico de sua população. Em livro de 2005, ao refletir sobre a gripe aviária (nome popular da doença pandêmica que nesse mesmo período atingiu especialmente – mas não apenas – países asiáticos), o sociólogo Mike Davis afirma:
A concordância científica em relação ao eminente perigo de uma pandemia de gripe aviária é quase tão ampla e abrangente quanto o consenso de que os seres humanos são os grandes responsáveis pelo aquecimento global. Todas as organizações responsáveis pela saúde mundial, inclusive a OMS e os CDC, tem alertado que o próximo furacão viral pode ser ainda mais letal do que a pandemia de 1918 (Davis, 2006; p.187).
Conforme o comentário de Davis, podemos concluir que não há absolutamente nada de inesperado ou repentino na atual pandemia. Diferente da lógica da peste, a covid-19 não é consequência de um destino inevitável; tampouco a negligência na testagem, a escassez de leitos hospitalares e as mortes por falta de atendimento ou equipamento (no sistema de saúde público ou privado) são situações imprevisíveis ou inusitadas e, por isso, fora de qualquer possibilidade de planejamento a curto, médio ou longo prazo.
Da mesma forma, a crise sanitária que o Brasil vive é fruto tanto de escolhas políticas que não apenas visam sucatear a saúde pública, quanto de um Estado que nunca se interessou em investir o necessário naquele que é um dos mais importantes programas de democratização e inclusão em nosso país: o Sistema Único de Saúde. O SUS, o maior projeto de atendimento universal, integral e equitativo do mundo, é o resultado de um plano político democrático e inclusivo; o seu subfinanciamento e desmonte, é o resultado de outro plano político, desdemocratizante, subserviente a interesses do mercado e investidor no desmantelo da estrutura estatal de seguridade social. Se o termo peste não é mais usado hoje em dia, ainda assim a ideia de destino e inevitabilidade das mortes parece estar presente nas falas do atual presidente e seus subordinados quando afirmam: “É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”; “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” [2]; “Na humanidade, não para de morrer (…) Sempre houve tortura” [3]; “É inevitável” [4] – usadas como justificativas para naturalizar o descaso intencional e genocida de seu governo.
Mas se algumas palavras deixam de ser usadas (e, por isso mesmo, as concepções de mundo a elas associadas perdem validade), certas metáforas se mantém de forma persistente. É o caso da guerra. A metáfora da guerra em si não é boa nem ruim. Em certos momentos históricos pode ser extremamente útil e até necessária. Mas na área da saúde, ela com certeza não deve ser o referencial que orienta as ações voltadas à prevenção, proteção e cuidado de vidas em situações de vulnerabilidade social e física. A ensaísta norte-americana Susan Sontag já havia apontado em 1978 (no livro “A doença como metáfora”, em que discute a tuberculose e o câncer), e depois novamente em 1988 (em “AIDS e suas metáforas”), a inutilidade terapêutica e a agressividade da linguagem ao se pensar e descrever enfermidades e tratamentos médicos como se fossem um conflito militar. Desde então esta crítica é repetida, especialmente nos tempos atuais (Sexuality, 2020), de maneira totalmente inócua. O processo médico de prevenir e curar doenças não é uma guerra ou como uma guerra.
Apesar da urgência da resposta, da necessidade de uma logística e organização próprias, do esforço de profissionais treinados para um fim específico e do enorme sofrimento coletivo comum a ambos, crise sanitária e guerra[5] são coisas distintas em pressupostos, métodos e objetivos. Termos como “combate”[6], “front”[7], “inimigo”[8], “alvo”[9], “recrutas”[10], “soldados”[11], “campo de batalha”[12] (ou mesmo “orçamento de guerra”)[13], acompanham uma lógica na qual a violência é não apenas legitimada e tomada como necessária, mas também a dor e a morte são relativizadas e naturalizadas[14]. A linguagem bélica dá uma intenção racional ao vírus e divide as pessoas entre um lado “a favor” e outro “contra”. Se no Brasil existe alguém que está ativamente contra os esforços para o enfrentamento à doença, esse alguém com certeza não é o vírus.
A guerra é um comportamento consciente e intencional do ser humano (e não de microrganismos) e é feita pressupondo o inimigo como um ser capaz de pensar e agir estrategicamente. Vírus não pensam, não planejam ataques nem discutem táticas de invasão. O coronavírus não é um guerreiro, um militar ou um estrategista, apesar da letalidade em comum. Da mesma forma, médicos e operadores da saúde não são soldados, especialmente em relação ao tema da morte: agentes de saúde salvam vidas acima de todo e qualquer ideal político, e não as tiram em nome desses ideais. O objetivo último de uma guerra (mesmo de defesa) não é salvar vidas, e o de uma emergência sanitária como a que estamos vivendo, sim. A atenção primária em saúde não é a mesma coisa que o front de um campo de batalha, pois seus procedimentos e objetivos são distintos e opostos.
A acusação de agentes patogênicos serem criados em laboratório, a nacionalização do vírus e a linguagem xenófoba da guerra seguem a mesma lógica: a da agressividade militar contra um Outro. O princípio do combate bélico estimula comportamentos agressivos e diminuição da empatia geral – e não apenas pelo inimigo. Ele fragiliza a democracia por sua lógica de exceção, ao mesmo tempo em que visa diminuir a capacidade crítica da sociedade em relação aos líderes políticos que conduzem o conflito, ofuscando os esforços conjuntos para além dos interesses nacionalistas e/ou de mercado. Além disso, o embate marcial é baseado em uma ideal de masculinidade tradicional, que despreza e subjuga tudo aquilo que é associado ao feminino, inclusive os “cuidados” – a área central de enfrentamento a uma pandemia.
Neste momento de emergência sanitária, é importante atuarmos como cidadãos e cidadãs com foco nas ações de prevenção e cuidado. Temos que pensar em termos de atenção e assistência, não em termos de conflito – mesmo porque, afirmar que estamos em guerra pode ser algo muito cruel e insensível para com a populações do planeta que realmente estão em guerra.
Se a metáfora e a linguagem militar estão sendo usadas em vários países do mundo, isso diz menos sobre a seriedade e eficiência no enfrentamento global à pandemia e mais sobre a hierarquização das prioridades e a preparação local para o uso de tecnologias militares/policialescas de controle social. Embasada na concepção de inimigo a ser exterminado, a militarização da saúde pode facilmente transformar o combate à doença no combate ao doente (Pimenta, 2018). Da mesma forma, o chamado à adesão coletiva aos métodos de prevenção e proteção ao coronavírus pode se tornar uma convocação dos mecanismos de Estado para culpabilização dos sujeitos.
Mas a mudança de terminologia/pensamento parece ser algo extremamente difícil em nosso país. Mesmo o importantíssimo evento organizado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)[15], foi uma marcha pela ciência. Ainda que o termo “marcha” não esteja unicamente associado ao universo militar, sua origem e o atual momento histórico brasileiro se encarregam de fazer tal relação. Este evento – afirmo: fundamental – não poderia ter sido uma “caminhada”, uma “jornada” ou até mesmo uma “passeata”? Confesso que fiquei incomodado com a ideia de cientistas marchando.
Nas últimas semanas, houve o aumento expressivo de militares nos cargos estratégicos do SUS. Independente da competência dessas pessoas, a questão levantada é: por que, especialmente nesse momento, tais cargos não foram preenchidos por profissionais da saúde? O Brasil possui um quadro técnico reconhecido internacionalmente e que já há décadas trabalha justamente em questões de saúde coletiva, gerenciamento e logística do SUS e afins. A única explicação para que tais pessoas não sejam nem cogitadas aos cargos-chave ou para o assumir o próprio Ministério da Saúde é a esperança por parte do atual governo, da eliminação de uma parcela da sociedade, especialmente aquela mais vulnerável ao vírus: pobres, deficientes, idosos, desempregados, moradores de periferia – justamente aqueles que há tempos são considerados um fardo à Seguridade Social. Estamos vivendo uma emergência (junto a uma crise) de saúde pública por causa do desmantelamento programático tanto na Seguridade Social (Saúde, Assistência Social e Previdência) quanto na Educação e Cultura – e esse problema não foi criado por um vírus.
O sistema de saúde de uma sociedade, materialização mais completa da biopolítica, nas mãos de um governo proto-fascista, torna-se a expressão oficial da necropolítica. O Estado brasileiro em seu viés genocida, que historicamente investe no extermínio das populações negras e periféricas – tendo como instrumento ironicamente cruel a chamada “segurança” pública –, no atual governo usa o próprio Ministério da Saúde para abandonar a população à própria sorte. O desleixo na testagem, a subnotificação dos casos de pessoas infectadas e mortas, a cada vez mais escassa e escondida divulgação do número de óbitos no site do MS e a coação para o uso de um medicamento cuja eficácia não tem comprovação científica (podendo inclusive ser prejudicial aos doentes), são exemplos disso.
A militarização da saúde no Brasil é decorrente do projeto maior de um governo autoritário que idealiza as forças armadas, idolatra torturadores e aparelha ideologicamente o Estado, já contando com 54% dos ministérios ocupados por militares. A relativa tranquilidade com que esta situação é aceita por parte da sociedade talvez decorra também da consequência lógica de pensar que, se estamos em guerra, nada mais óbvio do que ter generais e militares no comando do Ministério da Saúde. O Brasil não precisa de militares no poder – nem na política institucional, nem na linguagem de enfrentamento a pandemia.
Conforme o vocabulário político/moral contemporâneo, vivemos simultaneamente uma “guerra às drogas”, “guerra ao terrorismo”, “guerra ao crime”, além de uma “batalha espiritual” – segundo alguns grupos religiosos – e, agora, uma “guerra ao vírus”. Já não temos guerras e conflitos o suficiente? Sendo assim, não custa, relembrar Sontag (1989: p. 111): “Não estamos sendo invadidos. O corpo não é um campo de batalha. Os doentes não são baixas inevitáveis, nem tampouco são inimigos. Nós — a medicina, a sociedade — não estamos autorizados a combater por todo e qualquer meio.” Se a linguagem for pensada como um campo em disputa, ao invés de um campo de batalha, podemos abandonar a metáfora da guerra assim como abandonamos o termo “peste”. Quem sabe então, as imagens e palavras usadas sejam mais úteis não apenas para descrever, mas para criar uma sociabilidade em que possamos pensar e agir em termos de coletivismo, cooperação e ajuda.
Jorge Leite Jr. é professor do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal de São Carlos (DS/ PPGS/ PPGLit – UFSCar)
Notas
[1] O título deste boletim é retirado da música homônima lançada em 2001 pelo cantor e compositor gaúcho Nei Lisboa, cuja terceira estrofe é reproduzida aqui como epígrafe.
[3] https://www.youtube.com/watch?v=v9gLHrP7RNw
[5] https://www.charidy.com/vempraguerra
[7] https://www.sanarmed.com/covid-19-sistema-imune-e-nosso-front-de-guerra-colunistas
[8] http://www.sbac.org.br/blog/2020/04/16/covid-19-conhecendo-o-inimigo/
[9]https://pebmed.com.br/covid-19-estudo-brasileiro-identifica-alvo-potencial-em-grupos-de-risco/
[11] http://www.acm.org.br/nossos-soldados-da-saude-e-a-epidemia-de-coronavirus/
[12]https://oglobo.globo.com/economia/empresas-entram-no-campo-de-batalha-contra-coronavirus-24319464
[13]https://www.camara.leg.br/noticias/659759-congresso-promulga-hoje-pec-do-orcamento-de-guerra/
[14] No Brasil houve até um apresentador popular de TV que pediu ao governo um campo de concentração:
https://www.youtube.com/watch?v=7XIAhM1U6lA
[15] Ocorrido virtualmente no dia 07 de maio de 2020, tendo como mote a defesa da ciência frente a um presidente que declara orgulho de sua ignorância cultural e uma equipe de governo assumidamente anti-intelectual, que usa a própria máquina do Estado para desacreditar e aniquilar a produção científica nacional, especialmente na área de Humanidades.
http://portal.sbpcnet.org.br/marcha-virtual-pela-ciencia/
Bibliografia
DAVIS, Mike. O monstro bate à nossa porta. Rio de Janeiro, Record, 2006.
DUBY, Georges. Ano 1000 Ano 2000 – Na pista de nossos medos. São Paulo, Editora/ Imprensa oficial do Esatdo, Unesp, 1999.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo, Companhia das letras, 1993.
PIMENTA, Denise. “If you suspect a case of Ebola. free call 177”: Ensaio sobre a militarização da saúde em Serra Leoa no período da epidemia de Ebola (2014-2016). Cadernos De Campo, São Paulo, 27(1), 2018, p. 85-117.
SEXUALITY policy watch. COVID-19 e linguagem bélica: compilação crítica (em português, espanhol e inglês), 2020. https://sxpolitics.org/ptbr/covid-19-e-linguagem-belica-compilacao-critica-em-portugues-e-ingles/10443
SONTAG, Susan. AIDS e suas metáforas, São Paulo, Companhia das letras, 1989.