Sociologia na Pandemia 19#

 

 

A letalidade policial durante a pandemia de COVID-19 no Rio de Janeiro: desafios renovados para o enfrentamento ao problema [1]

 

 

Por Joana Monteiro, Eduardo Fagundes e Ramón Chaves

 

A discussão em torno da violência policial no Rio de Janeiro voltou ao centro do debate público em meio à pandemia de COVID-19. Após ações das polícias resultarem na morte de adolescentes e na interrupção de iniciativas solidárias em áreas pobres da cidade, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin restringiu a realização de operações em favelas durante a emergência sanitária provocada pelo novo coronavírus. Segundo a decisão, incursões policiais devem ocorrer apenas em casos excepcionais e sob comunicação imediata ao Ministério Público estadual.

Em contraponto ao juízo, a Secretaria de Estado de Polícia Civil (SEPOL) elaborou um documento que defende o expediente das operações policiais em favelas sob a alegação de que sua suspensão criaria uma “zona de proteção ao crime organizado”. De acordo com a nota, dado o cenário de “guerra” do Rio de Janeiro, no qual áreas do estado são controladas e disputadas violentamente por grupos criminosos armados, a estratégia de “combate frontal às organizações criminosas” se configura como a principal responsável por manter os indicadores criminais em patamares relativamente baixos nos últimos anos.

Afirmações dessa natureza são empregadas com frequência por operadores da Segurança Pública e levantam uma hipótese que precisa ser verificada por meio da análise de dados.  Identificar o impacto de uma intervenção requer estabelecer uma comparação entre áreas tratadas e outras não afetadas pela mesma medida, de modo que essas últimas possam servir de grupo de controle em relação às demais. Na ausência de um contexto que permita inferir causalidade entre os fenômenos, como no caso aqui analisado, é possível testar as variações locais de indicadores para reforçar ou enfraquecer hipóteses de causa e efeito. Isto é, podemos examinar se as áreas onde o número de mortes pela polícia mais cresceu são também aquelas que mais reduziram o crime nos meses correntes ou subsequentes. A hipótese de que o número elevado de mortes provoca a redução de crimes sairia fortalecida caso o padrão dos dados no nível local apresentasse essa correlação.

No entanto, exercícios econométricos que utilizam séries históricas de 2003 a 2019 demonstram que períodos de incrementos no uso da força letal pelas polícias no Rio de Janeiro estão associados, principalmente, a maior volume de apreensões de drogas e fuzis [2]. Não há associação estatística entre o aumento nas mortes pelas polícias e a redução de crimes como o roubo a patrimônio ou o homicídio doloso (Monteiro et. al. no prelo). Essa análise não invalida que, em determinados locais ou momentos específicos, o aumento da letalidade policial possa ter contribuído para a redução de crimes, mas contesta o êxito atribuído à estratégia de “combate frontal às organizações criminosas”.

Esse resultado é reforçado pela dissonância apresentada entre o comportamento dos indicadores criminais e o uso da força letal pelas polícias fluminenses no período subsequente à implementação das medidas de distanciamento social. Em estudo recente, ainda não publicado, observamos a partir de abril uma queda generalizada e sustentada dos índices de atividade criminal e de produtividade policial no Rio de Janeiro, especialmente nos delitos contra o patrimônio, nas apreensões de drogas e nos diferentes tipos de prisão, cujas ocorrências apresentaram níveis extremamente incomuns para o padrão anterior dos dados. A exceção a essa conjuntura foi representada pelo número de mortes por intervenção de agentes do Estado: imediatamente após a adoção das regras para reduzir a transmissão do Sars-CoV-2, esse indicador observou um aumento superior à média dos últimos quatro anos; a partir de maio, entretanto, assumiu um movimento de queda que se transformou em um desempenho extraordinariamente baixo em junho.

A Figura 1 mostra indicadores de roubo de rua, roubo de veículo, crimes violentos letais intencionais (CVLI) e mortes por intervenção de agentes de Estado. Padronizando-os para desvio-padrão em relação à média [3], é possível identificar quão forte foi a variação a partir de março. O nível zero indica as ocorrências que naquele mês apresentaram um patamar equivalente à média dos últimos cinco anos. Sob determinadas hipóteses estatísticas, quando uma variação apresenta dois desvios-padrão de diferença em relação a zero, seja para mais ou para menos, isso representa um evento cuja probabilidade de ocorrer é inferior a 5%.

Os roubos de rua e de veículo apresentaram a partir de abril registros inferiores a 2 desvios-padrão, patamar alcançado e mantido pelo número de homicídios desde maio. A queda de roubo de rua é superior a 3 desvios-padrão em média e, de acordo com o cruzamento de índices de aglomeração, foi mais forte nos bairros onde houve maior redução na movimentação de pessoas [4]. Contrariando o desempenho atípico apresentado pelos demais indicadores, as mortes por intervenção de agentes do Estado aumentaram 1,7 desvios-padrão em abril. A partir de maio, entretanto, o indicador entra em queda e assume um valor excepcional em junho, quando atingiu uma diminuição de 2 desvios-padrão da média.

A Figura 2 apresenta um conjunto de ações das polícias no Rio de Janeiro e demonstra que diversas medidas de produtividade policial apresentaram um declínio acentuado diante do novo cenário epidemiológico. Chama a atenção a queda de mais de 2 desvios-padrão no cumprimento de mandados de prisão e na apreensão de drogas em abril, mesmo mês em que as mortes por intervenção de agente de Estado dispararam na Região metropolitana.  A série histórica revela ainda dois movimentos opostos em 2020: um descolamento inicial entre indicadores frequentemente associados e, em seguida, uma reaproximação entre eles em junho.

O comportamento atípico da criminalidade violenta e da produtividade policial parece estar associado às circunstâncias excepcionais do momento, especialmente à retração sem precedentes no fluxo de pessoas em áreas do estado. Mas o que poderia explicar a manutenção no uso da força letal pelas polícias e sua queda brusca em junho? À revelia das dinâmicas criminais, a oscilação da letalidade policial sugere determinações estranhas à Segurança Pública.

Os registros de participação de policiais nas ocorrências de tiroteio na região metropolitana do estado, que são coletados e disponibilizados pela Plataforma de dados Fogo Cruzado, ajudam a interpretar esse cenário. As variações semanais nos episódios de confronto armado entre policiais e suspeitos são consistentes com o comportamento do número oficial de mortes por agentes do Estado. Após o primeiro decreto estadual com medidas de distanciamento social, há uma queda não sustentada na participação de agentes em tiroteios, que logo volta a patamares elevados em abril e nas primeiras semanas de maio. Em seguida, o número de casos dessa natureza entra em declínio e permanece extraordinariamente baixo nas semanas de junho, em consonância com o resultado atípico dos dados oficiais compilados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ).

O início do declínio coincide com uma reunião noticiada pelos jornais cariocas entre o governador Wilson Witzel e a cúpula da Segurança Pública fluminense. Nela, o chefe do executivo estadual teria determinado a interrupção das incursões em favelas durante a realização de ações humanitárias, suspendendo assim um dos pilares da política de “abate a criminosos” da qual ele próprio é um dos principais fiadores. Nas semanas seguintes, o volume de tiroteios envolvendo a polícia seguiu baixo após a decisão do ministro Edson Fachin de limitar as operações policiais em favelas. Esse último aspecto, em particular, foi extensamente abordado por diversos analistas, mas o comportamento atípico da tropa antes mesmo da judicialização da atuação policial reforça a necessidade de discutir a influência da linha de comando sobre o desempenho das polícias nas ruas. Isso é ainda mais relevante se considerarmos que o entendimento do STF se atém ao contexto epidemiológico atual, ao menos naquilo que tem de mais restritivo.

A pandemia de COVID-19 representa um choque que adiciona novos elementos ao entendimento do problema, ao mesmo tempo que enfraquece o argumento segundo o qual o “combate frontal às organizações criminosas” é uma estratégia eficiente e necessária. A reação das forças de segurança durante esse evento renova os esforços em investigar os procedimentos e os resultados da ação policial. É preciso examinar também quais são as ações realmente efetivas na redução dos índices de criminalidade violenta – embora menos visíveis e alardeadas, muitas delas estão em curso diariamente no Rio de Janeiro. Enquanto estivermos presos à “metáfora da guerra” (Leite, 2000), a prática desse discurso seguirá impondo custos extraordinários aos moradores de favelas sem, contudo, apresentar resultados convincentes para a Segurança Pública fluminense

 

Joana Monteiro é Doutora em Economia pela PUC-RIO e Professora da FGV/EBAPE

Eduardo Fagundes é Mestre em Economia pela PUC-RIO

Ramón Chaves é Mestrando em Ciências Sociais pela UFRRJ

 

 

Notas

 

[1] Esse texto foi publicado originalmente no Boletim Semanal Fonte Segura, edição 47, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A versão aqui disponível contém modificações pontuais.

[2] Esses resultados coincidem com o funcionamento prolongado no Rio de Janeiro de um tipo de ação policial centrado no confronto territorial e esporádico entre agentes de segurança e traficantes de drogas armados, o que Carolina Grillo (2016) denomina como “modelo de operações tópicas”.

[3] As análises empregam o conceito estatístico de Z-score, um recurso que padroniza a variabilidade dos dados e permite comparar indicadores que apresentam patamares discrepantes de ocorrência e de variação temporal. De acordo com essa métrica, quando o número de casos de determinado crime é igual a sua média histórica, o Z-score assume o valor zero (0). A diferença em relação a zero (0) é calculada em termos de desvios-padrão. Com isso, é possível identificar quão forte foram as variações a partir de março, quando as medidas de isolamento social foram implementadas no estado. Sob hipóteses estatísticas usuais, a presença de uma observação com mais de dois desvios-padrão de diferença para a média, seja para mais ou para menos, é um evento cuja probabilidade de ocorrer é inferior a 5%, isto é, um episódio bastante incomum à própria trajetória do indicador.

[4] Dados da sobre deslocamento na capital, disponibilizados pela empresa Cyberlabs, demonstram que as reduções mais expressivas de roubos de rua ocorreram nos bairros onde houve maior diminuição na circulação de pessoas.

 

 

Referências:

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Decisão sobre o pedido de Tutela Provisória Incidental na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635/RJ. Requerente: Partido Socialista Brasileiro – PSB. Intimado: Estado do Rio de Janeiro. Relator: Min. Edson Fachin, 05 de junho de 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF635DECISaO5DEJUNHODE20202.pdf. Acesso em: 13 de julho de 2020.

 

ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Polícia Civil (SEPOL); Subsecretaria de Planejamento e Integração Operacional (SSPIO). Manifestação da SEPOL e SSPIO ao Exmo. Secretário Nacional de Segurança Pública acerca da decisão do Exmo. Ministro Edson Fachin na tutela provisória na ADPF 635. Julho de 2020.

 

MONTEIRO. J.; FAGUNDES, E.; GUERRA, J. Letalidade policial e criminalidade violenta. Artigo aceito para publicação na Revista Brasileira de Administração Pública. No prelo.

 

LEITE, M. P. Entre o individualismo e a solidariedade: dilemas da política e da cidadania no Rio de Janeiro. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 15, n. 44, p. 43-90, 2000.

 

GRILLO, C. C. Frontières tacites. Confrontations et accords dans les favelas de Rio de Janeiro, Confins, n. 28, 2016.

Disponível em: http://journals.openedition.org/confins/11246. Acesso em 15 de agosto de 2020.