Sociologia na Pandemia #6

 

Trabalhadores rurais. Uma categoria esquecida, embora essencial em tempos de pandemia

Por Maria Aparecida de Moraes Silva

 

Uma leitura atenta das notícias veiculadas pelos diversos meios de comunicação aponta para a ausência de referências sobre os trabalhadores rurais. Num país, considerado o maior produtor de commodities do mundo isto pode causar certa estranheza, num primeiro momento. Na verdade, os trabalhadores rurais são ofuscados, negados pela sociedade mais ampla. Meu intento é contribuir para que esta névoa que os encobre seja retirada para que as pessoas possam enxerga-los como essenciais neste momento da epidemia que nos assola.

Acompanhando as pesquisas produzidas no México (Flores, 2010) com trabalhadores rurais que migram para os EUA para a colheita de vários produtos, sobretudo, frutas e hortaliças, percebo que há muitas similitudes em relação aos migrantes do nordeste e do Vale do Jequitinhonha (MG) que labutam nos canaviais, cafezais, laranjais das terras paulistas. Nos EUA, os migrantes mexicanos, hondurenhos, guatemaltecos são, em muitos casos, considerados ilegais, portanto, tratados como criminosos. No entanto, se há uma maior demanda deles para as áreas de produção agrícola, as porteiras se abrem e os guardas fazem vistas grossas às suas travessias. O importante é não prendê-los, mas vigiá-los e garantir que, finda a colheita, eles sigam a rota do caminho de casa. Tudo ocorre no contexto de um faz-de-conta. Nos tempos do coronavírus, quando as pessoas estão com medo de saírem de seus confinamentos, têm aumentado a procura por estes trabalhadores “ilegais”. O importante é que eles estejam munidos da declaração de alguma empresa assegurando-lhes o trabalho. Tal como antes, o jogo do faz-de-conta e da hipocrisia se repete. 

Nas cidades paulistas rodeadas pelas plantações acima mencionadas, o controle policial também ocorre, com outras nuances. Assim que as safras terminam são também vigiados e obrigados a retornar. Em ambas as situações, trata-se de pessoas discriminadas e negadas. Pessoas que, segundo um processo histórico perverso, foram arrancadas de seus lugares de origem e obrigadas a viver eternamente perambulando de um lugar a outro em busca de trabalho para a garantia da própria sobrevivência e de suas respectivas famílias. Os trabalhadores mexicanos, representados por várias etnias indígenas, além do processo de expropriação realizado por grandes empresas, sofrem as perseguições de grupos paramilitares e do narcotráfico. Em ambos os casos, guardadas as diferenças, são encobertos pelo nevoeiro que os transforma em meras silhuetas vagantes de um lugar a outro.

Ademais das razões estruturais que sustentam a base da concentração da propriedade da terra e da produção, é necessário considerar que, no caso brasileiro, são negros e pardos, em sua maioria, além de indígenas, que colhem maçãs no Rio grande do Sul (Motta, 2019). Não se trata de considerá-los excluídos, bem ao contrário. São incluídos, porém invisibilizados e negados. É uma forma de reduzir o valor de suas forças de trabalho, de negar-lhes os direitos básicos, de submetê-los às condições degradantes de trabalho, de arrancar-lhes a dignidade humana. Nos canaviais paulistas, entre 2003 a 2007, registramos 21 mortes por exaustão. Nos laranjais, ademais do excessivo esforço, são obrigados a conviver com os inseticidas utilizados para o combate das pragas.

 A fim de retirar a névoa que recai sobre os homens e mulheres que labutam na terra, tomarei como exemplos, as mulheres empregadas na colheita da cebola, as que trabalham nas granjas de ovos e nas plantações de laranja. Uma visão naturalizada consideraria tais tarefas como leves, porque desempenhada por mulheres [1]. Bem ao contrário, é o que minhas pesquisas no estado de São Paulo revelam ao acompanhar estas trabalhadoras em vários campos.

No caso da colheita das cebolas, primeiramente, os tratores dirigidos por homens as removem da terra. Em seguida, as mulheres iniciam a segunda fase deste processo que combina o uso de máquinas (conduzidas por homens) e o trabalho manual, executado pelas mulheres. No início da jornada, trabalham agachadas. A tarefa consiste, em, de posse de um estilete, ir retirando os talos maiores da cebola e depositando-as em montes, que, em seguida, serão recolhidos também pelos tratores. Com o passar das horas, além do cansaço, do calor provocado pelas altas temperaturas, elas ficam na posição sentadas sobre a terra. As dores da coluna aumentam, além das mãos, punhos e dedos. Há também muitas queixas relacionadas aos problemas na bexiga e vagina, provavelmente, provocados pela “quentura” da terra, segundo suas palavras. O salário é pago por produção, o que contribui para exigir maior esforço e “ir até onde o corpo aguentar”.

No que se refere á produção de ovos, a situação laboral é a seguinte, tomando o caso de uma granja que produz galinhas poedeiras. Em geral, as granjas comportam milhares de aves. Estão situadas longe dos centros urbanos, em razão dos odores causados pelos excrementos, penas, sangue, restos de ração, inseticidas, medicamentos, vacinas, antibióticos, hormônios, que vão se acumulando durante o período necessário para a produção, segundo avaliação criteriosa dos técnicos e agrônomos. Tais resíduos vão se misturando à serragem do chão da granja.

Sigamos uma destas trabalhadoras, Lourdes (nome fictício).  Logo pela manhã, após vestir-se adequadamente para entrar na granja com roupas esterilizadas para evitar a transmissão de doenças às aves, e receber as instruções dos técnicos sobre as tarefas do dia, ela adentra a granja. No início são os milhares de pintainhos (de apenas três dias de vida) que ali estão. É um momento em que o emprego das mulheres é mais justificado pelas qualidades naturalizadas, tais como, afeição, cuidado. Segundo Lourdes, os pintainhos não estão com as mães, por isso, é necessário trata-los com muito carinho, dar-lhes proteção, regular bem a temperatura para aquecê-los. São frágeis. Ela mesma afirma que os homens são brutos e chegam até mesmo a chutá-los, porque eles se enervam com os piados constantes. É o momento do exercício da maternagem. Ela passa a considera-los como seus filhos. À medida que vão crescendo, ela se encarrega de vaciná-los, cortar seus bicos para que eles não se firam uns aos outros. Após alguns meses, há a seleção das fêmeas que serão poedeiras. Segundo o relato de Lourdes, este é um período difícil porque as galinhas ficam no escuro durante cinco meses, não podendo ganhar muito peso, portanto, comem pouco, o que aumenta o estresse. Muitas chegam até a comer umas às outras. Há ainda outra informação. No período menstrual, as mulheres não podem adentrar a granja. Segundo Lourdes, as galinhas sentem o cheiro do sangue e, nestes casos, elas voam em conjunto sobre elas, podendo, até mesmo, feri-las.

Na granja onde Lourdes trabalha são oito mil aves. Assim que adentra a granja, as galinhas se desesperam e vêm em sua direção em busca da comida. Apenas um facho de luz muito fraca no fundo da granja lhe serve como guia. Esta tarefa se repete diariamente. Após os cinco meses no escuro, as galinhas estão prontas para botar ovos, incessantemente, até que, já esgotadas, são encaminhadas ao abate. Quanto a Lourdes, ela, em seguida à saída do “lote”, ao lado dos demais trabalhadores, é destinada à limpeza da granja. Todo o material orgânico e inorgânico acumulado é removido e vendido como fertilizantes (cama de frango) [2]. Em seguida, outro “lote” de pintainhos chega à granja e o processo se reinicia. Segundo Lourdes, o pior é o mau cheiro, que fica impregnado no corpo, causando muitas dores de cabeça, vômitos e inapetência. Ainda: o sofrimento das galinhas. Elas “choram”. Para ela, é impossível ficar alheia a isso. Por esta razão, jamais consome ovos ou carnes de aves produzidos em granjas.

A descrição das duas tarefas laborais revela a violência embutida tanto em relação às trabalhadoras, quanto em relação às aves. O estado de São Paulo é um dos maiores produtores de ovos do País. A invisibilidade prevalecente em relação aos/às trabalhadores/as rurais é causada por inúmeros fatores. O mais importante deles se reporta à ideologia do chamado agronegócio, setor responsável por 25% do PIB do país. Trata-se de um setor modernizado, com emprego de tecnologias avançadas, resultantes de um significativo avanço científico, com taxas de produtividade cada vez mais crescentes. Esta é a face visível, a que os meios de comunicação exibem em seus diferentes programas de marketing. No entanto, a outra face, a do trabalho, é ofuscada. 

Quanto à colheita da laranja, a situação é a seguinte. A jornada de trabalho inicia-se por volta das quatro horas da madrugada, quando preparam o café e também a comida para o almoço na roça, ou eito, como ainda é chamado. Eito é uma palavra da época da escravidão, mas ainda vige, do mesmo modo que feitor. Às seis horas, tomam o ônibus, os RURAIS. Chegando ao eito, as tarefas são distribuídas pelos empreiteiros, ou “turmeiros”, que são os donos dos ônibus e responsáveis por organizar as “turmas” de trabalhadores/as.

Em geral, o trabalho começa por volta das sete horas, com pausa de uma hora, às 11 horas para o almoço. Colher laranja não é uma atividade leve, como se pode pensar. Ao contrário, é um trabalho pesado, além de perigoso. Vejamos no que consiste. A altura da laranjeira pode chegar até oito metros. Portanto, a colheita precisa ser feita com o auxílio de uma escada de três metros de altura, com 15 degraus, chegando a pesar 35 kg. É de ferro, para fixar-se melhor no meio das ramas e também para dar maior estabilidade ao/a colhedor/a. A colheita é feita a partir dos galhos superiores aos inferiores. As frutas nos galhos mais baixos, chamados de saias, exige que a posição seja ajoelhada ou abaixada. À medida que as laranjas vão sendo colhidas, elas são depositadas nos “bags”, sacolas de plástico, com alças que são colocadas em torno do pescoço. É preciso lembrar que há exigência do uso dos EPIs (botas/caneleiras, sapatos especiais, boné-árabe, óculos, luvas, camisas de mangas longas e calças). Quando a capacidade do “bag” se completa, o/a colhedor/a deposita as laranjas em caixas, cujo peso é de 27 kg. O preço pago por cada caixa é R$1,00. Há a imposição de uma quantidade mínima colhida por dia, em torno de 70 caixas, ou seja, no mínimo 1890 kg. Se esta meta (média) não for atingida, o/a trabalhador é dispensado/a. Esta forma de pagamento, por produção, é imposta pelos patrões com a finalidade de auferir maiores ganhos e causar ao empregado a imagem de que quanto maior esforço, maior será seu ganho.

É uma atividade que exige muita habilidade manual, por isso a maior preferência pelas mulheres. Vale dizer ainda que a colheita se faz com as duas mãos simultaneamente, impondo a rotação dos punhos no ato de arranque da fruta, a fim de não causar danos aos galhos. Portanto, há necessidade de se equilibrar no alto da escada, com o peso da sacola ao pescoço. Ademais, há que se movimentar ao redor da planta, deslocando a escada na medida em que as frutas vão sendo colhidas, e recolher no chão ou nas ramas inferiores, na posição agachada ou ajoelhada, como foi dito acima.

O trabalho na colheita da laranja traz muitos males à saúde dos/as trabalhadores/as. Dores nos punhos, em razão dos movimentos repetitivos, desgaste na coluna, causado pelo peso da sacola, acidentes causados por possíveis quedas da escada. O contrato de trabalho é temporário. Com a reforma trabalhista, alguns direitos foram perdidos, dentre eles, o pagamento das horas in itineri, isto é, o tempo gasto até o local de trabalho, nos casos em que não há contrato ou registro em carteira. Outras perdas se reportam ao tempo de contribuição previdenciária. Em se tratando de uma atividade temporária, muitos/as não conseguem a aposentadoria, tendo em vista que a partir dos 50 anos de idade, a capacidade laboral fica extremamente restringida pelo desgaste físico ocorrido durante o tempo de trabalho.

A descrição das três tarefas laborais revela a violência embutida tanto em relação às trabalhadoras, quanto em relação às aves. O estado de São Paulo é um dos maiores produtores de ovos do País. A invisibilidade prevalecente em relação aos/às trabalhadores/as rurais é causada por inúmeros fatores. O mais importante deles se reporta à ideologia do chamado agronegócio, setor responsável por 25% do PIB do país. Trata-se de um setor modernizado, com emprego de tecnologias avançadas, resultantes de um significativo avanço científico, com taxas de produtividade cada vez mais crescentes. Esta é a face visível, a que os meios de comunicação exibem em seus diferentes programas de marketing [3]. 

 No entanto, a outra face, a do trabalho, aquela que produz a gigantesca riqueza, é ofuscada, negada. 

Girando esta moeda, é possível perceber as duas faces que, embora, diferentes, fazem parte do mesmo processo. Esconder, negar quem trabalha no campo é uma maneira de justificar ideologia do agro brasileiro, considerado um dos mais exitosos do mundo. 

Nestes tempos de coranavírus, há um apelo, justificável, para o isolamento social. Os trabalhadores rurais, do mesmo modo que tantos outros urbanos, não podem cumprir esta norma. Eles são essenciais à produção dos alimentos que chegam às nossas mesas. No entanto, além de não serem considerados essenciais, são negados. Resta-nos refletir sobre estas razões. As três descrições acima nos alertam para várias questões: as injustiças sociais, não direitos, não cidadania e também à negação do humano. Do mesmo modo que os “lotes” de aves são descartados, remanejados, abatidos, as pessoas, que labutam na terra são substituídas por outras e ou descartadas quando suas forças físicas “não aguentam mais”. Pior ainda. A sociedade da qual fazem parte, sequer os vê, sequer sabe que existem. Em tempos de coronavírus, alguém se pergunta de que mãos advêm a cebola, a laranja ou os ovos que consomem?

Se os mínimos direitos lhe são negados, como imaginar se estão protegidos por máscaras, luvas e mantendo o distanciamento social?  Deixo ao/à leitor/a faculdade de resposta a esta questão.  

 

Maria Aparecida de Moraes Silva é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar

 

*Algumas ideias deste texto foram publicadas no Boletim da ANPOCS: 

 http://www.anpocs.com/index.php/ciencias-sociais/destaques/2358-boletim-n-43-cientistas-sociais-e-o-coronavirus

 

Notas

[1] Embora haja homens na colheita da laranja, as mulheres são preferidas.

[2] Os resíduos da produção das aves, em razão de sua composição, são utilizados como fertilizantes. No entanto, alguns pecuaristas chegaram a emprega-los como ração para o gado, em razão dos preços baixos. Esta prática, sem dúvida, põe em risco a segurança alimentar da população que consome leite e seus derivados, além da carne. Tal prática, associada à chamada doença da vaca louca, é proibida.

[3] Segundo notícias recentes, a China, maior compradora das commodities brasileiras, planeja aumentar as importações de soja, carnes e ovos, tendo em vista a dizimação de seus rebanhos, causada pela gripe suína, e também como forma de se precaver em casos de recrudescimento da pandemia do novo coronavírus em seu território.  Mais ainda. O gigantismo da produção de commodities tem ocorrido graças à incorporação de terras, particularmente, da Amazônia, por meio da violência contra camponeses e populações indígenas. Assim, além do crime ambiental, por meio de queimadas e a devastação da floresta amazônica, há o genocídio dos povos indígenas, cada vez mais encurralados por grileiros e mineradores. A este respeito, consultar: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/05/desmatamento-da-amazonia-uma-tragedia-anunciada.shtml

 

Referências

FLORES, Sara María Lara (Coord.). Migraciones de trabajo y movilidad territorial. México: Miguel, Angel Porrua, 2010. 

MOTTA, Grasiela da Silva. A cadeia produtiva da maçã: trabalho e empresas no Rio grande do Sul. Tese de doutorado. PPG/ Sociologia e Antropologia, UFRJ, 2019.