Sociologia na Pandemia 18#

 

Ficar em casa, e agora? Experiências desiguais do isolamento social na pandemia

 

Por Fernanda Mallak, Isabela Vianna Pinho e Thalles Vichiato Breda

 

“Tudo bem, tudo na mesma, cada um na sua casa, né?”. Foi assim que Maria respondeu como estava durante esses tempos de pandemia. Moradora de um conjunto habitacional promovido pelo Programa Minha Casa Minha Vida (faixa 1- habitação de interesse social) em São Carlos/SP; titular do programa Bolsa Família e, atualmente, beneficiária do Auxílio Emergencial. Não são somente esses fatos que lhe asseguram estar em casa com seus filhos pequenos, mas também a infraestrutura urbana do local que reside e, sobretudo, as relações cotidianas com outras casas, pessoas e instituições. A situação de Maria se parece com a de outras mulheres negras que habitam as periferias brasileiras, no entanto, ter um teto para morar – e se isolar de forma segura – é uma realidade distante para muitas delas, especialmente no contexto atual. 

O coronavírus e a subsequente política de isolamento social nos provocam a repensar sobre diversas questões relacionadas à casa. Desde o início da pandemia, não cessam os questionamentos no debate público sobre quem pode ou não ficar em casa e sobre como são desiguais as experiências do estar em casa, principalmente durante esse momento tão singular e, sobretudo, quando dirigimos o olhar às casas mais vulneráveis – socialmente e materialmente. Aqui trazemos reflexões atentas às transformações e às consequências diretas em sujeitos, corpos e casas específicas – de mulheres pobres, em sua maioria negras, que habitam as periferias urbanas. A pergunta subjacente que nos serve mais como provocação do que a busca por respostas definitivas, é: ao olharmos para e a partir das casas, como se redesenharam as formas de habitar a vida ordinária em um contexto tão extraordinário?

Organizamos este ensaio, assim como olhamos para a casa, em três dimensões. Em primeiro lugar, quem tem um teto para morar e, hoje, consegue nele se isolar? Isto é, olhar para a casa como um direito humano e moradia digna. Em segundo lugar, a casa é, também, uma materialidade complexa que envolve tanto sua construção material, quanto o seu entorno. Aqueles que têm casa, como se dá o acesso à ela? As pessoas que nela habitam conseguem se manter seguras por um longo período? Em terceiro, a casa é um espaço de vida, de experiências, de convívio, com um conjunto de pessoas e coisas. Com quem e com o quê as pessoas contam para dar conta de suas vidas durante a pandemia? As casas são, ao mesmo tempo, um direito humano; uma materialidade complexa e um espaço de relações [1].

 

A casa como direito

A discussão da moradia enquanto um direito humano não é recente. Desde a Declaração dos Direitos Humanos da ONU de 1948 há o reconhecimento da moradia enquanto direito fundamental, que inclui a segurança para habitar com dignidade. O Brasil, signatário de todos tratados da ONU até então, também o garante constitucionalmente, inserido no rol dos direitos sociais (Art. 6º, CF 1988). Embora exista um abismo entre a legislação e a realidade, visamos compreender como a dimensão deste direito se dá frente à pandemia. 

Um primeiro ponto é de que a medida de isolamento social implica necessariamente em ter um lugar para se isolar, uma moradia. De acordo com um levantamento realizado pelo IPEA em 2015, estima-se que existem 101.854 pessoas em situação de rua no Brasil [2], só na cidade de São Paulo o total é de 24.344 em 2019 (SMADS, 2019) [3]. Pessoas para quem o pedido de “ficar em casa” definitivamente não ecoou, e não teria como ecoar, a realidade dos que habitam as ruas está longe das medidas sanitárias para a contenção do vírus. Com as ruas vazias e comércios fechados, o cenário tornou-se ainda mais dramático para a sobrevivência dos que dependem de recicláveis, das marmitas doadas, esmolas, de guardar carros, entre diversas outras práticas. Estes também encontram mais um recorte da exclusão diante da pandemia: para ter acesso ao auxílio emergencial é preciso ter documentação como CPF e comprovante de residência.

Outra questão a ser considerada é a segurança da posse, que consiste na possibilidade de se manter em moradias em “condições de irregularidade”. As remoções e despejos se tornaram processos estruturais e sistemáticos nas cidades (com ordens judiciais ou simplesmente ordens administrativas), acarretando instabilidade e transitoriedade dos locais de moradia. Os últimos meses não foram diferentes, como apontam os dados levantados pelo Observatório de Remoções (FAU/USP e UFABC): mais de 1.900 casas foram atingidas em pelo menos dez remoções ocorridas em todo o estado de São Paulo desde o início da pandemia do coronavírus[4]. Neste sentido, se por um lado identificou-se a correlação direta entre a contenção da pandemia e a não movimentação/fluxo de pessoas e coisas, contraditoriamente os modos de ordenar e legislar na periferia impuseram o deslocamento forçado de algumas pessoas e coisas. 

O fato de Maria conseguir estar em casa – diferentemente de outras mulheres em situação de rua, daquelas que perderam suas moradias em remoções ou de tantas outras que custam a pagar os aluguéis – se deve sobretudo às construções de habitações populares, que marcaram o contexto brasileiro na última década. Essas construções possibilitaram que diversas famílias tivessem maior acesso à moradia, muito embora se questione alguns fatores como, por exemplo, se as casas entregues são ou não dignas, se a infraestrutura da casa é adequada ao contexto do território, se houve ou não participação popular no processo de escolha e qual infraestrutura urbana do entorno dessas construções.

 

A casa como materialidade complexa

A casa também pode ser pensada como materialidade complexa, que envolve a sua própria construção material, a infraestrutura urbana do local, o acesso à ela, entre outros elementos. Se antes já não era novidade que muitas residências nas periferias urbanas possuíam condições físicas precárias, o contexto atual escancara tais condições, como a pouca circulação de ar, a qualidade do material da construção, os pequenos espaços que vivem muitas pessoas e as realidades de saneamento básico.

Conforme mostram os dados do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (2018), cerca de 16% dos brasileiros ainda não têm acesso à água tratada, ou seja, quase 40 milhões de pessoas. E aproximadamente 47% dos brasileiros, quase 100 milhões, vivem em localidades sem acesso à coleta de esgotos[5]. Isto significa dizer que essas pessoas não possuem recursos básicos para a prevenção recomendada pelas autoridades médicas, como as práticas de lavar as mãos e os alimentos. 

A depender do território em que a casa está inserida, existem também as dificuldades de deslocamento. A casa de Maria, por exemplo, está a seis quilômetros distante do centro da cidade. É até lá que precisa ir para retirar seus benefícios na Caixa Econômica Federal, atualizar o Cadastro Único, tentar cestas básicas ou passes de ônibus na assistência social ou, ainda, para buscar empregos e doações em outras instituições. Isto representa uma hora e meia de caminhada, ou meia hora de transporte público ou, menos, caso consiga uma carona. Assim, a gestão da casa também envolve a sua localidade e os acessos a outras casas, espaços e equipamentos públicos e privados.

A desigualdade também se reflete aqui, pois existem possibilidades maiores ou menores de readaptações na pandemia, seja por condicionantes propriamente econômicas, materiais, raciais, territoriais ou, também, pelas formas que as casas estão conectadas umas com as outras e com as instituições. O que fica evidente é que quanto mais conectada a casa está, maiores serão as possibilidades de isolamento [6]. 

 

A casa como relação

Outros problemas domésticos surgem quando a recomendação é ficar em casa por longos períodos. Não só pelas condições materiais descritas (que evidentemente já são muitas), mas também pelas relações familiares que conformam a própria materialidade das casas. O bem-estar das pessoas no interior delas pode ser perturbado pelo som alto da televisão, da internet, de alguma construção por perto, da limpeza, das crianças brincando ou das relações afetivas e sexuais. As rotinas precisam ser coordenadas e em muitas situações essa coordenação é inviável, pois as casas passam a incorporar outras atividades que antes se faziam fora dela como, por exemplo, a preparação dos alimentos que antes eram servidos nas merendas e a própria realização e auxílio das atividades escolares (grande parte delas impossibilitadas nesse formato de ensino remoto). 

A última dimensão, mas não menos importante, é pensar a casa em configuração, isto é, em relação às outras casas e pessoas. Ela não é uma entidade isolada, mas se faz a partir das relações sociais estabelecidas com outras casas, a partir das trocas e laços entre e, também, dentro das casas. As circulações de objetos, alimentos, e dinheiros são constantes, por exemplo; assim como as práticas cotidianas do cuidado, os empréstimos ou doações de mantimentos, as caronas para os deslocamentos, as colaborações na construção da casa, dentre tantas outras atividades que tornam impossível pensar a casa de modo isolado. Assim, as casas são espaços de existência comum [7], um lugar de experiências. E elas se reconfiguram a todo momento, em um processo social dinâmico, pois as relações sociais dentro/entre casas são construídas cotidianamente e ao longo do tempo. Relações essas que envolvem interdependências, solidariedades, afetos, bem como moralidades, obrigações, assimetrias e conflitos. 

Se, por um lado, as possibilidades de conexões entre casas e instituições tendem a diminuir, por outro as relações dentro delas se intensificam e, por vezes, se esgarçam. Os dados de violência doméstica durante a pandemia são representativos. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os casos de feminicídio aumentaram 22,2% entre março e abril em 12 estados do país, quando comparados ao mesmo período do ano passado. Só em São Paulo, estado em que o vírus se propagou primeiro, o aumento foi de 41,4% neste período e o crescimento das denúncias de violência doméstica por telefone cresceram 44,9% só em março. Ao mesmo tempo, houve a redução dos registros de crimes nas delegacias (denúncias presenciais), de lesão corporal dolosa (-25,5%) e de estupro (-28,2%). Sobre estes últimos, os estudos apontam subnotificações, que se explicam pela maior dificuldade em denunciar, já que as vítimas estão isoladas com os agressores. O estudo também revela aumento de 431% de relatos de brigas de casal por vizinhos em redes sociais entre fevereiro e abril deste ano [8].

Além das questões de gênero, a pandemia também escancarou o racismo estrutural brasileiro. Não por acaso os dados evidenciam que o risco de morte de negros por Covid-19 é 62% maior em relação aos brancos na cidade de São Paulo [9]. Neste sentido, sabemos que “não estamos no mesmo barco”, mas sim na mesma tempestade. As possibilidades e/ou bloqueios para uma menor ou maior exposição ao risco estão completamente relacionados aos “barcos” desiguais em que pessoas de diferentes classes, gêneros e raças estão inseridas.

Em um contexto em que os contatos entre pessoas e objetos são evitados, quando circulações e fluxos precisam ser interrompidos ou reduzidos, o que acontece com / entre / dentro das casas? “Tudo na mesma, cada um na sua casa”, como nos disse Maria, revela que ocorreram reconfigurações. A gestão do tempo mudou, a dinamicidade das trocas se alteraram, os fluxos de pessoas e objetos entre as casas foram, de certa forma, reduzidos, porém dificilmente seriam rompidos. Exemplos não faltam de organizações para doações nas periferias, a Central Única das Favelas (CUFA) é um caso exemplar. São as interdependências, as relações e as trocas entre as casas que tornam os mundos habitáveis, sobretudo neste contexto. Limitá-las, evidentemente, traz maiores dificuldades aos problemas domésticos, no jogo cotidiano de “manter a casa” e “ganhar a vida”. 

 

Notas finais: manter a casa e ganhar a vida (ou correr atrás)

Ter uma casa adequada, se isolar nela e ainda fazer home office é a realidade de poucos brasileiros. Para a maior parte da população, “manter a casa” e “ganhar a vida” significa “correr atrás”, trabalhar dentro e fora de casa, pegar transporte público, circular e se expor. Ao analisarmos os problemas domésticos a partir das duas facetas indissociáveis do “ganhar a vida” e “manter a casa”, assumimos que a esfera da casa não é separada da esfera do trabalho, da economia, do dinheiro. Como mostramos aqui, as casas não são isoladas, nem fixas, as relações e circulações dentro/entre elas e as instituições são muitas e fundamentais. 

Os mecanismos de transferência de renda trazem temperos para a economia doméstica. Eles têm um potencial de modificar esta dinâmica, especialmente por dois motivos: o primeiro ponto é que o dinheiro que circula no ambiente doméstico não necessariamente é oriundo do trabalho, ou seja, o consumo não necessariamente vem atrelado ao trabalho (ou outras formas legais ou ilegais de ganhar/fazer dinheiro); o segundo é que o dinheiro não passa pelas mãos do homem, chegando diretamente à mulher, como é o caso do Programa Bolsa Família.

Se por um lado, tais mecanismos visam uma certa autonomia, a mulher acaba adquirindo mais responsabilidades. Ao receber o dinheiro do Bolsa Família, as titulares precisam, ao mesmo tempo, se atentar às faltas e às vacinas das crianças. É paradoxal que a preferência dada às mulheres pelos programas sociais sejam acompanhadas de condicionalidades e de maiores responsabilidades. Agora, em tempos de pandemia, cabe a titular ter seu cadastro em dia no CadÚnico e enfrentar as longas e perigosas filas da Caixa para conseguir o benefício. Vale ainda a reflexão: quem estará olhando os filhos de Maria enquanto ela corre atrás de cadastros? Provavelmente outras Marias – aqui novamente observamos a casa em inter-relação com as outras casas que participam de sua construção – materialmente e simbolicamente. Na atual conjuntura de isolamento e distanciamento, cabe às mulheres, realizarem novos malabarismos para darem conta do “manter a casa” e o “ganhar a vida”, reconfigurados pela pandemia. 

A política do isolamento social incide de diferentes formas nas distintas camadas da população. A casa, elemento central aqui, pode variar na infraestrutura, tamanho da construção e localização urbana, que facilitam ou dificultam o “estar em casa”. Embora o direito à moradia digna esteja assegurado constitucionalmente, isto ainda não é uma realidade. Nas últimas décadas, mecanismos de transferência de renda condicionada e a produção de habitação social em massa parecem ter colaborado para amenizar a crise sanitária atual, embora não ataquem diretamente o problema estrutural da desigualdade social na sociedade brasileira. Neste contexto, a mulher negra e periférica é sujeito central tanto no “manter a casa” quanto no “ganhar a vida”. Central pois há tempos se tornaram chefe de família, responsáveis pela manutenção e gestão da casa, do cuidado dos filhos e familiares, do ganhar e gastar dinheiro. Há tempos “correm atrás” e despendem esforços cotidianos para tornar seus mundos habitáveis, inclusive em tempos extraordinários.

A pandemia escancara vulnerabilidades que já estavam postas historicamente. Há um acirramento delas, um crescimento da violência doméstica e um escancaramento do descaso com as vidas. As distintas experiências sobre as (im)possibilidades do estar em casa, mais uma vez revelam as faces tão presentes da desigualdade estrutural no Brasil.

 

Fernanda Mallak, Isabela Vianna Pinho e Thalles Vichiato Breda são discentes do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar

 

Notas

[1]  Tanto as três dimensões da casa; como a pergunta “com quem contamos para dar conta de nossas vidas” e, também, as duas facetas dos problemas domésticos (“ganhar a vida” e “manter a casa”) são ideias trabalhadas pela professora Marcella Araújo (2017; 2020) e por nós recuperadas aqui. 

[2] Estimativa da população em situação de rua no Brasil realizada pelo IPEA. Para acesso ao estudo ver: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/26102016td_2246.pdf. Acesso em 31/07/2020.

[3] http://www.capital.sp.gov.br/noticia/prefeitura-de-sao-paulo-divulga-censo-da-populacao-em-situacao-de-rua-2019. Acesso em 30/07/2020

[4] Mais informações ver: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/06/29/Como-a-pandemia-exp%C3%B5e-a-crise-de-moradia-no-Brasil. Acesso em: 29/07/2020

[5] http://www.snis.gov.br/painel-informacoes-saneamento-brasil/web/painel-setor-saneamento. Acesso em 30/07/2020

[6] Como destaca Motta (2020, p.3.), “As casas em que é possível melhor se isolar são aquelas que melhor estão conectadas: às infraestruturas urbanas (sistema de água e esgoto), ao ar livre (janelas, quem sabe, quintais), à redes de telecomunicação (internet), às instituições (registros que permitem acesso a direitos) e aos mercados.” 

[7]  Eugenia Motta (2020, p. 1), “Uso aqui a palavra comum nos três sentidos que ela pode suscitar. O primeiro é o que alude ao que é ordinário e cotidiano, o segundo diz respeito ao que é compartilhado, propriedade de muitos, e o terceiro conota a coincidência existencial e a constituição mútua de pessoas e delas com coisas e substâncias.”

[8] Mais informações ver: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/06/violencia-domestica-covid-19-ed02-v5.pdf. Acesso em 30/07/2020

[9] Mais informações ver:  https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,em-sp-risco-de-morte-de-negros-por-covid-19-e-62-maior-em-relacao-aos-brancos,70003291431. Acesso em 03/08/2020

 

Referências

ARAUJO, Marcella. A casa como problema e os problemas das casas durante a pandemia de Covid-19. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social – Rio de Janeiro – Reflexões na Pandemia 2020 – pp. 1-9.

ARAUJO, Marcella. Obras, casas e contas: uma etnografia de problemas domésticos de trabalhadores urbanos, no Rio de Janeiro. 292f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2017.

MOTTA, Eugênia. Ambiguidades domésticas e a pandemia. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social – Rio de Janeiro – Reflexões na Pandemia 2020 – pp. 1-6.