Sociologia na Pandemia #4
Estamos todos vivos? Saúde, política e precariedade na pandemia de Covid-19
Por Everton de Oliveira
Nesta semana, o Brasil ultrapassou a marca de mais de 114 mil infectados e 7.900 mortos por conta da pandemia de Covid-19. As campanhas de prevenção e de promoção ao isolamento social defendem, de forma ampla, uma defesa à vida, contra o retorno apressado às atividades rotineiras do período pré-pandemia. Trata-se sobremaneira de uma questão de defesa da vida, de lutar contra mais mortes desnecessárias. Mas isso está longe de ser um lugar comum. Para entendermos a fundo a questão da defesa da vida, temos que encará-la politicamente, colocando-nos as seguintes perguntas: de que vida estamos falando? Que mortes estamos lamentando? E o que buscamos defender? Responder essas questões trará a projeção política que o problema da administração de mortes e vidas humanas implica para o poder público. Da mesma forma, observar qual dessas realidades é mais habilmente administrada pelo governo (a vida ou a morte) trará o entendimento de qual será nosso suporte, e se o teremos, para a reconstrução de nosso cotidiano.
Um dos aspectos que se destaca atualmente para a construção desse entendimento é o quadro generalizado de subnotificações em saúde. Termo recentemente popularizado pela imensa subnotificação dos casos de agravos e mortes por conta da Covid-19 (Gaete, 2020), a subnotificação implica o referenciamento impreciso de doenças e problemas de saúde, sejam eles mais ou menos debilitantes, fatais ou não. Isso implica, basicamente (mas não apenas), um cruzamento de duas fontes distintas de dados: a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID 10), pela qual médicos e profissionais de saúde se orientam para formular seus diagnósticos; e os dados de cartórios de registro civil do país, que embasam seus dados pelos atestados de óbito, feitos pelos profissionais de saúde. A primeira fonte pode ser encontrada no Serviço de Informática do Ministério da Saúde (DATASUS). Quanto à segunda, é de fácil acesso pelo portal da transparência do governo federal.
Quando esses dados são comparados, eles tendem a apresentar o tipo de entendimento que cada governo tem em relação à promoção e ao suporte à vida. Constitucionalmente, no Brasil, isso está assegurado no Capítulo II, do Título VIII da Constituição Federal, que versa sobre a obrigação do Estado em garantir a seguridade social a seus cidadãos. Isso deveria garantir, a toda pessoa brasileira, o direito à saúde, à previdência social e à assistência social. O Sistema Único de Saúde, o SUS, nasceu dessa defesa, preconizando a universalidade, a integralidade e a equidade do atendimento médico, algo inédito no Brasil até 1990! Mas há uma relação fundamental na administração de uma política pública da amplitude do SUS, que perpassa todos os governos do mundo, que é a garantia de dados confiáveis para o direcionamento e o ajuste da política de atendimento à saúde. E aqui está nosso problema. Não porque os sistemas de armazenamento e divulgação de dados não sejam eficientes e funcionais. Mas porque a coleta é sempre multissituada, isto é, dependente de uma série de fatores locais, culturais, institucionais e técnicos particulares a cada região, o que relega ao Ministério da Saúde a tarefa de revisar, ou não, a qualidade dessas notificações. Sua equipe técnica facilmente mapearia a lacuna, comparando as bases de dados, como as acima citadas, além de outras específicas. Quando esse mapeamento não é feito, podemos observar, então, a direção que um governo toma diante da escolha entre vidas e mortes.
Chegamos a um ponto, no atual cenário da pandemia, em que se torna impossível responder à questão título deste texto: estamos todos vivos? Não é possível dizer. O painel de acompanhamento da pandemia do Projeto Covid-19 Brasil, liderado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), estimava, no dia de escrita deste texto (05 de maio), que o total da população infectada no Brasil era três vezes o número oficial anunciado (estando infectadas, portanto, mais de 310 mil pessoas). E, levando-se em conta apenas os dados oficiais, estimava que o número de mortes poderia ultrapassar a casa dos 13 mil por volta do dia 10 de maio (levando-se em conta a notificação dos casos). Considerando apenas o estado com maior número de casos, São Paulo, o número de casos de óbitos por insuficiência respiratória já chega a quase 1.000 a mais que o mesmo período do ano passado, segundo os dados do Portal da Transparência. Segundo o Datasus, em fevereiro de 2020 (último mês processado), havia ocorrido 1.707 óbitos por complicações do aparelho respiratório, o maior número desde 2014. E o número de pessoas mortas em casa dobrou em menos de um mês (Bergamo, 2020). Não é possível dizer com exatidão, nesse contexto, quantas pessoas exatamente já morreram, quantas foram infectadas, e quantas irão ainda falecer, simplesmente por não saber se está, ou não, infectada. É assim que cada um de nós nos tornamos desimportantes no contexto da pandemia. Mas mesmo a desimportância é seletiva.
Um dos filósofos paradigmáticos do século XX, Michel Foucault, tem uma conhecida análise a respeito do que ele chamou de biopolítica. Ele dizia que um governo, para ter o controle real de sua população, precisava preconizar, entre outras coisas, uma precisa identificação e contagem das pessoas que compunham a população, daí a importância da estatística para a gestão estatal. Esse era o primeiro passo para uma administração fina da população, assim como para a manutenção de suas taxas sociais: a manutenção da taxa de habitantes vivos, de produção e circulação de riquezas, da taxa de recolhimento de impostos, das taxas de mortalidade e fecundidade, entre outras. Havia extremos conhecidos da biopolítica, como o racismo, a xenofobia, a homofobia, a misoginia, que resultava em governos totalitários, como o Estado nazista. O totalitarismo europeu buscava “salvar” sua população de um “inimigo” tido como externo, como judeus, islâmicos, hindus, homossexuais, ciganos. A estes restavam o extermínio, a face reversa da biopolítica.
Contudo, no Brasil, os inimigos da nação foram historicamente forjados em sua própria população. Negros, nordestinos, pobres, mulheres, indígenas, quilombolas, sertanejos, trabalhadores rurais (caipiras, meeiros, parceiros, colonos, boias-frias, sem-terra), entre outros. Se aqui existe algo próximo a uma biopolítica, é a despeito de toda uma grande camada populacional que geralmente não importa, para o Estado, se permanece viva, se terá condições para tanto, ou se virá a morrer em um futuro próximo. Outro filósofo paradigmático da atualidade, Achille Mbembe, identificou essa governamentalidade do contexto pós-colonial como necropolítica. A necropolítica não é uma oposição de termos com a biopolítica. Antes, é a particularidade da gestão da vida e da morte nos Estados economicamente e politicamente marginais, como o Brasil. Em sua face mais extrema, é a gestão da vida de uma parcela mínima da população a despeito do extermínio de sua grande maioria. Não é de hoje que a relação das periferias urbanas do Brasil com o Estado é pautada pela guerra cotidiana, assim como a relação de comunidades tradicionais com as forças armadas paramilitares na fronteira agrícola do Centro-Oeste e Norte do país. Mas em sua face mais dissimulada, a necropolítica deixa morrer, de diversas formas: isentando-se de fomentar políticas sociais para as camadas da população em situação de vulnerabilidade; retirando direitos trabalhistas que garantiriam o mínimo da sobrevivência em tempos de crise; endurecendo as normas de garantia da previdência social; não contabilizando os mortos da pandemia, que hoje estão majoritariamente nas periferias urbanas, como é o caso de Brasilândia, Sapopemba e Cidade Tiradentes, na cidade de São Paulo (Martins e Pessoa, 2020).
Essas são as vidas precárias do Brasil. Uma vida, dizia a filósofa Judith Butler, não é o mesmo que um organismo vivo. Uma vida, para ser reconhecida enquanto tal, tem que ser politicamente enquadrada nessa condição. Uma vida salva no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, é uma vida. Um corpo deixado à morte e à negligência estatal em Manaus, é um organismo (ainda) vivo. As subnotificações embasam o enquadramento político no qual o Estado procura construir seu contexto da pandemia. Um quadro em que corpos morrendo aos milhares em questão de dias é a condição de vida de um programa de governo que clama pela vida e pela volta ao trabalho, às custas de organismos descartáveis. Mais do que isso, um quadro no qual corpos não são mais contados, pois a população já não é mais a questão. Já não interessa saber se estamos vivos, se iremos morrer, ou se seremos a causa da morte daqueles com quem partilhamos nosso cotidiano.
Desde 2018 um de meus interesses de pesquisa é o que se convencionou chamar de epidemia de suicídios no sul do Brasil. Esse enquadramento da questão busca suplantar o quadro histórico de subnotificações em casos de suicídio no Brasil. Pode parecer estranho no atual contexto, mas não faz mais que 10 anos que o suicídio passou a ser encarado internacionalmente enquanto um problema de saúde pública. O documento publicado pela OMS em 2017, Depression and Other Common Mental Disorders: global health estimates, atestou a mudança no enquadramento, declarando a depressão como a principal doença incapacitante na atualidade, tendo no suicídio seu desfecho fatal. Iniciativas locais passaram a se realizar em diversas regiões do Brasil, especialmente articuladas à campanha do “Setembro Amarelo”, de prevenção ao suicídio. Antes disso, porém, as pessoas morriam nas zonas rurais do sul do Brasil, e suas vidas jamais foram choradas para além daqueles que partilhavam seu cotidiano. Na verdade, geralmente se ressaltava a “fraqueza” e “egoísmo” das vítimas (Machin, 2009), retirando qualquer possibilidade de reconhecimento daquelas mortes enquanto vidas a serem lamentadas.
Quando um Estado abre mão de saber se estamos todos vivos e transforma em questão política o número de mortes da pandemia, damos adeus à seguridade social e um olá ao massacre dos corpos precários. Mas, como no caso dos suicídios, é possível construirmos, para nós, outro contexto. Iniciativas como os painéis de acompanhamento da pandemia, os boletins, como esse próprio, a cobertura jornalística, e as imagens de cemitérios improvisados e corpos acumulados podem permitir, ainda que tragicamente, que as vidas fragmentadas da pandemia se tornem vidas dignas de luto. Trata-se de desconstruir o contexto no qual a letalidade é pretensamente baixa, no qual a pandemia não é assim tão letal. Trata-se de reivindicar nosso direito de saber se estamos e se permaneceremos vivos, se aqueles que queremos bem não correm riscos ao partilhar conosco o cotidiano, de poder chamar de vidas as mortes que ainda sequer foram contadas. É preciso construir um contexto no qual perguntar se estamos todos vivos tenha uma resposta menos problemática.
Everton de Oliveira é Docente no Departamento de Sociologia da UFSCar
Referências:
BERGAMO, Mônica. Número de Pessoas que morrem em casa dobra em SP na pandemia de Covid-19. Disponível em:
MARTINS, Carolina e PESSOA, Gabriela Sá. Bairros com favelas e cortiços concentram mais mortes por Covid-19 em SP. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/05/areas-com-favelas-e-corticos-registram-mais-mortes-por-e-covid-19-em-sp.htm.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
GAETE, Rodrigo. Análise: subnotificação. Projeto Covid-19 Brasil (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo). Disponível em: https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/analise-subnotificacao/.
MACHIN, Rosana. Nem doente, nem vítima: o atendimento às “lesões autoprovocadas” nas emergências. Ciência & Saúde Coletiva, v. 14, p. 1741-1750, 2009.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 2, n. 32, p. 123-151, Dez. 2016.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Depression and Other Common Mental Disorders: global health estimates. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 2017.