Boletim pandemia e mundo social: notas sociológicas sobre racismo, diáspora e dinâmicas sociais restritivas

Por Priscila Martins Medeiros e Valter Roberto Silvério


Conceitos sociológicos para se pensar o hoje

Há pelos menos quatro meses nos encontramos numa nova rotina: a tentativa diária de acompanharmos a profusão de informações jornalísticas, políticas, econômicas e acadêmicas – de várias áreas do conhecimento – quanto ao novo Coronavírus (COVID-19), surgido inicialmente na cidade chinesa de Wuhan e que rapidamente ganhou proporções de pandemia. O reaparecimento de doenças altamente contagiosas disseminou, também, muitos conceitos sociológicos tais como “desigualdades sociais”, “isolamento social” e “controle social” que, pela rapidez com que eles são mobilizados nas narrativas cotidianas, acabam sendo esvaziados de seus conteúdos e referências de formulação inicial.

Isolamento social, por exemplo, é um termo sociológico associado a grupos considerados “inassimiláveis” em certa perspectiva da sociologia americana, que na segunda década do século XX produziu diversos estudos sobre controle social, considerados como um conjunto de técnicas e de recursos simbólicos, institucionais ou materiais criados em sociedade com o intuito de assegurarem comportamentos coletivos previsíveis, de acordo com regras morais e éticas vigentes em cada época. A partir desses pressupostos em torno da ideia de controle social, a sociologia americana desenvolveu os primeiros estudos sobre “criminalidade”, “delinquência juvenil”, bem como de “assimilação cultural e desvio social” relacionados especialmente às pessoas imigrantes e pertencentes a minorias étnicas.

Realizando um deslocamento da ideia macrossociológica de controle – por vezes pensada como ordem social regulada pelo Estado e outras grandes instituições sociais – os pioneiros da Escola de Chicago, como Herbert Mead (1863-1931) e Robert E. Park (1864-1944) realizaram análises microssociológicas sobre o que seriam os fundamentos da coesão dentro do próprio tecido social. O acento conservador dessa perspectiva, herdeira dos conceitos sociológicos de Émile Durkheim (1858-1917), colocava foco sobre a harmonia social e suas permanências, ao invés das possibilidades transformadoras, da agência dos sujeitos e de mudança social. Mantendo aspectos da psicologia social, os pensadores da Escola de Chicago elaboraram estudos que transitavam pelo funcionalismo e pelo interacionismo, e que se mantiveram dominantes nas décadas seguintes. Já no Pós-Segunda Guerra Mundial, há uma recuperação das questões macrossociológicas nos estudos sobre mecanismos de controle social e de manutenção da ordem social. Com base no estudo das práticas de dominação do Estado, de “classes dominantes”, e de instituições como penitenciárias, sanatórios, asilos, hospitais, escolas, há uma diversificação de tradições sociológicas, com base em premissas do marxismo, do pós-estruturalismo, entre outros (ALVAREZ, 2004: 169-170).

Desde o final dos anos 1960, no entanto, a ênfase em marcadores sociais que transcendem os limites da “classe social” – como gênero, sexualidade, raça, etnia, migração – vem ganhando destaque a partir de outras vertentes do pensamento que consideram, por exemplo, a colonização como elemento chave para se pensar o discurso modernizante e moralizante. Pesquisadores dos chamados Estudos Culturais e Pós-coloniais, por exemplo, se dedicaram aos debates sobre dominação, marginalidade, alteridade e, de outro lado, sobre insubordinação e resistência, elaborando reflexões sobre a produção de significados no cotidiano, tanto no campo das experiências dos sujeitos quanto das gramáticas simbólicas mais amplas (SMITH e RILEY, 2009).

 

Crises sanitárias no Brasil: entre a vulnerabilidade e a resistência

No momento em que escrevemos este texto, o Brasil já se apresenta entre os dez países do mundo com maior número de mortos pelo novo coronavírus. Como sabemos, esta não é a primeira grande crise sanitária enfrentada pelo país e – em tempos de aprofundamento das desigualdades resultantes do nosso modelo de sociedade – provavelmente precisaremos aprender a conviver com a ameaça constante de novas doenças. 

Logo nos primeiros anos do século XX, e em especial em 1904, o aprofundamento dos casos de varíola o Brasil – coincidindo com as campanhas de combate à febre amarela e à peste bubônica já em andamento – levaram o então diretor geral de saúde pública, Oswaldo Cruz, a endurecer o conjunto de profilaxias existentes e a propor ao Congresso a reinstauração da obrigatoriedade da vacinação, que já havia acontecido em décadas anteriores. 

No Rio de Janeiro, a vacina obrigatória foi mais um elemento dentro de um caldeirão histórico de aparatos repressivos, que atingiram em cheio a população mais pobre, majoritariamente negra. O mais conhecido cortiço carioca, o Cabeça de Porco – ambiente principal do romance O Cortiço (1890) de Aluísio de Azevedo e que chegou a abrigar 4.000 pessoas – foi derrubado em 1893 e as pessoas expulsas, simbolizando assim o início da era higienista de administração da cidade. O episódio representou, para Chalhoub (1996), o mito original das intervenções violentas das autoridades públicas sobre o cotidiano. O projeto de ordenação e de reforma urbana da cidade do Rio de Janeiro se articulava com interesses econômicos de setores empresariais da época (CHALHOUB, 1996: 19). Havia a ideia de um Brasil, ainda a ser construído a partir da capital, que acomodaria as camadas já privilegiadas da população, remanejando os “excedentes humanos”.

A ação do governo não se fez somente contra os seus alojamentos: suas roupas, seus pertences, sua família, suas relações vicinais, seu cotidiano, seus hábitos, seus animais, sua forma de subsistência e de sobrevivência, sua cultura. Tudo, enfim, é atingido pela nova disciplina espacial, física, social, ética e cultural imposta pelo gesto reformador. Gesto oficial, autoritário e inelutável, que se fazia, como já vimos, ao abrigo de leis de exceção que bloqueavam quaisquer direitos ou garantias das pessoas atingidas. Gesto brutal, disciplinador e discriminador, que separava claramente o espaço do privilégio e as fronteiras da exclusão e da opressão (SEVCENKO, 2013: 82).


O projeto que ficou conhecido como “Bota-abaixo”, fortalecido na gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906) e sob a presidência de Rodrigues Alves, significou a junção dos discursos econômico e cientificista, legitimando a truculência autoritária. Assim, empregando adjetivos relacionados à noção de impureza, as autoridades ladearam indivíduos à falta de higiene e à desumanização, estabelecendo uma relação de poder na qual o “sujo” não contém os predicados da razão (FILHO, 2017). Em O Alienista, Machado de Assis já nos advertia sobre os perigos do cientificismo associado ao autoritarismo. No folhetim publicado em 1881, ao tentar encontrar o exato limiar entre normalidade e insanidade, o protagonista Bacamarte já apresentava um paralelo sofisticado com o Brasil lembrando-nos o “arrancar à força como dentes podres”, aqueles que a República entendia como indesejáveis. Disse mais tarde Lima Barreto, em Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909): “[…] projetavam-se avenidas;
abriram-se nas plantas squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também uma população catita, limpinha, elegante e branca” (BARRETO, 2010: 224).

Foi então nesse somatório de imposições e disciplinamento da cidade que eclodiu, em 09 de novembro de 1904, a Revolta da Vacina. Heterogênea, a revolta era composta por pelo menos dois focos: de um lado, o motim popular contra o despotismo estatal e, por outro, uma insurreição militar com expectativas golpistas para derrubar o governo Alves. A revolta logrou acabar com a obrigatoriedade da vacina, que foi revogada em 16 de novembro daquele ano, uma semana após o início de conflitos violentos com as forças do governo (PAULA, 2016: 135).

A historiografia contemporânea tem destacado que a Revolta da Vacina é um exemplo de movimento popular exitoso da história brasileira, baseado na defesa do direito dos cidadãos de não serem arbitrariamente tratados pelos governos (CARVALHO, 2010: 138-39). Nesse sentido, e a despeito de toda a violência sofrida durante os dias de revolta, a reação popular“[…] não foi contra a vacina, mas contra a história” (SEVCENKO, 2013: 120). Com isso, queremos dizer que, no mínimo, esse episódio nos convida a relativizar o uso generalizante da noção de vulnerabilidade, tão apregoada inclusive por nós sociólogos. Em termos da ação política, o significado histórico da Revolta da Vacina pode estimular profundos reflexos no interior da Sociologia enquanto disciplina acadêmica, tanto no que toca aos debates sobre agência e formas de resistência inteligente (GUSMÃO e VON SIMSON, 1989) quanto nas reflexões sobre o exercício dos direitos constitucionais (no caso, da Constituição de 1891) e no próprio fortalecimento de nossa experiência democrática. Falaremos um pouco mais disso ao final desta breve reflexão.

Cabe destacar também, na história das grandes crises sanitárias sofridas no Brasil, o caso da Gripe Espanhola, que matou cerca de 35 mil pessoas no país. Só na cidade do Rio de Janeiro, estimasse que metade da população tenha contraído a doença e que 12 mil pessoas tenham morrido. Diversas teses e dissertações nas áreas de saúde pública e de história dão conta de relatar como os descendentes de africanos, ou a população não-branca, de modo geral, no Brasil eram apontados como causadores de “doenças negras” (DALL’AVA, 2015) e, portanto, do agravamento das condições sanitárias do país (GOUVEIA, 2017), entendidos nos termos da época como sinônimos de desordem e de perigo (SILVA, 2017). De acordo com Lima e Hochman (1996), a gripe espanhola ofereceu à população brasileira razões suficientes para desconfiar da eficiência da estrutura federal na área da saúde. E, de fato, a devastação causada pela epidemia exigiu, em 1920, a nacionalização das políticas de saúde e saneamento no Brasil (LIMA e HOCHMAN, 1996: p. 35-36). Ainda faltam pesquisas sociológicas sobre a gripe espanhola e a atuação da população perante a crise. Mas o fato dela ter sido amplamente relacionada às questões etnicorraciais, num contexto em que a população negra pressionava pela mudança das narrativas da escravidão, nos coloca a urgência de refletirmos as epidemias e as pandemias através de categorias sociológicas mais amplas: categorias que deem conta de contrabalancear as versões economicistas da história ou que fatalmente recaiam na concepção apressada de passividade e submissão da população nos momentos de crise.


COVID-19: questões sociológicas para o hoje

Na atual pandemia da COVID-19, há a preocupação renovada com as populações mais pobres e com maiores dificuldades de isolamento social e de manutenção das condições mínimas de vida. No Brasil de hoje, 13, 6 milhões de pessoas vivem em favelas e, desses, 67% são negros. O estudo intitulado O Brasil com baixa imunidade: Balanço do Orçamento Geral da União 2019, divulgado em abril deste ano pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), mostra que, desde 2014 até o ano passado, houve um corte de 28,9% das despesas discricionárias dos programas sociais no país. Essa precarização das condições de vida acentua ainda mais as desigualdades raciais e de gênero no país, conforme artigo publicado pela Folha de São Paulo em 27 de abril.

Não há dúvidas de que a exposição permanente dos dados da vitimização desproporcional (mortes efetivas) de negros, populações nativas e latinos (no caso norteamericano) tem sido uma importante estratégia de denúncia das desigualdades sociais. No entanto, a participação de negros, latinos e nativos entre os representantes da ordem, mesmo que estatisticamente de forma insignificante, levanta a questão colocada por Stuart Hall (2017) para percepção das consequências devastadoras das relações de poder que constroem hierarquias: o problema da relação entre o que os olhos podem ver e o que a mente pode perceber. Ou seja, a maior visibilidade da representação política de negros, latinos, nativos e mulheres em cargos de governança – perceptível no Brasil, nos Estados Unidos e muitos outros países – provoca uma contradição entre essa exposição midiática e o regime discursivo que historicamente subalternizou as minorias. Essa discrepância entre o que vemos hoje e o que sempre se acreditou ser a esfera política, nos permite construir a seguinte pergunta de pesquisa para a sociologia e a área da etnicidade: Como minorias que participam da “ordem” têm atenuado, ou alterado, o regime de representação da desigualdade social associada à cor/”raça”/gênero neste novo contexto global-transnacional-diaspórico?

É, também, com Stuart Hall (2017) que aprendemos como é difícil trabalhar a questão de como os passados coloniais violentos habitam o presente histórico e reverberam nas estruturas sócio-políticas-econômicas de sociedades, como a brasileira. O peso do passado colonial é sentido nas produções da Sociologia e das Ciências Sociais como um todo que, por exemplo, não conseguem narrar as dinâmicas sociais à partir das ações criativas dos sujeitos como forma de resistência ao racismo e de reelaboração de suas vidas num contexto racializado. Ou seja, as ações mobilizadoras em seu próprio proveito; as formas de luta; as transformações psicossociais, discursivas e ideológicas; as redes sociais e dinâmicas institucionais mobilizadas por esses próprios agentes (HAMILTON, 1988; GUSMÃO e VON SIMSON, 1989).

As muitas experiências de núcleos negros na história do Brasil – irmandades religiosas, confrarias, clubes e associações negras, imprensa negra – baseados na solidariedade, reciprocidade e no comunitarismo, nos dão um vasto conjunto de exemplos sobre as formas de insubordinação e de resistência criadora e criativa. Esses grupos foram capazes de manter, contra todas as tendências violentas do racismo brasileiro, sistemas de relacionamento e de ajuda mútua, que lhes permitiu a própria manutenção e o crescimento. Portanto, muito longe das narrativas sobre uma suposta passividade ou sobre posições simplesmente reatoras ao racismo, esses grupos “[…] inventaram seus próprios mecanismos de sobrevivência, suas ferramentas ideológicas e redes de reações sociais, seus próprios veículos de luta através do tempo e do espaço. Esse é o processo cultural, uma expressão criativa, dinâmica da totalidade das relações que caracterizam sua realidade física e cultural” (HAMILTON, 1988: 22), no contexto da diáspora.

 

Pensando a agenda sociológica pós-pandemia

Hoje, em meio ao surto global de COVID-19, vivemos uma situação passível de originar o que a historiadora alemã Eva Schlotheuber chama de pandemia da mente. Ou seja, à medida que vivemos num contexto de expressiva desinformação – potencializada pelo desencontro de informações pelas mídias digitais – as linhas que separam o que é fato e o que é ficção são rotineiramente emaranhadas. Existem dois tipos de respostas polares, a partir das quais se podem vislumbrar os caminhos de uma sociedade pós-pandemia. Uma primeira, tradicional, que aciona as velhas respostas como forma de rememorar que as sociedades humanas se constroem e se reconstroem encobrindo seus velhos problemas. A outra, que se concentra na modelagem como uma tecnologia para legitimar versões particulares do futuro como base das políticas e investimentos atuais. Com toda a sua aparente precisão, os modelos são essencialmente uma maneira de incluir uma série de questões e incertezas em uma narrativa autorizada, que estabiliza temporariamente o futuro.

O reaparecimento de doenças altamente infecciosas como a COVID-19, em um mundo globalizado, ou seja, no qual as relações sociais pressupõem atores supranacionais, nacionais e também locais, nos coloca de frente com uma série de muitas outras questões sociológicas (DINGWALL et all, 2013), das quais destacamos: 1) A repercussão e o impacto das disciplinas e/ou modalidades científicas na projeção de contextos de riscos e incertezas; 2) O comportamento da mídia na produção de ciclos de “questões”, frente a dinâmica competitiva de audiência, a serem respondidas pelos representantes da ordem – cientistas, médicos, economistas, políticos profissionais, formuladores de políticas públicas. O modo como as respostas são fornecidas pode ampliar ou reduzir as ansiedades ante a constante possibilidade de instalação do pânico e da necessidade de identificação na forma de rótulo de um “Folk Devil”; 3) O surgimento de “novos” temas para a Sociologia, tais como a interação entre saúde pública, imigração e segurança nacional; a realização de interesses econômicos versus a dinâmica da governança em saúde; a divisão de gênero do trabalho doméstico e do cuidar; e os indicadores quantitativos que, normalmente, demonstram como as minorias são desproporcionalmente vitimadas.

Não é preciso dizer que cada um desses temas acima citados, quando associados a doenças infecciosas e/ou pandemias (HIV, SARS 2002-2003; H1N1 2009, COVID-19), constituem um novo conjunto de desafios para os sociólogos e teóricos sociais em geral e, ao mesmo tempo, questionam o pensamento restrito (disciplinas específicas e/ou temas específicos no interior de uma área disciplinar) e escancaram a necessidade e as possibilidades de atualização da agenda de pesquisa que atenda ao interesse público.