Sociologia na Pandemia 17#

 

Tortura no socioeducativo em tempos de pandemia

 

Por Mariana Chies Santos, Maria Gorete Marques de Jesus e Thais Lemos Duarte 

 

Celebramos três décadas da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído através da Lei Federal nº 8.069/1990. Junto com a Constituição de 1988, o ECA mudou os paradigmas até então existentes nos antigos Códigos de Menores, passando da doutrina de situação irregular à da proteção integral. A primeira tinha como foco crianças e adolescentes em situação de abandono ou autores de ato infracional, concebendo ao Estado o papel de agente de tutela. Já a Doutrina da Proteção Integral, adotada pelas Nações Unidas desde 1989, abrange todas as crianças e os adolescentes, independente da classe a que sua família pertence. Isto é, estabelece que o direito deve ser defendido sem um julgamento sobre as condições de vida dos indivíduos (Custódio, 2008) [1].

A construção do Estatuto foi marcada pela intensa participação de movimentos da sociedade, sobretudo os ligados à defesa dos direitos da criança e do adolescente. Inspirado em tratados internacionais (como as Regras de Beijing de 1985 e a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989) e a Constituição de 1988, o ECA atribuiu à sociedade, ao Estado e à família o dever de assegurar os direitos da criança e do adolescente. Criou também órgãos e mecanismos de controle, voltados tanto à formulação de políticas públicas para a área da infância e da juventude, quanto à intervenção direta em situações de ameaça a direitos. 

Para além destes aspectos, esses marcos normativos apontaram para uma mudança em relação ao tratamento estatal dirigido aos adolescentes autores de ato infracional. Neste aspecto, a medida socioeducativa considera tais indivíduos como sujeitos de direitos e em desenvolvimento, devendo inseri-los na rede de proteção destinada à garantia de educação, da saúde, da assistência social, da convivência social e familiar, dentre outros. 

Em 2006, foi editada nova regulamentação, transformada em lei federal em 2012 (n° 12.594/2019), cujo objetivo foi criar um sistema nacional de acompanhamento da execução das medidas socioeducativas, nomeado de Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Assim, tanto as prescrições do SINASE, quanto as do ECA, constituem paradigmas centrais à garantia de direitos de adolescentes em privação de liberdade no Brasil. No entanto, há uma lacuna entre suas previsões e a realidade das instituições de internação espalhadas por todo território nacional, de modo que a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes constituem, muitas vezes, as rotinas de tais espaços. 

Em cenário de pandemia da Covid-19, as situações de violação podem ser ainda mais agudas e sistemáticas, sobretudo, porque foram proibidas temporariamente as visitas familiares em unidades de internação da maioria dos estados, assim como foram suspensas as inspeções realizadas por órgãos de controle externo, como o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Defensoria Pública, Ministério Público e juízes da Execução. Ao que parece, as mais altas autoridades ignoram que há outros canais de contágio com trânsito diário entre o fora e o dentro das unidades, como a equipe de servidores atuante nesses estabelecimentos. Dito de outro modo, os locais de internação se encontram, agora, ainda mais alijados do controle social, deixando os adolescentes que lá se encontram em situação de extrema vulnerabilidade. 

Logo, a proposta deste texto é dar visibilidade ao problema, bem como discutir as medidas travadas por órgãos do poder público e da sociedade civil para minimizar as violações de direitos, em especial, as situações de tortura, a que adolescentes privados de liberdade estão sujeitos durante a crise causada pelo novo coronavírus. Para fins de análise, serão usados documentos públicos sobre o sistema socioeducativo do Brasil e dados divulgados durante a pandemia, relacionados aos espaços destinados aos adolescentes privados de liberdade.   

 

Cenário brasileiro de políticas de prevenção à tortura

Quando  visitou o Brasil há duas décadas, o relator especial da ONU contra a tortura, Sir. Nigel Rodley, afirmou ter visto cenas aterrorizadoras: “Hoje, sim, eu posso dizer que o que eu sabia quando cheguei era apenas a ponta do iceberg“. Em uma das inspeções realizadas na Fundação do Bem Estar do Menor (FEBEM) de Franco da Rocha, Região Metropolitana de São Paulo, ele encontrou barras de ferro e porretes de pau na sala dos monitores. Colheu, então, depoimentos dos adolescentes e apresentou denúncia das situações torturantes detectadas. No entanto, o relator disse ter se sentido enganado pelas autoridades, pois soube que os adolescentes com quem conversou sofreram represálias e foram transferidos a outras unidades. Já os monitores acusados foram mantidos em suas atividades regulares.

Esse caso ilustra uma série de questões envolvendo a prática da tortura em espaços de privação de liberdade, em específico, em estabelecimentos de internação para adolescentes autores de atos infracionais. Como primeiro ponto, a visita do relator da ONU expôs algo que corriqueiramente acontecia na unidade e que certamente era de conhecimento da direção. Se não era o responsável direto pelas situações de violência vivenciadas pelos adolescentes, o gestor do local era, no mínimo, omisso. Não fosse a visita e o olhar crítico do relator a respeito dos instrumentos de tortura encontrados, nada teria sido indicado como problema. Como segundo ponto, é importante destacar o modo como as autoridades lidaram com os fatos apresentados por Nigel Rodley. Ao invés de os perpetradores da tortura serem devidamente investigados e responsabilizados – como preveem normativas sobre o tema -, os adolescentes foram punidos. A revitimização foi a principal medida adotada.

Desde essa visita do relator, o Brasil em alguma medida avançou na formulação e na promulgação de legislações voltadas ao enfrentamento à tortura. Talvez, a ação mais emblemática tenha sido a instauração do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, previsto pela lei 12.847/2013, constituído, entre outros atores, pelo Comitê e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Além de ambos os órgãos nacionais, o Sistema é formado também por Mecanismos Estaduais, os quais devem ser estabelecidos nas distintas unidades da federação. 

Tal ente nacional e os estaduais se fundamentam no Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, inserido no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 6.085/2007. Sua função precípua é realizar visitas regulares a pessoas privadas de liberdade, a fim de verificar as condições de fato e de direito a que se encontram submetidas. Esses órgãos, portanto, têm a atribuição de monitorar unidades prisionais, centros de internação socioeducativos, instituições de longa permanência para pessoas idosas, hospitais psiquiátricos e qualquer outro lugar onde certo indivíduo esteja cerceado do seu direito de ir e vir, seja em decorrência de uma decisão judicial ou não. 

Em atuação desde 2015, o Mecanismo Nacional já visitou mais de 180 instituições de diferentes perfis, basicamente em todas as unidades da federação. Especificamente no que tange ao sistema socioeducativo, entre 2015 e 2019, o órgão inspecionou 33 unidades de internação, percorrendo 23 estados. Ao final de cada visita, os integrantes do Mecanismo Nacional redigem um relatório, sistematizando as violações encontradas no espaço monitorado, assim como prescrevem recomendações aos responsáveis diretos e indiretos pelo espaço. O objetivo final destas ações é evitar que práticas de tortura continuem a fazer parte da vida das pessoas privadas de liberdade, o que ainda está longe de ser atingido, como discutido na seção a seguir.

 

Tortura no socioeducativo

Caso lesse os relatórios do Mecanismo Nacional sem se deter em específico sobre o tipo de unidade de privação de liberdade descrito, uma pessoa se depararia com problemas muito homogêneos. A superlotação, a falta de assistência à saúde, a violência física, o parco acesso à justiça, a precária infraestrutura física das unidades, bem como a ausência de oportunidades de estudo e de trabalho são alguns aspectos que afligem o cotidiano dos estabelecimentos onde indivíduos têm seu direito de ir e vir cerceado. Entretanto, é importante destacar que, se já são graves em uma unidade voltada a adultos, essas circunstâncias são ainda mais preocupantes em locais destinados a pessoas em fase de formação, como adolescentes.

Ao invés de serem tratados conforme os princípios da proteção integral, como estipulado pela Constituição, pelo ECA, pelo SINASE e por diversos outros documentos internacionais a esse respeito, o Mecanismo Nacional narra que o tratamento concedido aos adolescentes nada difere do conferido a indivíduos condenados pelo sistema de justiça criminal. No relatório do órgão sobre visitas realizadas a unidades socioeducativas do Ceará, por exemplo, local onde há poucos anos ocorreu uma série de rebeliões que retirou a vida de diversos adolescentes, indicou-se que os dormitórios do Centro Educacional Patativa do Assaré eram pequenos, com camas de concreto e um banheiro composto por um buraco na parede por onde sai a água, seja para tomar banho, seja para beber. Outra unidade visitada neste mesmo estado era, inclusive, nomeada de “Complexo Penitenciário de Aquiraz”, já que o estabelecimento destinado aos adolescentes era uma mera adaptação de uma antiga unidade prisional.

Problemas como esses costumam ser agudizados em situações de crise como a vivenciada durante a pandemia da Covid-19. Não é de se estranhar, então, que o Mecanismo Nacional tenha enviado em junho de 2020 um ofício ao governo de São Paulo, solicitando informações sobre denúncias relacionadas a casos do novo coronavírus nas unidades socioeducativas estaduais. O órgão mostrou preocupação com o isolamento inadequado de adolescentes que testaram positivo à enfermidade, já que um diagnosticado de quinze anos teria ficado em isolamento no banheiro de uma unidade Para além deste grave episódio, o órgão chamou a atenção também para a falta de atividades socioeducativas, ao uso obrigatório durante 24 horas por dia de máscaras e a incomunicabilidade entre os adolescentes e seus familiares. Por serem vivenciadas por pessoas ainda em fase de formação, todas estas situações podem ser consideradas tortura, devendo ser devidamente investigadas e coibidas, assim como seus perpetradores responsabilizados.

De fato, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou ainda em março de 2020 a Recomendação n° 62, cujo objetivo, no geral, é diminuir os níveis de superlotação de unidades de privação de liberdade, como prisões e centros socioeducativos. No entanto, as medidas previstas parecem estar longe de serem implementadas. Conforme boletim publicado pelo órgão em 6 de julho, entre junho e a divulgação do documento, ocorreu um aumento de 139,1% de casos confirmados em todo o Brasil, havendo 437 adolescentes e 1.378 servidores infectados. Como o país é um dos locais do mundo onde menos se faz testes para diagnosticar o novo coronavírus, não é exagero apontar que, talvez, esses números sejam muito maiores em relação ao exposto pelas estatísticas oficiais. Em outros termos, é bastante provável que muitos outros adolescentes estejam sujeitos aos efeitos da pandemia, sem receber, porém, qualquer assistência de saúde adequada.

São necessárias, pois, medidas urgentes para amenizar os efeitos da Covid-19 no sistema socioeducativo. A seguir, serão discutidas algumas ações tomadas neste sentido.

 

Mobilizações do Estado e da sociedade civil

Diversas organizações de Direitos Humanos têm entrado com pedidos de acesso à dados e providências durante a pandemia, a serem respondidos por responsáveis pelos estabelecimentos de internação para adolescentes. No caso de São Paulo, por exemplo, um conjunto de órgãos da sociedade civil [2] solicitou informações, com fundamento na Lei de Acesso à Informação (nº 12.527/2011), às instituições que compõem o sistema de garantia de direitos, como Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Justiça. O intuito é entender como estas instituições monitoram os efeitos da pandemia nos espaços de internação e saber as medidas executadas em relação a suspensão das inspeções.

Em resposta, as instituições disseram que mantiveram suas atividades à distância. As fiscalizações são realizadas através de telefonemas, e-mails com envio de questionários, vídeos-chamadas e reuniões virtuais. Neste sentido, o Ministério Público informou a criação de um Grupo de Trabalho no Gabinete do Procurador-Geral de Justiça, focado em articular e fomentar a atuação do órgão. Disse, por exemplo, buscar garantir o atendimento regular do adolescente na rede de saúde mental, ainda que de forma remota. 

Em adição, os promotores instauraram procedimento administrativo para acompanhar medidas e estratégias a serem adotadas pela Fundação CASA no enfrentamento da pandemia. No que tange às notícias de tortura e outras violações de Direitos Humanos cometidas contra os adolescentes, o Ministério Público indicou que recebe queixas presencialmente, pelo Disque 100, via ouvidoria, entre outros meios. Os casos são encaminhadas à promotoria de justiça com atribuição para apuração, mas não há registro dos números para fins estatísticos. Fica a dúvida, então, se efetivamente os fluxos estabelecidos funcionam devidamente.

Já o Tribunal de Justiça apresentou respostas semelhantes, afirmando que a fiscalização das unidades tem sido realizada por vídeos-chamadas. Os adolescentes são entrevistados de forma reservada e, em caso de denúncia de tortura, um expediente é encaminhado à Corregedoria Geral da Fundação Casa para apuração dos fatos. Quando pertinente, instaura-se inquérito policial. Ademais, se apresentar suspeitas ou confirmação de estar infectado pelo novo coronavírus, o adolescente é encaminhado ao hospital de referência e é realizada uma  comunicação ao juízo competente, a fim de viabilizar a possibilidade de substituição da medida socioeducativa de meio fechado por medida não privativa de liberdade, conforme Artigo 10 da Recomendação 62/2020 do CNJ. 

Por sua vez, a Defensoria Pública informou que o acolhimento às famílias é procedido à distância, por meio de um formulário. A partir da identificação da demanda, o caso é distribuído para atuação e para acompanhamento por defensor público com atribuição na infância infracional. O órgão disse, ainda, estar avaliando a retomada gradativa dos atendimentos presenciais, considerando a saúde de seus integrantes, dos adolescentes e dos familiares. 

 

Considerações finais

Em uma situação de “normalidade”, alheia à crise de saúde de ordem mundial, os adolescentes sofrem torturas sistemáticas em espaços de privação de liberdade no Brasil. Durante a pandemia de Covid-19, tal violação parece se agudizar, deixando-os em situação de grande vulnerabilidade e ainda mais distantes do olhar público, seja em face da suspensão das visitas familiares, seja em razão da restrição de inspeções realizadas por órgãos de controle. 

Neste contexto, a ação da sociedade civil tem sido fundamental, sobretudo ao pressionar determinados atores para que executem sua tarefa de fiscalização da medida socioeducativa de internação. No entanto, as instituições do sistema de garantia de direitos parecem adotar somente medidas de monitoramento quase protocolares, procedendo ditas “inspeções remotas”. É muito provável que ignoram aspectos centrais do cotidiano dos adolescentes em privação de liberdade, deixando-os sujeitos não só ao vírus, mas a outras circunstâncias torturantes, adjacentes a toda a conjuntura que atualmente enfrentam. 

Em outros termos, a lacuna entre o previsto pelas normas adotadas no Brasil e a prática da execução das medidas de privação de liberdade se aprofunda em cenário de pandemia, gerando mais sofrimento aos adolescentes internados e aos seus familiares. O novo coronavírus pode ser lido como uma espécie de lupa que causa efeitos ainda mais perversos à privação de liberdade, em contraste a contextos habituais. Parece, então, cada vez mais distante à aplicação da doutrina de proteção integral aos adolescentes, desprezando-se as prescrições estabelecidas pelo celebrado ECA, assim como por outras normativas nacionais e internacionais.

 

Mariana Chies Santos é Pesquisadora do NEV-USP; IBCCRIM

Maria Gorete Marques de Jesus é Pesquisadora do NEV-USP

Thais Lemos Duarte é Pesquisadora do CRISP/UFMG

 

Notas

[1] CUSTÓDIO, A.V. Teoria da proteção integral: pressuposto para compreensão do direito da criança e do adolescente. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul, 2008, n.29, pp. 22-43.

[2] O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), a Conectas Direitos Humanos, o Instituto Alana e a Associação de Mães e Amigos de Pessoas Presas (AMPARAR).