O Boletim Coletividades – Sociologia na Pandemia é uma iniciativa conjunta do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Departamento de Sociologia da UFSCar e busca apresentar contribuições das Ciências Sociais à compreensão sobre a presente pandemia de Covid -19. Periodicamente, serão publicados textos de pesquisadores que discutirão os efeitos da pandemia sobre diferentes dimensões da vida social.

Sociologia na Pandemia 20#

 

Solidariedade e políticas públicas: estratégias autônomas de prevenção e proteção em territórios periféricos nas cidades1

 

Por Tânia Guimarães Ribeiro e Daniela Ribeiro de Oliveira

 

Usando as lentes da sociologia para analisar os efeitos da pandemia enxergamos mais do que as estatísticas sobre o número de pessoas contaminadas e mortas nos mostram. Toda morte é social. Homens, mulheres, jovens, crianças, pessoas de grupos de risco fazem parte de um cenário no qual as escolhas para se protegerem do contágio não são meras opções para quem vive nas periferias do Brasil. A pandemia da Covid-19 nos provoca mais uma vez a enfrentar um dilema clássico: quais as causas que originam e mantém a solidariedade social? 

Em plena sociedade globalizada a reflexão deve considerar uma diversidade de questões que aprofundam o entendimento sobre o conflito de classes e demandam soluções diferenciadas para os novos e velhos problemas. A crise sanitária atual aprofunda a necessidade de pensarmos saídas que levem em conta as diferenças e as desigualdades sociais que impedem a (co)existência dos vários projetos de futuro dentro da sociedade brasileira. 

Observamos incomodadas uma aparente sensação de que a mídia corporativa e parte da sociedade brasileira somente agora descobrem a desigualdade na periferia. O longo caminho da desigualdade, sem a perspectiva interseccional, deixou de considerar demandas específicas dos diversos grupos sociais. As variáveis como cor/raça, gênero, pertencimento territorial, nem sempre são contempladas nas políticas públicas, em propostas homogeneizadoras e insuficientes. 

A discussão acirrada na internet, em redes sociais e sites da imprensa, questionando se a “economia deveria parar para salvar vidas” é um dos sintomas do abismo que apartam os territórios das favelas dentro das cidades. E como tal refletem dificuldades para a adoção de medidas de proteção que abarquem toda a sociedade. 

Os danos do moinho satânico que tanto sustentam a ilusão da autonomização do mercado frente a sociedade, quanto ampliaram as desigualdades sociais são bem conhecidas e analisadas pela sociologia crítica. E a crise da Covid-19 reaviva também o debate sobre a importância do Estado e das políticas púbicas para arrefecer os impactos na economia e, principalmente, garantir os direitos das pessoas. A “peste neoliberal” (Chomsky, 2020) [2] corrói os sistemas de proteção social e a democracia, e seus impactos — pela falta de saúde básica, de saneamento, de educação, de trabalho e renda — acentuam as discriminações “costumeiras” que estão evidentes em todos os lugares (Harvey, 2020) [3], e se ampliam nas periferias. 

Cabe perguntar: existe espaço para a construção de saídas autônomas e singulares para a crise provocada pela pandemia? Alguns territórios nas periferias brasileiras já pularam a frente na base do “é nós por nós mesmos”, buscando saídas possíveis, mobilizando suas redes de solidariedade, dentro e fora dos seus espaços, conforme observamos em Belém-PA e na capital de São Paulo.

 

A solidariedade possível – estratégias coletivas na periferia 

Desde o mês de março de 2020 acompanhamos por meio das redes sociais duas mobilizações sociais realizadas em duas capitais brasileiras, Belém, no norte do país, e São Paulo, no sudeste. Práticas que vem revelando como as pessoas, que moram e trabalham em lugares que nos acostumamos a chamar de periferia, criaram estratégias coletivas para o enfrentamento dos impactos decorrentes da Covid-19. 

Na capital paulista, as ações realizadas em Paraisópolis surpreenderam pelo grau de organização e pela amplitude dos projetos sociais postos em prática pela União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis (UMCP), fundada em 1983. Considerada a maior favela de São Paulo, Paraisópolis tem cerca de 100 mil habitantes e 85% desta população é formada por nordestinos, segundo o perfil da UMCP, no Facebook [4]. A repercussão de suas atividades vem chamando atenção da mídia, nacional e internacional, que indagam: “Por que Paraisópolis controla melhor a pandemia do que o município de São Paulo?”. 

Acompanhando por meio de suas redes sociais e a mídia local, ressaltamos as ações do coletivo Tela Firme, no bairro da Terra Firme, o sétimo mais populoso da capital paraense, com mais de 61 mil habitantes (IBGE, 2010). Sem tanta repercussão na mídia, as mobilizações locais se infiltram em outros bairros periféricos da cidade, como Jurunas e Guamá, por meio de uma rede de ações grafadas nas redes sociais pela hashtag #Covid19PeriferiasBelém. As postagens buscam dar visibilidade a outros coletivos da capital, divulgando as campanhas realizadas nos diferentes bairros, bem como mobilizar a sociedade informando sobre o impacto da pandemia nas periferias e em busca de doações. 

Por que Paraisópolis chamou tanta atenção da mídia e dos especialistas em políticas públicas nesse momento? Percorrendo a produção jornalística e publicações especializadas, nelas são ressaltadas a capacidade de organização coletiva da União de Moradores e suas ações autônomas para o combate à proliferação da Covid-19. E, em boa parte, são ressaltadas a ausência do Estado e a falta de políticas públicas de prevenção e combate a pandemia.  

Delineamos, nessa busca, ações e projetos da União de Moradores que sustentam as estratégias, particularmente, no combate a Covid-19. Criada há mais de 35 anos, a associação parece ter se beneficiado de uma aprendizagem social, construindo uma ampla rede de parcerias. Os projetos se desenvolvem com pequenos empreendimentos locais – restaurantes, comércio de alimentos, artesãs -, com organizações populares, ONGs, instituições governamentais, empresas privadas, entre outros. 

Essa rede de parcerias sustentou as estratégias de prevenção e redução do impacto na saúde dos moradores de Paraisópolis, com a atuação do voluntariado local. O território foi dividido por setores e o “presidente de rua”, eleito pelos vizinhos, é responsável pela divulgação de informações e por acionar redes de cuidados, identificando os doentes e os encaminhando para o atendimento médico. No apoio, contam com ambulâncias e equipe médica, contratados pela União de Moradores, e leitos de recuperação, ocupando duas escolas púbicas.

Numa outra ponta, e visando a geração de renda para os moradores, foram confeccionadas, por artesãs locais remuneradas, máscaras para que fossem distribuídas no local. Investiu-se no comércio local para a compra de itens das cestas básicas. As campanhas de financiamento coletivo buscaram distribuir recursos para que as empregadas domésticas pudessem ficar em quarentena, e, ainda, incentivou a compra de marmitas, em restaurantes locais, para a distribuição aos moradores em condições mais vulneráveis. Essa dinâmica de mobilização social tem sido apontada como a responsável pela menor taxa de mortes no local. Dados da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo mostraram que, no mês de maio de 2020, o índice de mortalidade pela Covid-19, em Paraisópolis, media quase um terço da média municipal. 

Não se pode perder de vista as diferenças econômicas e sociais que marcam esse território de 100 mil habitantes. E nem mesmo as diferenças de vivências dentro desse espaço, que não homogêneo. Então indagamos, esse modelo de mobilização é sustentável ao longo do tempo? E ele poderia sanar os déficits sociais dos grupos que ocupam o território das favelas? Respostas mais significativas requerem pesquisas mais aprofundadas e duradouras, mas são inspirações para a imaginação sociológica. E as experiências locais e suas estratégias singulares são parte desse processo, como vemos nos dois retratos aqui destacados.

Acompanhando as redes sociais (Instagram e Facebook) do Coletivo Tela Firme, organização social presente no bairro Terra Firme, observamos a sua capacidade de articular e mobilizar outras organizações e movimentos populares locais e nacionais [5], a fim de garantir doações para os moradores impactados pelo isolamento social. Os alimentos, kits de materiais de higiene e máscaras de tecido são distribuídos para os que perderam seu trabalho e fonte de renda e aos que já se encontravam em situação de vulnerabilidade. A campanha Terra Solidária dá nome a ação. Importante ressaltar que o foco original de atuação do coletivo envolve a elaboração de estratégias de visibilização e ressignificação da periferia a partir do audiovisual. O coletivo é um importante articulador cultural local e é responsável por mobilizar jovens da TF (Terra Firme) na produção cinematográfica, revelando sua realidade, seu território, seus anseios. 

As ações iniciadas a partir da campanha Terra Solidária, centrada no coletivo, tomou maior dimensão ao convergir na constituição da “Rede Amazônica de Solidariedade e Resistência”. Trata-se da articulação de 24 instituições de diferentes espectros em torno de campanhas para doação de produtos alimentícios e cujo mote é “doar é cuidar”. Uma característica comum dessas organizações sociais envolvidas na Rede Amazônica é sua trajetória histórica de movimento social, fundado em raízes de organização popular, com capilaridade nos territórios das periferias de Belém. Individualmente, as organizações sociais desta rede já atuavam em suas bases com ações de formação educacional; práticas religiosas, ação política e recreativa. 

A mobilização da rede se faz também pela elaboração de estratégias de prevenção e cuidados da saúde que se basearam em duas frentes: a informativa e a da constituição de um GT de Saúde – “Saúde Livre”. A informativa centrou esforços na confecção de materiais sobre as formas de prevenção da contaminação e na distribuição de máscaras confeccionadas por moradores participantes ou de outras organizações sociais locais. Voluntários envolvidos direta e indiretamente, com o coletivo distribuíram materiais no bairro e em pontos comerciais (feiras e mercados) que se mantiveram em funcionamento, mesmo durante o lockdown decretado na primeira quinzena de maio de 2020. 

Num segundo momento do isolamento, acompanhando os casos de violência doméstica e infantil, o coletivo elaborou material e passou a atuar no campo no combate a prática de violência que durante o isolamento aumentou vertiginosamente. A segunda ponta de ação é a formação do GT de Saúde que envolveu a atuação voluntária dos agentes de saúde do Programa Saúde da Família (PSF). Esses trabalhos foram pouco divulgados em suas redes sociais, não sendo possível identificar a real atuação no bairro da Terra Firme. Entretanto, no Jurunas, outro bairro na periferia de Belém que se articulou coletivamente para o enfrentamento da Covid-19, verificou-se que essa estratégia foi mais efetiva, na medida em que foram realizados atendimentos médico por equipe voluntária de saúde.           

Analisando os canais de divulgação das ações sociais organizadas pelo coletivo Tela Firme, não identificamos a participação de grupos empresariais, seja na doação específica para o combate ao Covid-19, seja em outras atividades rotineiras. Como apontamos, a rede de conexões foi estabelecida prioritariamente por movimentos populares cuja organização tende a pautar ações e discursos cujo conteúdo de resistência, de crítica social, e de reivindicação de políticas públicas escampam, em alguma medida, da lógica do empreendedorismo como referência de ação e como horizonte a ser atingido. 

Tentando refletir sobre como as ações dessa rede de coletivos e movimentos sociais significaram em termos de respostas aos impactos da pandemia, apontamos inicialmente o apoio imediato às famílias que perderam qualquer forma de geração de renda. Em fevereiro, foram divulgados dados da PNAD Contínua (2020) – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – pelos quais Belém lidera o ranking da informalidade no mercado de trabalho, tendo 62,4% dos trabalhadores atuando na informalidade. O coletivo segue com a campanha Terra Solidária, bem como segue com sua mobilização principal de denúncia contra a ausência de políticas públicas.  

Cabe considerar que arranjos como esses, enraizados na experiência local, podem iluminar a reflexão sociológica sobre os vários caminhos para a construção dos laços sociais e para a tomada de decisões no plano político. Essas experiências, além de originarem saídas genuínas para o sofrimento social, tornam-se referências para as futuras políticas púbicas voltadas aos territórios das favelas, sem prescindir da atuação do Estado. Pois os territórios das favelas guardam contextos e grupos sociais diferenciados. As distâncias entre as formas de organização social e atuação, as estratégias, a rede de parcerias e as ações entre os contextos regionais e locais – Paraisópolis e Terra Firme – são marcas a serem consideradas. A rede de mobilização nos bairros das periferias das duas capitais revela, de alguma forma, a expressão da fala rapper Emicida para quem “É nóis por nóis” na periferia. A afirmação do rapper revela-se na passagem de um dos moderadores da rede social do coletivo: “Só nós poderemos resolver por nós mesmo nossos problemas. Não esperar que ninguém faça, ou que caia do céu”.

 

Tânia Guimarães Ribeiro é docente da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA. 

Daniela Ribeiro de Oliveira é pesquisadora de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA.

 

Notas

[1] Essa comunicação é fruto de pesquisa exploratória realizada pelas pesquisadoras, que vêm desenvolvendo estudos nos temas sobre conservação ambiental, desigualdades, território e trabalho. A quarentena forçada implicou na continuidade da observação de campo por meio de pesquisas nas redes sociais. 

[2] Noam Chomsky et la peste néolibérale. Un entretien de Srećko Horvat avec Noam Chomsky [version texte]. Acessado em 20 de abril de 2020. Disponível em: https://la-bas.org/la-bas-magazine/textes-a-l-appui/noam-chomsky-et-la-peste-neoliberale. 

[3] HARVEY, David. “Política anticapitalista em tempos de COVID-19” que faz parte da coletânea DAVIS, Mike, et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.

[4] Fundação da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, disponível em http://www.facebook.com/ParaisopolisSP, acessado em 02 de agosto de 2020

[5] Esses são alguns dos movimentos sociais estiveram envolvidos na articulação e na campanha de doação os seguintes movimentos MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), SindPREVs Pará; instituições da Igreja Católica (Cáritas do Brasil, CNBB, Movimento EMAÚS), torcidas organizadas de times de futebol do Pará (Esporte Clube e Remo), CMP (Central de Movimentos Populares), Mirante do TF (Casa de Cultura do Terra Firme), UNICEF.


Sociologia na Pandemia 19#

 

 

A letalidade policial durante a pandemia de COVID-19 no Rio de Janeiro: desafios renovados para o enfrentamento ao problema [1]

 

 

Por Joana Monteiro, Eduardo Fagundes e Ramón Chaves

 

A discussão em torno da violência policial no Rio de Janeiro voltou ao centro do debate público em meio à pandemia de COVID-19. Após ações das polícias resultarem na morte de adolescentes e na interrupção de iniciativas solidárias em áreas pobres da cidade, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin restringiu a realização de operações em favelas durante a emergência sanitária provocada pelo novo coronavírus. Segundo a decisão, incursões policiais devem ocorrer apenas em casos excepcionais e sob comunicação imediata ao Ministério Público estadual.

Em contraponto ao juízo, a Secretaria de Estado de Polícia Civil (SEPOL) elaborou um documento que defende o expediente das operações policiais em favelas sob a alegação de que sua suspensão criaria uma “zona de proteção ao crime organizado”. De acordo com a nota, dado o cenário de “guerra” do Rio de Janeiro, no qual áreas do estado são controladas e disputadas violentamente por grupos criminosos armados, a estratégia de “combate frontal às organizações criminosas” se configura como a principal responsável por manter os indicadores criminais em patamares relativamente baixos nos últimos anos.

Afirmações dessa natureza são empregadas com frequência por operadores da Segurança Pública e levantam uma hipótese que precisa ser verificada por meio da análise de dados.  Identificar o impacto de uma intervenção requer estabelecer uma comparação entre áreas tratadas e outras não afetadas pela mesma medida, de modo que essas últimas possam servir de grupo de controle em relação às demais. Na ausência de um contexto que permita inferir causalidade entre os fenômenos, como no caso aqui analisado, é possível testar as variações locais de indicadores para reforçar ou enfraquecer hipóteses de causa e efeito. Isto é, podemos examinar se as áreas onde o número de mortes pela polícia mais cresceu são também aquelas que mais reduziram o crime nos meses correntes ou subsequentes. A hipótese de que o número elevado de mortes provoca a redução de crimes sairia fortalecida caso o padrão dos dados no nível local apresentasse essa correlação.

No entanto, exercícios econométricos que utilizam séries históricas de 2003 a 2019 demonstram que períodos de incrementos no uso da força letal pelas polícias no Rio de Janeiro estão associados, principalmente, a maior volume de apreensões de drogas e fuzis [2]. Não há associação estatística entre o aumento nas mortes pelas polícias e a redução de crimes como o roubo a patrimônio ou o homicídio doloso (Monteiro et. al. no prelo). Essa análise não invalida que, em determinados locais ou momentos específicos, o aumento da letalidade policial possa ter contribuído para a redução de crimes, mas contesta o êxito atribuído à estratégia de “combate frontal às organizações criminosas”.

Esse resultado é reforçado pela dissonância apresentada entre o comportamento dos indicadores criminais e o uso da força letal pelas polícias fluminenses no período subsequente à implementação das medidas de distanciamento social. Em estudo recente, ainda não publicado, observamos a partir de abril uma queda generalizada e sustentada dos índices de atividade criminal e de produtividade policial no Rio de Janeiro, especialmente nos delitos contra o patrimônio, nas apreensões de drogas e nos diferentes tipos de prisão, cujas ocorrências apresentaram níveis extremamente incomuns para o padrão anterior dos dados. A exceção a essa conjuntura foi representada pelo número de mortes por intervenção de agentes do Estado: imediatamente após a adoção das regras para reduzir a transmissão do Sars-CoV-2, esse indicador observou um aumento superior à média dos últimos quatro anos; a partir de maio, entretanto, assumiu um movimento de queda que se transformou em um desempenho extraordinariamente baixo em junho.

A Figura 1 mostra indicadores de roubo de rua, roubo de veículo, crimes violentos letais intencionais (CVLI) e mortes por intervenção de agentes de Estado. Padronizando-os para desvio-padrão em relação à média [3], é possível identificar quão forte foi a variação a partir de março. O nível zero indica as ocorrências que naquele mês apresentaram um patamar equivalente à média dos últimos cinco anos. Sob determinadas hipóteses estatísticas, quando uma variação apresenta dois desvios-padrão de diferença em relação a zero, seja para mais ou para menos, isso representa um evento cuja probabilidade de ocorrer é inferior a 5%.

Os roubos de rua e de veículo apresentaram a partir de abril registros inferiores a 2 desvios-padrão, patamar alcançado e mantido pelo número de homicídios desde maio. A queda de roubo de rua é superior a 3 desvios-padrão em média e, de acordo com o cruzamento de índices de aglomeração, foi mais forte nos bairros onde houve maior redução na movimentação de pessoas [4]. Contrariando o desempenho atípico apresentado pelos demais indicadores, as mortes por intervenção de agentes do Estado aumentaram 1,7 desvios-padrão em abril. A partir de maio, entretanto, o indicador entra em queda e assume um valor excepcional em junho, quando atingiu uma diminuição de 2 desvios-padrão da média.

A Figura 2 apresenta um conjunto de ações das polícias no Rio de Janeiro e demonstra que diversas medidas de produtividade policial apresentaram um declínio acentuado diante do novo cenário epidemiológico. Chama a atenção a queda de mais de 2 desvios-padrão no cumprimento de mandados de prisão e na apreensão de drogas em abril, mesmo mês em que as mortes por intervenção de agente de Estado dispararam na Região metropolitana.  A série histórica revela ainda dois movimentos opostos em 2020: um descolamento inicial entre indicadores frequentemente associados e, em seguida, uma reaproximação entre eles em junho.

O comportamento atípico da criminalidade violenta e da produtividade policial parece estar associado às circunstâncias excepcionais do momento, especialmente à retração sem precedentes no fluxo de pessoas em áreas do estado. Mas o que poderia explicar a manutenção no uso da força letal pelas polícias e sua queda brusca em junho? À revelia das dinâmicas criminais, a oscilação da letalidade policial sugere determinações estranhas à Segurança Pública.

Os registros de participação de policiais nas ocorrências de tiroteio na região metropolitana do estado, que são coletados e disponibilizados pela Plataforma de dados Fogo Cruzado, ajudam a interpretar esse cenário. As variações semanais nos episódios de confronto armado entre policiais e suspeitos são consistentes com o comportamento do número oficial de mortes por agentes do Estado. Após o primeiro decreto estadual com medidas de distanciamento social, há uma queda não sustentada na participação de agentes em tiroteios, que logo volta a patamares elevados em abril e nas primeiras semanas de maio. Em seguida, o número de casos dessa natureza entra em declínio e permanece extraordinariamente baixo nas semanas de junho, em consonância com o resultado atípico dos dados oficiais compilados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ).

O início do declínio coincide com uma reunião noticiada pelos jornais cariocas entre o governador Wilson Witzel e a cúpula da Segurança Pública fluminense. Nela, o chefe do executivo estadual teria determinado a interrupção das incursões em favelas durante a realização de ações humanitárias, suspendendo assim um dos pilares da política de “abate a criminosos” da qual ele próprio é um dos principais fiadores. Nas semanas seguintes, o volume de tiroteios envolvendo a polícia seguiu baixo após a decisão do ministro Edson Fachin de limitar as operações policiais em favelas. Esse último aspecto, em particular, foi extensamente abordado por diversos analistas, mas o comportamento atípico da tropa antes mesmo da judicialização da atuação policial reforça a necessidade de discutir a influência da linha de comando sobre o desempenho das polícias nas ruas. Isso é ainda mais relevante se considerarmos que o entendimento do STF se atém ao contexto epidemiológico atual, ao menos naquilo que tem de mais restritivo.

A pandemia de COVID-19 representa um choque que adiciona novos elementos ao entendimento do problema, ao mesmo tempo que enfraquece o argumento segundo o qual o “combate frontal às organizações criminosas” é uma estratégia eficiente e necessária. A reação das forças de segurança durante esse evento renova os esforços em investigar os procedimentos e os resultados da ação policial. É preciso examinar também quais são as ações realmente efetivas na redução dos índices de criminalidade violenta – embora menos visíveis e alardeadas, muitas delas estão em curso diariamente no Rio de Janeiro. Enquanto estivermos presos à “metáfora da guerra” (Leite, 2000), a prática desse discurso seguirá impondo custos extraordinários aos moradores de favelas sem, contudo, apresentar resultados convincentes para a Segurança Pública fluminense

 

Joana Monteiro é Doutora em Economia pela PUC-RIO e Professora da FGV/EBAPE

Eduardo Fagundes é Mestre em Economia pela PUC-RIO

Ramón Chaves é Mestrando em Ciências Sociais pela UFRRJ

 

 

Notas

 

[1] Esse texto foi publicado originalmente no Boletim Semanal Fonte Segura, edição 47, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A versão aqui disponível contém modificações pontuais.

[2] Esses resultados coincidem com o funcionamento prolongado no Rio de Janeiro de um tipo de ação policial centrado no confronto territorial e esporádico entre agentes de segurança e traficantes de drogas armados, o que Carolina Grillo (2016) denomina como “modelo de operações tópicas”.

[3] As análises empregam o conceito estatístico de Z-score, um recurso que padroniza a variabilidade dos dados e permite comparar indicadores que apresentam patamares discrepantes de ocorrência e de variação temporal. De acordo com essa métrica, quando o número de casos de determinado crime é igual a sua média histórica, o Z-score assume o valor zero (0). A diferença em relação a zero (0) é calculada em termos de desvios-padrão. Com isso, é possível identificar quão forte foram as variações a partir de março, quando as medidas de isolamento social foram implementadas no estado. Sob hipóteses estatísticas usuais, a presença de uma observação com mais de dois desvios-padrão de diferença para a média, seja para mais ou para menos, é um evento cuja probabilidade de ocorrer é inferior a 5%, isto é, um episódio bastante incomum à própria trajetória do indicador.

[4] Dados da sobre deslocamento na capital, disponibilizados pela empresa Cyberlabs, demonstram que as reduções mais expressivas de roubos de rua ocorreram nos bairros onde houve maior diminuição na circulação de pessoas.

 

 

Referências:

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Decisão sobre o pedido de Tutela Provisória Incidental na Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635/RJ. Requerente: Partido Socialista Brasileiro – PSB. Intimado: Estado do Rio de Janeiro. Relator: Min. Edson Fachin, 05 de junho de 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF635DECISaO5DEJUNHODE20202.pdf. Acesso em: 13 de julho de 2020.

 

ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Secretaria de Estado de Polícia Civil (SEPOL); Subsecretaria de Planejamento e Integração Operacional (SSPIO). Manifestação da SEPOL e SSPIO ao Exmo. Secretário Nacional de Segurança Pública acerca da decisão do Exmo. Ministro Edson Fachin na tutela provisória na ADPF 635. Julho de 2020.

 

MONTEIRO. J.; FAGUNDES, E.; GUERRA, J. Letalidade policial e criminalidade violenta. Artigo aceito para publicação na Revista Brasileira de Administração Pública. No prelo.

 

LEITE, M. P. Entre o individualismo e a solidariedade: dilemas da política e da cidadania no Rio de Janeiro. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 15, n. 44, p. 43-90, 2000.

 

GRILLO, C. C. Frontières tacites. Confrontations et accords dans les favelas de Rio de Janeiro, Confins, n. 28, 2016.

Disponível em: http://journals.openedition.org/confins/11246. Acesso em 15 de agosto de 2020.

 

 


Sociologia na Pandemia 18#

 

Ficar em casa, e agora? Experiências desiguais do isolamento social na pandemia

 

Por Fernanda Mallak, Isabela Vianna Pinho e Thalles Vichiato Breda

 

“Tudo bem, tudo na mesma, cada um na sua casa, né?”. Foi assim que Maria respondeu como estava durante esses tempos de pandemia. Moradora de um conjunto habitacional promovido pelo Programa Minha Casa Minha Vida (faixa 1- habitação de interesse social) em São Carlos/SP; titular do programa Bolsa Família e, atualmente, beneficiária do Auxílio Emergencial. Não são somente esses fatos que lhe asseguram estar em casa com seus filhos pequenos, mas também a infraestrutura urbana do local que reside e, sobretudo, as relações cotidianas com outras casas, pessoas e instituições. A situação de Maria se parece com a de outras mulheres negras que habitam as periferias brasileiras, no entanto, ter um teto para morar – e se isolar de forma segura – é uma realidade distante para muitas delas, especialmente no contexto atual. 

O coronavírus e a subsequente política de isolamento social nos provocam a repensar sobre diversas questões relacionadas à casa. Desde o início da pandemia, não cessam os questionamentos no debate público sobre quem pode ou não ficar em casa e sobre como são desiguais as experiências do estar em casa, principalmente durante esse momento tão singular e, sobretudo, quando dirigimos o olhar às casas mais vulneráveis – socialmente e materialmente. Aqui trazemos reflexões atentas às transformações e às consequências diretas em sujeitos, corpos e casas específicas – de mulheres pobres, em sua maioria negras, que habitam as periferias urbanas. A pergunta subjacente que nos serve mais como provocação do que a busca por respostas definitivas, é: ao olharmos para e a partir das casas, como se redesenharam as formas de habitar a vida ordinária em um contexto tão extraordinário?

Organizamos este ensaio, assim como olhamos para a casa, em três dimensões. Em primeiro lugar, quem tem um teto para morar e, hoje, consegue nele se isolar? Isto é, olhar para a casa como um direito humano e moradia digna. Em segundo lugar, a casa é, também, uma materialidade complexa que envolve tanto sua construção material, quanto o seu entorno. Aqueles que têm casa, como se dá o acesso à ela? As pessoas que nela habitam conseguem se manter seguras por um longo período? Em terceiro, a casa é um espaço de vida, de experiências, de convívio, com um conjunto de pessoas e coisas. Com quem e com o quê as pessoas contam para dar conta de suas vidas durante a pandemia? As casas são, ao mesmo tempo, um direito humano; uma materialidade complexa e um espaço de relações [1].

 

A casa como direito

A discussão da moradia enquanto um direito humano não é recente. Desde a Declaração dos Direitos Humanos da ONU de 1948 há o reconhecimento da moradia enquanto direito fundamental, que inclui a segurança para habitar com dignidade. O Brasil, signatário de todos tratados da ONU até então, também o garante constitucionalmente, inserido no rol dos direitos sociais (Art. 6º, CF 1988). Embora exista um abismo entre a legislação e a realidade, visamos compreender como a dimensão deste direito se dá frente à pandemia. 

Um primeiro ponto é de que a medida de isolamento social implica necessariamente em ter um lugar para se isolar, uma moradia. De acordo com um levantamento realizado pelo IPEA em 2015, estima-se que existem 101.854 pessoas em situação de rua no Brasil [2], só na cidade de São Paulo o total é de 24.344 em 2019 (SMADS, 2019) [3]. Pessoas para quem o pedido de “ficar em casa” definitivamente não ecoou, e não teria como ecoar, a realidade dos que habitam as ruas está longe das medidas sanitárias para a contenção do vírus. Com as ruas vazias e comércios fechados, o cenário tornou-se ainda mais dramático para a sobrevivência dos que dependem de recicláveis, das marmitas doadas, esmolas, de guardar carros, entre diversas outras práticas. Estes também encontram mais um recorte da exclusão diante da pandemia: para ter acesso ao auxílio emergencial é preciso ter documentação como CPF e comprovante de residência.

Outra questão a ser considerada é a segurança da posse, que consiste na possibilidade de se manter em moradias em “condições de irregularidade”. As remoções e despejos se tornaram processos estruturais e sistemáticos nas cidades (com ordens judiciais ou simplesmente ordens administrativas), acarretando instabilidade e transitoriedade dos locais de moradia. Os últimos meses não foram diferentes, como apontam os dados levantados pelo Observatório de Remoções (FAU/USP e UFABC): mais de 1.900 casas foram atingidas em pelo menos dez remoções ocorridas em todo o estado de São Paulo desde o início da pandemia do coronavírus[4]. Neste sentido, se por um lado identificou-se a correlação direta entre a contenção da pandemia e a não movimentação/fluxo de pessoas e coisas, contraditoriamente os modos de ordenar e legislar na periferia impuseram o deslocamento forçado de algumas pessoas e coisas. 

O fato de Maria conseguir estar em casa – diferentemente de outras mulheres em situação de rua, daquelas que perderam suas moradias em remoções ou de tantas outras que custam a pagar os aluguéis – se deve sobretudo às construções de habitações populares, que marcaram o contexto brasileiro na última década. Essas construções possibilitaram que diversas famílias tivessem maior acesso à moradia, muito embora se questione alguns fatores como, por exemplo, se as casas entregues são ou não dignas, se a infraestrutura da casa é adequada ao contexto do território, se houve ou não participação popular no processo de escolha e qual infraestrutura urbana do entorno dessas construções.

 

A casa como materialidade complexa

A casa também pode ser pensada como materialidade complexa, que envolve a sua própria construção material, a infraestrutura urbana do local, o acesso à ela, entre outros elementos. Se antes já não era novidade que muitas residências nas periferias urbanas possuíam condições físicas precárias, o contexto atual escancara tais condições, como a pouca circulação de ar, a qualidade do material da construção, os pequenos espaços que vivem muitas pessoas e as realidades de saneamento básico.

Conforme mostram os dados do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (2018), cerca de 16% dos brasileiros ainda não têm acesso à água tratada, ou seja, quase 40 milhões de pessoas. E aproximadamente 47% dos brasileiros, quase 100 milhões, vivem em localidades sem acesso à coleta de esgotos[5]. Isto significa dizer que essas pessoas não possuem recursos básicos para a prevenção recomendada pelas autoridades médicas, como as práticas de lavar as mãos e os alimentos. 

A depender do território em que a casa está inserida, existem também as dificuldades de deslocamento. A casa de Maria, por exemplo, está a seis quilômetros distante do centro da cidade. É até lá que precisa ir para retirar seus benefícios na Caixa Econômica Federal, atualizar o Cadastro Único, tentar cestas básicas ou passes de ônibus na assistência social ou, ainda, para buscar empregos e doações em outras instituições. Isto representa uma hora e meia de caminhada, ou meia hora de transporte público ou, menos, caso consiga uma carona. Assim, a gestão da casa também envolve a sua localidade e os acessos a outras casas, espaços e equipamentos públicos e privados.

A desigualdade também se reflete aqui, pois existem possibilidades maiores ou menores de readaptações na pandemia, seja por condicionantes propriamente econômicas, materiais, raciais, territoriais ou, também, pelas formas que as casas estão conectadas umas com as outras e com as instituições. O que fica evidente é que quanto mais conectada a casa está, maiores serão as possibilidades de isolamento [6]. 

 

A casa como relação

Outros problemas domésticos surgem quando a recomendação é ficar em casa por longos períodos. Não só pelas condições materiais descritas (que evidentemente já são muitas), mas também pelas relações familiares que conformam a própria materialidade das casas. O bem-estar das pessoas no interior delas pode ser perturbado pelo som alto da televisão, da internet, de alguma construção por perto, da limpeza, das crianças brincando ou das relações afetivas e sexuais. As rotinas precisam ser coordenadas e em muitas situações essa coordenação é inviável, pois as casas passam a incorporar outras atividades que antes se faziam fora dela como, por exemplo, a preparação dos alimentos que antes eram servidos nas merendas e a própria realização e auxílio das atividades escolares (grande parte delas impossibilitadas nesse formato de ensino remoto). 

A última dimensão, mas não menos importante, é pensar a casa em configuração, isto é, em relação às outras casas e pessoas. Ela não é uma entidade isolada, mas se faz a partir das relações sociais estabelecidas com outras casas, a partir das trocas e laços entre e, também, dentro das casas. As circulações de objetos, alimentos, e dinheiros são constantes, por exemplo; assim como as práticas cotidianas do cuidado, os empréstimos ou doações de mantimentos, as caronas para os deslocamentos, as colaborações na construção da casa, dentre tantas outras atividades que tornam impossível pensar a casa de modo isolado. Assim, as casas são espaços de existência comum [7], um lugar de experiências. E elas se reconfiguram a todo momento, em um processo social dinâmico, pois as relações sociais dentro/entre casas são construídas cotidianamente e ao longo do tempo. Relações essas que envolvem interdependências, solidariedades, afetos, bem como moralidades, obrigações, assimetrias e conflitos. 

Se, por um lado, as possibilidades de conexões entre casas e instituições tendem a diminuir, por outro as relações dentro delas se intensificam e, por vezes, se esgarçam. Os dados de violência doméstica durante a pandemia são representativos. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os casos de feminicídio aumentaram 22,2% entre março e abril em 12 estados do país, quando comparados ao mesmo período do ano passado. Só em São Paulo, estado em que o vírus se propagou primeiro, o aumento foi de 41,4% neste período e o crescimento das denúncias de violência doméstica por telefone cresceram 44,9% só em março. Ao mesmo tempo, houve a redução dos registros de crimes nas delegacias (denúncias presenciais), de lesão corporal dolosa (-25,5%) e de estupro (-28,2%). Sobre estes últimos, os estudos apontam subnotificações, que se explicam pela maior dificuldade em denunciar, já que as vítimas estão isoladas com os agressores. O estudo também revela aumento de 431% de relatos de brigas de casal por vizinhos em redes sociais entre fevereiro e abril deste ano [8].

Além das questões de gênero, a pandemia também escancarou o racismo estrutural brasileiro. Não por acaso os dados evidenciam que o risco de morte de negros por Covid-19 é 62% maior em relação aos brancos na cidade de São Paulo [9]. Neste sentido, sabemos que “não estamos no mesmo barco”, mas sim na mesma tempestade. As possibilidades e/ou bloqueios para uma menor ou maior exposição ao risco estão completamente relacionados aos “barcos” desiguais em que pessoas de diferentes classes, gêneros e raças estão inseridas.

Em um contexto em que os contatos entre pessoas e objetos são evitados, quando circulações e fluxos precisam ser interrompidos ou reduzidos, o que acontece com / entre / dentro das casas? “Tudo na mesma, cada um na sua casa”, como nos disse Maria, revela que ocorreram reconfigurações. A gestão do tempo mudou, a dinamicidade das trocas se alteraram, os fluxos de pessoas e objetos entre as casas foram, de certa forma, reduzidos, porém dificilmente seriam rompidos. Exemplos não faltam de organizações para doações nas periferias, a Central Única das Favelas (CUFA) é um caso exemplar. São as interdependências, as relações e as trocas entre as casas que tornam os mundos habitáveis, sobretudo neste contexto. Limitá-las, evidentemente, traz maiores dificuldades aos problemas domésticos, no jogo cotidiano de “manter a casa” e “ganhar a vida”. 

 

Notas finais: manter a casa e ganhar a vida (ou correr atrás)

Ter uma casa adequada, se isolar nela e ainda fazer home office é a realidade de poucos brasileiros. Para a maior parte da população, “manter a casa” e “ganhar a vida” significa “correr atrás”, trabalhar dentro e fora de casa, pegar transporte público, circular e se expor. Ao analisarmos os problemas domésticos a partir das duas facetas indissociáveis do “ganhar a vida” e “manter a casa”, assumimos que a esfera da casa não é separada da esfera do trabalho, da economia, do dinheiro. Como mostramos aqui, as casas não são isoladas, nem fixas, as relações e circulações dentro/entre elas e as instituições são muitas e fundamentais. 

Os mecanismos de transferência de renda trazem temperos para a economia doméstica. Eles têm um potencial de modificar esta dinâmica, especialmente por dois motivos: o primeiro ponto é que o dinheiro que circula no ambiente doméstico não necessariamente é oriundo do trabalho, ou seja, o consumo não necessariamente vem atrelado ao trabalho (ou outras formas legais ou ilegais de ganhar/fazer dinheiro); o segundo é que o dinheiro não passa pelas mãos do homem, chegando diretamente à mulher, como é o caso do Programa Bolsa Família.

Se por um lado, tais mecanismos visam uma certa autonomia, a mulher acaba adquirindo mais responsabilidades. Ao receber o dinheiro do Bolsa Família, as titulares precisam, ao mesmo tempo, se atentar às faltas e às vacinas das crianças. É paradoxal que a preferência dada às mulheres pelos programas sociais sejam acompanhadas de condicionalidades e de maiores responsabilidades. Agora, em tempos de pandemia, cabe a titular ter seu cadastro em dia no CadÚnico e enfrentar as longas e perigosas filas da Caixa para conseguir o benefício. Vale ainda a reflexão: quem estará olhando os filhos de Maria enquanto ela corre atrás de cadastros? Provavelmente outras Marias – aqui novamente observamos a casa em inter-relação com as outras casas que participam de sua construção – materialmente e simbolicamente. Na atual conjuntura de isolamento e distanciamento, cabe às mulheres, realizarem novos malabarismos para darem conta do “manter a casa” e o “ganhar a vida”, reconfigurados pela pandemia. 

A política do isolamento social incide de diferentes formas nas distintas camadas da população. A casa, elemento central aqui, pode variar na infraestrutura, tamanho da construção e localização urbana, que facilitam ou dificultam o “estar em casa”. Embora o direito à moradia digna esteja assegurado constitucionalmente, isto ainda não é uma realidade. Nas últimas décadas, mecanismos de transferência de renda condicionada e a produção de habitação social em massa parecem ter colaborado para amenizar a crise sanitária atual, embora não ataquem diretamente o problema estrutural da desigualdade social na sociedade brasileira. Neste contexto, a mulher negra e periférica é sujeito central tanto no “manter a casa” quanto no “ganhar a vida”. Central pois há tempos se tornaram chefe de família, responsáveis pela manutenção e gestão da casa, do cuidado dos filhos e familiares, do ganhar e gastar dinheiro. Há tempos “correm atrás” e despendem esforços cotidianos para tornar seus mundos habitáveis, inclusive em tempos extraordinários.

A pandemia escancara vulnerabilidades que já estavam postas historicamente. Há um acirramento delas, um crescimento da violência doméstica e um escancaramento do descaso com as vidas. As distintas experiências sobre as (im)possibilidades do estar em casa, mais uma vez revelam as faces tão presentes da desigualdade estrutural no Brasil.

 

Fernanda Mallak, Isabela Vianna Pinho e Thalles Vichiato Breda são discentes do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar

 

Notas

[1]  Tanto as três dimensões da casa; como a pergunta “com quem contamos para dar conta de nossas vidas” e, também, as duas facetas dos problemas domésticos (“ganhar a vida” e “manter a casa”) são ideias trabalhadas pela professora Marcella Araújo (2017; 2020) e por nós recuperadas aqui. 

[2] Estimativa da população em situação de rua no Brasil realizada pelo IPEA. Para acesso ao estudo ver: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/26102016td_2246.pdf. Acesso em 31/07/2020.

[3] http://www.capital.sp.gov.br/noticia/prefeitura-de-sao-paulo-divulga-censo-da-populacao-em-situacao-de-rua-2019. Acesso em 30/07/2020

[4] Mais informações ver: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/06/29/Como-a-pandemia-exp%C3%B5e-a-crise-de-moradia-no-Brasil. Acesso em: 29/07/2020

[5] http://www.snis.gov.br/painel-informacoes-saneamento-brasil/web/painel-setor-saneamento. Acesso em 30/07/2020

[6] Como destaca Motta (2020, p.3.), “As casas em que é possível melhor se isolar são aquelas que melhor estão conectadas: às infraestruturas urbanas (sistema de água e esgoto), ao ar livre (janelas, quem sabe, quintais), à redes de telecomunicação (internet), às instituições (registros que permitem acesso a direitos) e aos mercados.” 

[7]  Eugenia Motta (2020, p. 1), “Uso aqui a palavra comum nos três sentidos que ela pode suscitar. O primeiro é o que alude ao que é ordinário e cotidiano, o segundo diz respeito ao que é compartilhado, propriedade de muitos, e o terceiro conota a coincidência existencial e a constituição mútua de pessoas e delas com coisas e substâncias.”

[8] Mais informações ver: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/06/violencia-domestica-covid-19-ed02-v5.pdf. Acesso em 30/07/2020

[9] Mais informações ver:  https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,em-sp-risco-de-morte-de-negros-por-covid-19-e-62-maior-em-relacao-aos-brancos,70003291431. Acesso em 03/08/2020

 

Referências

ARAUJO, Marcella. A casa como problema e os problemas das casas durante a pandemia de Covid-19. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social – Rio de Janeiro – Reflexões na Pandemia 2020 – pp. 1-9.

ARAUJO, Marcella. Obras, casas e contas: uma etnografia de problemas domésticos de trabalhadores urbanos, no Rio de Janeiro. 292f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2017.

MOTTA, Eugênia. Ambiguidades domésticas e a pandemia. DILEMAS: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social – Rio de Janeiro – Reflexões na Pandemia 2020 – pp. 1-6.

 


Sociologia na Pandemia 17#

 

Tortura no socioeducativo em tempos de pandemia

 

Por Mariana Chies Santos, Maria Gorete Marques de Jesus e Thais Lemos Duarte 

 

Celebramos três décadas da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído através da Lei Federal nº 8.069/1990. Junto com a Constituição de 1988, o ECA mudou os paradigmas até então existentes nos antigos Códigos de Menores, passando da doutrina de situação irregular à da proteção integral. A primeira tinha como foco crianças e adolescentes em situação de abandono ou autores de ato infracional, concebendo ao Estado o papel de agente de tutela. Já a Doutrina da Proteção Integral, adotada pelas Nações Unidas desde 1989, abrange todas as crianças e os adolescentes, independente da classe a que sua família pertence. Isto é, estabelece que o direito deve ser defendido sem um julgamento sobre as condições de vida dos indivíduos (Custódio, 2008) [1].

A construção do Estatuto foi marcada pela intensa participação de movimentos da sociedade, sobretudo os ligados à defesa dos direitos da criança e do adolescente. Inspirado em tratados internacionais (como as Regras de Beijing de 1985 e a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989) e a Constituição de 1988, o ECA atribuiu à sociedade, ao Estado e à família o dever de assegurar os direitos da criança e do adolescente. Criou também órgãos e mecanismos de controle, voltados tanto à formulação de políticas públicas para a área da infância e da juventude, quanto à intervenção direta em situações de ameaça a direitos. 

Para além destes aspectos, esses marcos normativos apontaram para uma mudança em relação ao tratamento estatal dirigido aos adolescentes autores de ato infracional. Neste aspecto, a medida socioeducativa considera tais indivíduos como sujeitos de direitos e em desenvolvimento, devendo inseri-los na rede de proteção destinada à garantia de educação, da saúde, da assistência social, da convivência social e familiar, dentre outros. 

Em 2006, foi editada nova regulamentação, transformada em lei federal em 2012 (n° 12.594/2019), cujo objetivo foi criar um sistema nacional de acompanhamento da execução das medidas socioeducativas, nomeado de Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Assim, tanto as prescrições do SINASE, quanto as do ECA, constituem paradigmas centrais à garantia de direitos de adolescentes em privação de liberdade no Brasil. No entanto, há uma lacuna entre suas previsões e a realidade das instituições de internação espalhadas por todo território nacional, de modo que a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes constituem, muitas vezes, as rotinas de tais espaços. 

Em cenário de pandemia da Covid-19, as situações de violação podem ser ainda mais agudas e sistemáticas, sobretudo, porque foram proibidas temporariamente as visitas familiares em unidades de internação da maioria dos estados, assim como foram suspensas as inspeções realizadas por órgãos de controle externo, como o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Defensoria Pública, Ministério Público e juízes da Execução. Ao que parece, as mais altas autoridades ignoram que há outros canais de contágio com trânsito diário entre o fora e o dentro das unidades, como a equipe de servidores atuante nesses estabelecimentos. Dito de outro modo, os locais de internação se encontram, agora, ainda mais alijados do controle social, deixando os adolescentes que lá se encontram em situação de extrema vulnerabilidade. 

Logo, a proposta deste texto é dar visibilidade ao problema, bem como discutir as medidas travadas por órgãos do poder público e da sociedade civil para minimizar as violações de direitos, em especial, as situações de tortura, a que adolescentes privados de liberdade estão sujeitos durante a crise causada pelo novo coronavírus. Para fins de análise, serão usados documentos públicos sobre o sistema socioeducativo do Brasil e dados divulgados durante a pandemia, relacionados aos espaços destinados aos adolescentes privados de liberdade.   

 

Cenário brasileiro de políticas de prevenção à tortura

Quando  visitou o Brasil há duas décadas, o relator especial da ONU contra a tortura, Sir. Nigel Rodley, afirmou ter visto cenas aterrorizadoras: “Hoje, sim, eu posso dizer que o que eu sabia quando cheguei era apenas a ponta do iceberg“. Em uma das inspeções realizadas na Fundação do Bem Estar do Menor (FEBEM) de Franco da Rocha, Região Metropolitana de São Paulo, ele encontrou barras de ferro e porretes de pau na sala dos monitores. Colheu, então, depoimentos dos adolescentes e apresentou denúncia das situações torturantes detectadas. No entanto, o relator disse ter se sentido enganado pelas autoridades, pois soube que os adolescentes com quem conversou sofreram represálias e foram transferidos a outras unidades. Já os monitores acusados foram mantidos em suas atividades regulares.

Esse caso ilustra uma série de questões envolvendo a prática da tortura em espaços de privação de liberdade, em específico, em estabelecimentos de internação para adolescentes autores de atos infracionais. Como primeiro ponto, a visita do relator da ONU expôs algo que corriqueiramente acontecia na unidade e que certamente era de conhecimento da direção. Se não era o responsável direto pelas situações de violência vivenciadas pelos adolescentes, o gestor do local era, no mínimo, omisso. Não fosse a visita e o olhar crítico do relator a respeito dos instrumentos de tortura encontrados, nada teria sido indicado como problema. Como segundo ponto, é importante destacar o modo como as autoridades lidaram com os fatos apresentados por Nigel Rodley. Ao invés de os perpetradores da tortura serem devidamente investigados e responsabilizados – como preveem normativas sobre o tema -, os adolescentes foram punidos. A revitimização foi a principal medida adotada.

Desde essa visita do relator, o Brasil em alguma medida avançou na formulação e na promulgação de legislações voltadas ao enfrentamento à tortura. Talvez, a ação mais emblemática tenha sido a instauração do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, previsto pela lei 12.847/2013, constituído, entre outros atores, pelo Comitê e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Além de ambos os órgãos nacionais, o Sistema é formado também por Mecanismos Estaduais, os quais devem ser estabelecidos nas distintas unidades da federação. 

Tal ente nacional e os estaduais se fundamentam no Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, inserido no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto nº 6.085/2007. Sua função precípua é realizar visitas regulares a pessoas privadas de liberdade, a fim de verificar as condições de fato e de direito a que se encontram submetidas. Esses órgãos, portanto, têm a atribuição de monitorar unidades prisionais, centros de internação socioeducativos, instituições de longa permanência para pessoas idosas, hospitais psiquiátricos e qualquer outro lugar onde certo indivíduo esteja cerceado do seu direito de ir e vir, seja em decorrência de uma decisão judicial ou não. 

Em atuação desde 2015, o Mecanismo Nacional já visitou mais de 180 instituições de diferentes perfis, basicamente em todas as unidades da federação. Especificamente no que tange ao sistema socioeducativo, entre 2015 e 2019, o órgão inspecionou 33 unidades de internação, percorrendo 23 estados. Ao final de cada visita, os integrantes do Mecanismo Nacional redigem um relatório, sistematizando as violações encontradas no espaço monitorado, assim como prescrevem recomendações aos responsáveis diretos e indiretos pelo espaço. O objetivo final destas ações é evitar que práticas de tortura continuem a fazer parte da vida das pessoas privadas de liberdade, o que ainda está longe de ser atingido, como discutido na seção a seguir.

 

Tortura no socioeducativo

Caso lesse os relatórios do Mecanismo Nacional sem se deter em específico sobre o tipo de unidade de privação de liberdade descrito, uma pessoa se depararia com problemas muito homogêneos. A superlotação, a falta de assistência à saúde, a violência física, o parco acesso à justiça, a precária infraestrutura física das unidades, bem como a ausência de oportunidades de estudo e de trabalho são alguns aspectos que afligem o cotidiano dos estabelecimentos onde indivíduos têm seu direito de ir e vir cerceado. Entretanto, é importante destacar que, se já são graves em uma unidade voltada a adultos, essas circunstâncias são ainda mais preocupantes em locais destinados a pessoas em fase de formação, como adolescentes.

Ao invés de serem tratados conforme os princípios da proteção integral, como estipulado pela Constituição, pelo ECA, pelo SINASE e por diversos outros documentos internacionais a esse respeito, o Mecanismo Nacional narra que o tratamento concedido aos adolescentes nada difere do conferido a indivíduos condenados pelo sistema de justiça criminal. No relatório do órgão sobre visitas realizadas a unidades socioeducativas do Ceará, por exemplo, local onde há poucos anos ocorreu uma série de rebeliões que retirou a vida de diversos adolescentes, indicou-se que os dormitórios do Centro Educacional Patativa do Assaré eram pequenos, com camas de concreto e um banheiro composto por um buraco na parede por onde sai a água, seja para tomar banho, seja para beber. Outra unidade visitada neste mesmo estado era, inclusive, nomeada de “Complexo Penitenciário de Aquiraz”, já que o estabelecimento destinado aos adolescentes era uma mera adaptação de uma antiga unidade prisional.

Problemas como esses costumam ser agudizados em situações de crise como a vivenciada durante a pandemia da Covid-19. Não é de se estranhar, então, que o Mecanismo Nacional tenha enviado em junho de 2020 um ofício ao governo de São Paulo, solicitando informações sobre denúncias relacionadas a casos do novo coronavírus nas unidades socioeducativas estaduais. O órgão mostrou preocupação com o isolamento inadequado de adolescentes que testaram positivo à enfermidade, já que um diagnosticado de quinze anos teria ficado em isolamento no banheiro de uma unidade Para além deste grave episódio, o órgão chamou a atenção também para a falta de atividades socioeducativas, ao uso obrigatório durante 24 horas por dia de máscaras e a incomunicabilidade entre os adolescentes e seus familiares. Por serem vivenciadas por pessoas ainda em fase de formação, todas estas situações podem ser consideradas tortura, devendo ser devidamente investigadas e coibidas, assim como seus perpetradores responsabilizados.

De fato, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou ainda em março de 2020 a Recomendação n° 62, cujo objetivo, no geral, é diminuir os níveis de superlotação de unidades de privação de liberdade, como prisões e centros socioeducativos. No entanto, as medidas previstas parecem estar longe de serem implementadas. Conforme boletim publicado pelo órgão em 6 de julho, entre junho e a divulgação do documento, ocorreu um aumento de 139,1% de casos confirmados em todo o Brasil, havendo 437 adolescentes e 1.378 servidores infectados. Como o país é um dos locais do mundo onde menos se faz testes para diagnosticar o novo coronavírus, não é exagero apontar que, talvez, esses números sejam muito maiores em relação ao exposto pelas estatísticas oficiais. Em outros termos, é bastante provável que muitos outros adolescentes estejam sujeitos aos efeitos da pandemia, sem receber, porém, qualquer assistência de saúde adequada.

São necessárias, pois, medidas urgentes para amenizar os efeitos da Covid-19 no sistema socioeducativo. A seguir, serão discutidas algumas ações tomadas neste sentido.

 

Mobilizações do Estado e da sociedade civil

Diversas organizações de Direitos Humanos têm entrado com pedidos de acesso à dados e providências durante a pandemia, a serem respondidos por responsáveis pelos estabelecimentos de internação para adolescentes. No caso de São Paulo, por exemplo, um conjunto de órgãos da sociedade civil [2] solicitou informações, com fundamento na Lei de Acesso à Informação (nº 12.527/2011), às instituições que compõem o sistema de garantia de direitos, como Ministério Público, Defensoria Pública e Tribunal de Justiça. O intuito é entender como estas instituições monitoram os efeitos da pandemia nos espaços de internação e saber as medidas executadas em relação a suspensão das inspeções.

Em resposta, as instituições disseram que mantiveram suas atividades à distância. As fiscalizações são realizadas através de telefonemas, e-mails com envio de questionários, vídeos-chamadas e reuniões virtuais. Neste sentido, o Ministério Público informou a criação de um Grupo de Trabalho no Gabinete do Procurador-Geral de Justiça, focado em articular e fomentar a atuação do órgão. Disse, por exemplo, buscar garantir o atendimento regular do adolescente na rede de saúde mental, ainda que de forma remota. 

Em adição, os promotores instauraram procedimento administrativo para acompanhar medidas e estratégias a serem adotadas pela Fundação CASA no enfrentamento da pandemia. No que tange às notícias de tortura e outras violações de Direitos Humanos cometidas contra os adolescentes, o Ministério Público indicou que recebe queixas presencialmente, pelo Disque 100, via ouvidoria, entre outros meios. Os casos são encaminhadas à promotoria de justiça com atribuição para apuração, mas não há registro dos números para fins estatísticos. Fica a dúvida, então, se efetivamente os fluxos estabelecidos funcionam devidamente.

Já o Tribunal de Justiça apresentou respostas semelhantes, afirmando que a fiscalização das unidades tem sido realizada por vídeos-chamadas. Os adolescentes são entrevistados de forma reservada e, em caso de denúncia de tortura, um expediente é encaminhado à Corregedoria Geral da Fundação Casa para apuração dos fatos. Quando pertinente, instaura-se inquérito policial. Ademais, se apresentar suspeitas ou confirmação de estar infectado pelo novo coronavírus, o adolescente é encaminhado ao hospital de referência e é realizada uma  comunicação ao juízo competente, a fim de viabilizar a possibilidade de substituição da medida socioeducativa de meio fechado por medida não privativa de liberdade, conforme Artigo 10 da Recomendação 62/2020 do CNJ. 

Por sua vez, a Defensoria Pública informou que o acolhimento às famílias é procedido à distância, por meio de um formulário. A partir da identificação da demanda, o caso é distribuído para atuação e para acompanhamento por defensor público com atribuição na infância infracional. O órgão disse, ainda, estar avaliando a retomada gradativa dos atendimentos presenciais, considerando a saúde de seus integrantes, dos adolescentes e dos familiares. 

 

Considerações finais

Em uma situação de “normalidade”, alheia à crise de saúde de ordem mundial, os adolescentes sofrem torturas sistemáticas em espaços de privação de liberdade no Brasil. Durante a pandemia de Covid-19, tal violação parece se agudizar, deixando-os em situação de grande vulnerabilidade e ainda mais distantes do olhar público, seja em face da suspensão das visitas familiares, seja em razão da restrição de inspeções realizadas por órgãos de controle. 

Neste contexto, a ação da sociedade civil tem sido fundamental, sobretudo ao pressionar determinados atores para que executem sua tarefa de fiscalização da medida socioeducativa de internação. No entanto, as instituições do sistema de garantia de direitos parecem adotar somente medidas de monitoramento quase protocolares, procedendo ditas “inspeções remotas”. É muito provável que ignoram aspectos centrais do cotidiano dos adolescentes em privação de liberdade, deixando-os sujeitos não só ao vírus, mas a outras circunstâncias torturantes, adjacentes a toda a conjuntura que atualmente enfrentam. 

Em outros termos, a lacuna entre o previsto pelas normas adotadas no Brasil e a prática da execução das medidas de privação de liberdade se aprofunda em cenário de pandemia, gerando mais sofrimento aos adolescentes internados e aos seus familiares. O novo coronavírus pode ser lido como uma espécie de lupa que causa efeitos ainda mais perversos à privação de liberdade, em contraste a contextos habituais. Parece, então, cada vez mais distante à aplicação da doutrina de proteção integral aos adolescentes, desprezando-se as prescrições estabelecidas pelo celebrado ECA, assim como por outras normativas nacionais e internacionais.

 

Mariana Chies Santos é Pesquisadora do NEV-USP; IBCCRIM

Maria Gorete Marques de Jesus é Pesquisadora do NEV-USP

Thais Lemos Duarte é Pesquisadora do CRISP/UFMG

 

Notas

[1] CUSTÓDIO, A.V. Teoria da proteção integral: pressuposto para compreensão do direito da criança e do adolescente. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul, 2008, n.29, pp. 22-43.

[2] O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), a Conectas Direitos Humanos, o Instituto Alana e a Associação de Mães e Amigos de Pessoas Presas (AMPARAR).


Sociologia na Pandemia 16#

 

Percepções da Amazônia sob efeitos da pandemia

 

Por Rafael Carletti

 

A Covid-19 acertou em cheio a Amazônia. A disseminação do vírus SARS-CoV-2 encontrou ambiente propício para sua disseminação numa área que corresponde a mais da metade do território brasileiro. A Amazônia Legal, composta pelos sete estados da região Norte, mais a porção oeste do Maranhão e norte do Mato Grosso, tem mais de 5 milhões de km2, onde vivem aproximadamente 25 milhões de pessoas. A pandemia não era esperada, mas já são bem conhecidas e negligenciadas as condições precárias – ambiental e sanitária – em que vivem os amazônidas, que ainda contam com os piores indicadores socioeconômicos do país. Além disso, não bastasse estar historicamente alheia ao processo de desenvolvimento de bem-estar social conferido a outras regiões do Brasil, quem vive na Amazônia tem que lidar com as profundas desigualdades existentes dentro do próprio território. 

A começar pela infraestrutura hospitalar e rede de serviços médicos, as quais estão, em grande medida, concentradas nas capitais. Isso implica, na realidade amazônica e no contexto pandêmico, que o acesso a testes, diagnósticos, leitos de UTIs, respiradores e tratamento, coloca-se como um primeiro obstáculo para os moradores do interior e grupos sociais locais mais afastados das redes urbanas. O transporte fluvial, feito pelos barcos de recreio, principal meio de locomoção e via de acesso que comunica os interiores às capitais, teve suas operações proibidas por decreto no Amazonas, Pará e Amapá, os três estados com maior rede hidroviária do país. Uma medida importante que conteve a disseminação ainda maior da doença, mas que agravou, substancialmente, oportunidades de acesso ao sistema de saúde para quem não tem como se locomover.  Acre, Roraima, Tocantins e Rondônia, contam com uma malha viária mais abrangente, o que facilita o deslocamento e ameniza as distâncias nesses estados. 

A grande extensão da Amazônia fez crer, num primeiro momento, que a relativamente baixa densidade populacional e as longas distâncias entre os centros mais populosos e as comunidades mais afastadas, pudesse ser um fator positivo, que retardasse a disseminação do vírus. Porém, à medida que as comunidades mais distantes começaram a se infectar, o isolamento geográfico configurou-se como impossibilidade real de acesso a serviços médicos. Mesmo o isolamento social, recomendado como medida preventiva, é de difícil assimilação por essas comunidades, marcadas por relações intensas em torno da vida comunitária, além do alto grau de parentesco entre as famílias. 

Quanto mais distante das comunidades e mais próximo das grandes cidades, porém, a densidade demográfica aumenta vertiginosamente. Manaus e Belém, por exemplo, as maiores e mais populosas cidades da região Norte, devido a centralidade e importância nos fluxos de capitais, produção de bens e prestação de serviços, são consideradas, geográfica e politicamente, metrópoles da Amazônia, e apresentam, como em outras regiões do país igualmente urbanizadas, os mesmos problemas de aglomeração, circulação e grande concentração populacional em suas periferias.  Velhos problemas, como desmatamento, garimpo, queimadas e extração ilegal de madeira, agravaram a situação. Isso porque, geralmente, as pessoas envolvidas com essas práticas, mantêm um trânsito intenso entre pequenas cidades e as áreas onde essas atividades são desenvolvidas, tornando-se vetores em potencial do vírus. Segundo dados do INPE [1], 72% do garimpo ilegal registrado na Amazônia entre janeiro e abril deste ano, ocorreu em áreas protegidas, sejam Unidades de Conservação ou Terras Indígenas. 

A situação dos indígenas é especialmente grave, por conta do número reduzido de indivíduos remanescentes no Brasil (900 mil aproximadamente) [2] e devido ao extremo grau de vulnerabilidade – política e sanitária – em que se encontram esses povos. A Amazônia abriga a maioria das populações indígenas do país – 180 das mais de 300 etnias [3] – e comporta a maior parte das Terras Indígenas homologadas (98% de todas as TIs) [4]. Somado a isso, existem peculiaridades entre os povos. Há aqueles mais abertos ao contato e estabelecidos perto de centros urbanos, e que, portanto, mantêm relações já consolidadas com instituições não-indígenas; há povos que optaram pelo isolamento e residem em áreas mais afastadas, mas mantêm o mínimo contato com instituições governamentais, especialmente órgãos de saúde; e há os povos isolados, que negam qualquer tipo de contato.  Segundo a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), em maio, a taxa de letalidade das populações indígenas em todo o país era 2 vezes maior (6,4%) do que a média nacional registrada naquele mês [5]. A etnia Xavante, no Mato Grosso, uma das mais populosas e influentes no cenário político nacional, apresenta taxa de letalidade de 11,7%, um índice 160% maior que a atual média brasileira (4,5%) [6]. Além disso, há dificuldade em se fazer um diagnóstico mais preciso do número de casos, uma vez que 35% da população urbana na Amazônia se autodeclara indígena [7]. O governo federal, por sua vez, só contabiliza o número de casos confirmados em terras indígenas homologadas, corroborando com o problema da subnotificação. Um contrassenso do próprio governo pois este sabe que há terras indígenas em diferentes fases de análise, como por exemplo, “em estudo”, “delimitadas” ou “declaradas”, apenas aguardando a homologação.

Tantas características desfavoráveis reunidas num momento em que cada segundo é importante para salvar uma vida, fizeram o estado do Amazonas ser o primeiro do país a ter seu sistema de saúde colapsado um mês após a confirmação do primeiro caso, no dia 13 de março [8]. Logo após vieram Amapá, Pará e Roraima. Acre e Tocantins foram os menos atingidos até o momento. No mês de maio, segundo pesquisa do Instituto Cidades Sustentáveis [9], a região Norte tinha uma taxa de letalidade que era 13 vezes maior que a da região Sul. No auge da pandemia, Belém chegou a registrar 119 mortes por 100 mil habitantes, enquanto Porto Alegre registrava 4. Assim como aconteceu em outras grandes cidades do país, as iniquidades estruturadas durante séculos na Amazônia, logo expuseram os grupos sociais que estavam, e ainda estão, mais vulneráveis ao risco de contaminação e morte.  Povos indígenas, ribeirinhos (principalmente os que vivem em Unidades de Conservação) e a massa de trabalhadores das grandes cidades.

 

Garimpeiros, grileiros e madeireiros não fazem quarentena

A Amazônia brasileira, em plena pandemia, continua sendo área prioritária de desenvolvimento da expansão capitalista. Poucos lugares no mundo possuem condições ainda tão favoráveis ao avanço das forças produtivas e da produção e reprodução do capital como aquelas encontradas na Amazônia. A crise estrutural do capitalismo, aprofundou-se devido à pandemia e as previsões de seu agravamento nos anos subsequentes ao seu término, colocam-se como impasse para o processo de acumulação. Devido às incertezas futuras, para as elites econômicas nacionais e internacionais e oligarquias políticas que operam na Amazônia – mas não só -, o momento é de garantir a produção de excedente, não de ter complacência. “É passar as reformas infralegais, de desregulamentação, simplificação[…] e ir passando a boiada, ir mudando todo o regramento e simplificando normas” [10]. Em meio à Covid-19, “os neoliberais não choram” [11]. A bancada ruralista, que representa o setor do agronegócio no Brasil, tentou emplacar no mês de maio, a Medida Provisória 910/2019, a chamada MP da grilagem [12]. Caso fosse aprovada, a Medida regularizaria a posse de terras públicas griladas por pessoas físicas e jurídicas na Amazônia, cuja extensão poderia chegar até 2,5 mil hectares (2,5 mil campos de futebol). A MP foi derrubada mas virou Projeto de Lei (2633/2020) que voltará a ser votado. Outro PL (191/2020), enviado pelo Presidente da República ao Congresso em fevereiro [13], pretende liberar as atividades de mineração, pecuária, exploração de petróleo, gás e geração de energia elétrica em Terras Indígenas. Uma ofensiva que foi freada graças a mobilização da sociedade, justamente quando as graves ameaças a que estão submetidos esses povos, ficaram mais explícitas por conta da pandemia. Isso não impediu, entretanto, que uma grande empresa farmacêutica desembarcasse nas Terras Indígenas Yanomami e Raposa Serra do Sol, dentro do avião da FAB e distribuísse 66 mil comprimidos de cloroquina para os índios. [14].

Dentre vários momentos semelhantes a esse em que uma contradição se colocou para o processo de acumulação capitalista, dois deles se resolveram tendo a Amazônia como área prioritária de expansão. O primeiro, durante a ditadura militar, deu inclusive nome ao que hoje chamamos de Amazônia Legal. Em 1966, a Amazônia foi transformada em região que, da perspectiva geopolítica sobre intervenções militares, significa denominar impositivamente uma área/lugar passível de instrumentalização, de acordo com os interesses do Estado (VESENTINI, 1986). Os militares, como se sabe, resolveram esse problema promovendo a colonização da região por empresas privadas nacionais e internacionais, incentivando a degradação ambiental e a exploração indiscriminada de recursos naturais, principalmente madeira e minérios. Com a implementação da Zona Franca de Manaus, em 1967 – via incentivos e isenções fiscais – inseriram a Amazônia no prematuro processo de transnacionalização do capital (SERÁFICO e SERÁFICO, 2005). 

O outro momento se deu no início dos anos 1990, com a concretização da globalização do capitalismo e a disseminação da concepção neoliberal da economia, sobretudo nos países do chamado terceiro mundo. Conforme aponta Foster (2007), com a crise na atividade econômica baseada na produção durante os anos 1980, o excedente acumulado naquele período foi reinvestido não na produção de mercadorias, bens e serviços, mas no mercado financeiro. No Brasil e especialmente na Amazônia, viu-se mais uma vez a possibilidade de expansão a partir dessa modalidade de mercado, transformando a natureza e outros produtos em ativos.  As antigas drogas do sertão foram reinventadas e se tornaram commodities. Sem qualquer perspectiva de desenvolvimento nacional e reforçando o papel do Brasil como país fornecedor de matéria-prima, a produção de commodities garantiu o superávit primário do PIB brasileiro durante décadas, com quase metade desse valor sendo transferido para o pagamento da dívida pública, que opera via aquisição de títulos por fundos de investimento, de pensão, bancos nacionais e estrangeiros (LAVINAS e GENTIL, 2018). Das 35 principais commodities negociadas hoje no mercado financeiro, todas existem em termos de matéria-prima ou são produzidas na Amazônia, com exceção do xisto [15]. 

A opção pelo capital financeiro na Amazônia tem explicação e gerou consequências que puderam ser percebidas durante a pandemia. Foster (2007) e Soederberg (2013) ressaltam que a rentabilidade da atividade financeira é infinitamente maior do que aquela gerada pelos padrões clássicos, como a produção e o comércio, uma vez que a quantidade de capital que pode ser movimentada em um único dia é praticamente incalculável.  Por conta disso, ocorre maior acumulação e concentração de renda em menor espaço de tempo, às custas da retração salarial e aprofundamento das desigualdades socioeconômicas, fenômenos que demoram muito mais para se restabelecerem. Isso talvez nos dê uma pista para compreendermos os impactos devastadores da Covid-19 na Amazônia. O índice de Gini divulgado pelo último censo do IBGE [16], que mede o grau de concentração de renda de determinada localidade, aponta que a região Norte é a que mais concentra renda quando comparada com as outras regiões do Brasil. Além disso, o número de trabalhadores informais em todos os estados da região – exceto Tocantins – ultrapassa os 50% da população, e a renda média mensal dos amazônidas (R$ 837,00) é a mais baixa do país [17].  Esses dados evidenciam o que já vem sendo amplamente divulgado sobre o efeito das desigualdades na evolução da pandemia e ajudam a entender porque a Amazônia foi uma das regiões mais afetadas no Brasil.

 

Áreas (des)protegidas

Vários trabalhos publicados nos últimos meses, acadêmicos ou não, têm abordado o tema de como a pandemia “escancarou” determinados problemas da sociedade mundial. Ainda que de modo tardio, o fato é que muitas questões passaram a ser discutidas de forma mais contundente do que no período anterior à pandemia. No caso da Amazônia, é sintomático que os grupos mais atingidos, além da população urbana, são aqueles residentes em áreas protegidas, sejam elas Terras Indígenas ou Unidades de Conservação. 

O debate a respeito das condições nas quais vivem esses grupos, em espaços impostos política, geográfica e juridicamente, tem sido evitado há muito tempo pela academia, pelo movimento ambientalista e pelas organizações não-governamentais que atuam na Amazônia. Talvez esse seja um bom momento, principalmente quando se colocam em xeque as teses do Estado mínimo. Certamente, o modelo de áreas protegidas representa um avanço – apesar dos evidentes limites – no que diz respeito à conservação dos ecossistemas. É inegável, especialmente na Amazônia, a importância dessas áreas para a regulação do clima e manutenção dos ciclos biogeoquímicos para toda biosfera, sobretudo devido à emergência do aquecimento global.  Porém, as notícias divulgadas sobre povos indígenas e comunidades ribeirinhas dão conta da precariedade na qual vivem algumas dessas populações, revelando ausência de infraestrutura mínima por parte da União e dos estados, responsáveis pela gestão das áreas.  

As Unidades de Conservação de Uso Sustentável, que permitem a permanência de pessoas, consistem em universos bastante heterogêneos, com predominância de grupos sociais de característica camponesa, cujas relações de produção guardam semelhanças com formas pré-capitalistas. Ao mesmo tempo, tem-se nessas Reservas, pessoas que desempenham outros tipos de atividades, inclusive trabalhos formais, como professores, agentes de saúde, comerciantes, artesãos e turismólogos. Há pessoas que moram nas Reservas mas trabalham nas cidades próximas. De modo que houve um processo discursivo profundo exaltando uma certa tradicionalidade homogeneizante, que culminou na essencialização dessas comunidades, conferindo a elas um estado puro, típico das abordagens do século XIX sobre as “sociedades frias”, imóveis no tempo e presas àquele espaço. Tal operação discursiva, aliada à disseminação do conceito de desenvolvimento sustentável como saída neoliberal para enfrentamento – perpetuação – da crise do modo de produção, parece ter jogado esses povos de volta à época da colonização, imputando a eles uma autossuficiência inexistente na sua totalidade e absolutamente incompatível com a atual globalização da sociedade capitalista.  Isso, por conseguinte, eximiu a União e os estados de qualquer responsabilidade, cuidado, proteção, assistência e prestação de serviços públicos voltados para essas comunidades. Um exercício profícuo de apagamento das contradições das relações sociais, promovendo o apaziguamento e subvertendo a emergência de possíveis conflitos socioambientais que expusessem tais contradições, ao mesmo tempo em que se manteve e reproduziu a pobreza e miséria extrema em muitas dessas áreas (DIEGUES, 2008). 

Militares na Amazônia

A complexidade da Amazônia incomoda, atormenta e constrange os membros das Forças Armadas que fazem parte do governo federal. As dimensões cultural, social, econômica, ambiental, política e todo o pulsar de vida que envolve aquele lugar, são demais para o vazio de ideias que emana de uma instituição treinada para o combate, mas cuja guerra nunca chega. Diante da inércia que inutiliza, a solução, embora óbvia, mas nada animadora, é militarizar a Amazônia. Por isso, desde fevereiro, o Conselho Nacional da Amazônia Legal, órgão do governo responsável pela “implementação de políticas públicas relacionadas à Amazônia Legal”, é comandado por um General, o vice-presidente da República. Além dele, mais 19 militares fazem parte do Conselho, que excluiu a participação dos governadores da Amazônia, da FUNAI e do IBAMA [18]. Também não há nenhum representante de povos indígenas, comunidades ribeirinhas ou quilombolas. 

Durante a pandemia que ainda atinge a Amazônia, a única ação do Conselho no sentido de conter a disseminação do vírus, foi propor a instalação de postos avançados nas fronteiras com outros países, para evitar a entrada de pessoas infectadas. De um lado, o Ministério do Meio Ambiente promove o desmonte dos órgãos de fiscalização, do outro, o Conselho apaga os incêndios via decretos de GLO. O último decreto, que vigoraria até 10 de julho, foi prorrogado até 6 de novembro e pode durar até o fim do mandato presidencial [19]. O papel do Conselho, como começa a se desenhar, longe de qualquer plano de desenvolvimento para a região, parece priorizar o combate ao desmatamento e aos incêndios. Consequentemente, acalma os gestores de fundos internacionais, que veem no desmatamento e nas queimadas, práticas que afetam os rendimentos dos seus clientes. 

Quando esses dois fenômenos – desmatamento e queimada – ganham notoriedade, uma cadeia imensa de crimes já ocorreu. Ocupação e grilagem de terra, trabalho escravo, expulsão de colonos, posseiros e extrativistas e assassinato de lideranças. Além do mais, esses dois crimes são de fácil resolução, devido a excelente tecnologia de satélites brasileiros, capazes de informar com precisão, diariamente e em tempo real, onde esses crimes estão ocorrendo. Desmatamento e queimada são crimes e devem ser combatidos. A opção por focar nesses crimes, porém, não passa de cortina de fumaça, literalmente. O que importa, na Amazônia, é ter acesso e posse da terra. Se “o Estado é um ator fundamental para a implementação das políticas neoliberais, evidenciando os interesses que representa” [20], na Amazônia isso ocorre com a conivência histórica e autoritarismo próprio dos militares.

 

Rafael Carletti é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar

 

Notas

[1] PRESTES, Monica. Terras Indígenas e UCs federais concentram 72% do desmatamento para garimpos na Amazônia em 2020. Disponível em : https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/06/terras-indigenas-e-ucs-federais-concentram-72-do-desmatamento-para-garimpos-na-amazonia-em-2020.shtml?origin=folha

[2] Fundação Nacional do Índio. FUNAI. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/o-brasil-indigena-ibge

[3] Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br

[4] Fundação Nacional do Índio. FUNAI. Disponível em : http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas

[5] Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. APIB. Disponível em: https://covid19.socioambiental.org/

[6] Letalidade da covid-19 entre índios Xavantes é 160% maior que a média nacional. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Letalidade-da-covid-19-entre-indios-Xavantes-e-160-maior-que-a-media-nacional

[7] Qual a situação dos indígenas nos centros urbanos do Brasil? Disponível em : https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/03/15/Qual-a-situa%C3%A7%C3%A3o-dos-ind%C3%ADgenas-nos-centros-urbanos-do-Brasil

[8] Sistema de saúde do Amazonas entra em colapso com pandemia de coronavírus. Disponívl em: https://exame.com/brasil/sistema-de-saude-do-amazonas-entra-em-colapso-com pandemia-de-coronavirus/

[9] BARBON, Julia. Coronavírus mata 13 vezes mais no Norte do que no Sul. Disponível em : https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/coronavirus-mata-13-vezes-mais-no-norte-do-que-no-sul.shtml

[10] Fala do Ministro do Meio Ambiente durante reunião ministerial ocorrida no dia 22 de abril de 2020, amplamente divulgada pelos meios de comunicação. Disponível em : https://www.youtube.com/watch?v=BWDemNNMbeU&t=9s

[11] SAFATLE, Vladimir. A única saída é o impeachment. Disponível em : https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-03-20/a-unica-saida-e-o-impeachment.html

[12] FELLET, João. Como a ‘MP da grilagem’ pode mudar o mapa de regiões da Amazônia. Disponível em : https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51071810

[13] Disponível em : https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236765

[14] ZUKER, Fábio; COSTA, Emily; BRASIL, Kátia Missão com ministro da Defesa leva 66 mil comprimidos de cloroquina para indígenas de Roraima. Disponível em : https://amazonia.org.br/2020/07/missao-com-ministro-da-defesa-leva-66-mil-comprimidos-de-cloroquina-para-indigenas-de-roraima/

[15] Disponível em : https://br.investing.com/commodities/real-time-futures

[16]Disponível em : https://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores_pobreza_distribuicao_desigualdade_renda.html

[17] AMORIM, Daniela. Nordeste aprofunda desigualdade, diz IBGE; Norte tem perda generalizada de renda. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/05/06/nordeste-aprofunda-desigualdade-diz-ibge-norte-tem-perda-generalizada-de-renda.htm

[18] VALENTE, Rubens. Mourão forma Conselho da Amazônia com 19 militares e sem Ibama e Funai. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/04/18/conselho-amazonia-mourao.htm

 [19] GOMES, Pedro Henrique. Operação das Forças Armadas na Amazônia pode ser estendida até o fim de 2022, afirma Mourão. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/15/mourao-diz-que-governo-pode-estender-operacao-das-forcas-armadas-na-amazonia-ate-o-fim-de-2022.ghtml

[20] LIMA, Jacob Carlos; RANGEL, Felipe; PIRES, Aline Suelen. Combate ao Covid-19 e a falácia da política economicista. Sociologia na pandemia #1. Disponível em : http://www.ppgs.ufscar.br/boletim-coletividades-sociologia-na-pandemia-2/

 

REFERÊNCIAS

DIEGUES, A.C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: HUCITEC. 2008.

FOSTER, J.B. The Financialization of Capitalism. Monthly Review, 58: (11). 2007. 

LAVINAS, L.; GENTIL, D.L. A política social sob regência da financeirização. Novos Estudos CEBRAP, 37: (2). 2018. 

SERÁFICO, J.; SERÁFICO, M. A Zona Franca de Manaus e o capitalismo no Brasil. Estudos Avançados, 19: (54). 2005.

SOEDERBERG, S. The politics of debt and development in the new millennium: an introduction. Third World Quarterly, 34: (4). 2013.

VESENTINI, J.W. A capital da geopolítica. São Paulo: Ática. 1986.


Sociologia na Pandemia 15#

 

De volta para o futuro? O “retorno à normalidade” e o “pós-epidemia” [1]

 

Por Marco Antônio Gavério

 

Pensar sobre a pandemia e por dentro dela tem sido inevitável. Estamos sendo instados a pensar cotidianamente sobre o vírus, sobre a sua forma epidêmica, sobre seus efeitos ou resultados, imediatos e projetados. E esse pensamento e preocupação rotineira com a epidemia tem sido feito de forma coletiva pelos entremeios de múltiplas formas de isolamento social, de distanciamento, de “quarentena”[2]. Em suma, acreditando ou não no vírus, aceitando ou não as medidas e projeções que tem emergido para um contexto pós epidêmico, nós, pelo menos aqui no Brasil, já estamos completamente engolfados pela “pandemia”. 

Penso na ideia de ambiente, de “cultura” viral. Ou seja, as políticas de contenção epidemiológicas e socioeconômicas institucionalmente arranjadas no Brasil, objetivamente estão estendendo, no tempo espaço, a própria circulação do vírus e, consequentemente, a manutenção de seus múltiplos efeitos. Então, por considerar que estamos imersos em uma “cultura viral”, a partir de múltiplas contaminações, tem sido difícil ajustar os prismas para analisar esse momento de “crise”[3].

Assim, tenho experimentado formas de interagir analiticamente pelos entremeados de uma experiência epidêmica, que tem nos afetado inteiramente. Isso se dá, primeiro, pelo fato de que sobre o próprio vírus sabemos ainda muito pouco. As terapêuticas destinadas aos infectados, inclusive, são experiências com tratamentos para outras condições já existentes. Portanto, os próprios saberes biotecnocientíficos ainda não possuem muitos consensos sobre a contaminação e sobre a história natural do vírus em si. Com isso redimensionei o foco das indagações específicas sobre o covid-19 para questões sociológicas e históricas mais amplas sobre epidemias[4]. Nesse sentido, busco compreender como esse “ambiente epidêmico” que estamos inseridos está afetando, sociológica e politicamente, nossas formas de interagir, de circular, de produzir conhecimento, de trabalhar, de pensar e acessar os espaços de saúde. 

Ao mesmo tempo, tem sido inevitável observar algumas especificidades nesses tempos pandêmicos. Por exemplo, como as pessoas com deficiência estão sendo especificamente instadas a falar sobre o vírus, sobre questões de isolamento e distanciamento social, sobre como essa epidemia tem se acoplado às vidas com deficiência. E, nesse ponto, se misturam as questões e estratos que compõe os grupos de risco epidemiológico[5]. Contudo, não tenho observado diretamente a deficiência a partir da epidemia, ou a deficiência em contextos epidêmicos[6]. Dessa forma, minha tarefa tem sido analisar sociologicamente a epidemia através da deficiência e a reflexão que gostaria de experimentar aqui com vocês tem um certo sentido “econômico-político”. 

Ainda sabemos muito pouco sobre a real situação do nosso sistema único de saúde nesse período de epidemia. Ainda não sabemos efetivamente como os ambientes e espaços públicos de saúde estão suportando a própria epidemia cotidianamente nesse momento. Mesmo com os números oficiais de contaminados e mortos por coronavírus, muito se diz em subnotificação dos números de casos e óbitos. Contudo, também não é possível falarmos que o SUS está em colapso sistêmico – exatamente pela forma como os dados sobre saúde pública nesse momento epidêmico estão sendo produzidos, processados e distribuídos[7].  E isso, por outro lado, não significa negar que estamos em “processo de saturação” das capacidades dos nossos sistemas públicos de cuidado em saúde e seguridade social. Da forma como temos experimentado as formatações políticas para o cuidado epidemiológico em território nacional, há uma distribuição regional múltipla das próprias zonas de  maior risco de contaminação. Com isso, os próprios locais em que o os sistemas de cuidado em saúde já sentem a saturação dos seus serviços também tem se distribuído de forma espectral e com variadas diferenças entre estados e municípios brasileiros. 

Nesse sentido, saliento que uma das questões que foi rapidamente compreendida por inúmeros países, é que a taxa de letalidade do vírus dependia exatamente das capacidades dos sistemas de cuidado em saúde não se saturarem. Ou seja, a problemática do coronavirus é fundamentalmente econômico-politica: quanto mais rápida a resposta de contenção da circulação do vírus e quanto maior a capacidade de atender adequadamente as múltiplas demandas de saúde da população, menores tendem a ser a taxa de mortos e contaminados[8]. Aqui é muito importante a noção de “princípio da precaução”[9].  Isto é, quero destacar que a rápida resposta a epidemia, unida à manutenção e ampliação das capacidades dos sistemas de saúde e seguridade pública, são fundamentais para contê-la em lógicas biopsicossociais[10].

Contudo, e ao contrário do que muitos analistas tem apontado, a crise de saúde pela qual passamos não está inaugurando uma nova crise econômico-política. A crise epidêmica está se sobrepondo e se misturando a múltiplas crises pré-existentes. No caso brasileiro isso é visível. Focando somente na dimensão do sistema público de saúde brasileiro, desde 2016 o orçamento destinado a manutenção e expansão dos serviços públicos está sob uma política de “teto de gastos”[11]. Analistas econômicos e fiscais têm apontado, bem antes da epidemia, como essa política afeta a própria produção dos serviços públicos e sociais como um todo[12]. Recentemente, tem sido possível contabilizar que através desse teto, o sistema público de saúde perdeu em investimentos, de 2017 a 2019, 17,5 bi [13]. Agora em 2020, com a emergência da epidemia, 35bi foram empenhados pelo governo federal para serem gastos especificamente com o combate do coronavirus [14]. Contudo, de março até junho, somente 9 bi foram efetivamente gastos nesse enfrentamento. Ao mesmo tempo, como a ampla parcela dos gastos em saúde ficam a cargo dos estados, tem existido uma tensão entre esses entes e o governo federal para um maior ajuste nas contas públicas[15]. 

Assim, concordo com as análises que consideram que a “crise sanitária” advinda da atual epidemia “acelera”, “catalisa” e, com isso, modifica, crises que já estamos metidos há um bom tempo[16]. Aqui no Brasil cito o conjunto de desestabilizações que, pelo menos aparentemente, passaram a se desenhar desde 2013. Em resumo, há tanto uma múltipla crise – política, econômica, social, cultural – quanto uma constante sobreposição de “crises” e “instabilidades” em operação no Brasil [17]. Então, aqui no Brasil, já passamos por um processo de produtivas “crises endêmicas” em que a atual crise epidemiológica se mistura, acelera e modifica processos biológicos, sociológicos e geopolíticos e econômicos já em instabilidade. 

Portanto, penso que podemos analisar essa questão da “normalização”, da “volta à normalidade”, com relação a um suposto mundo “pós-covid”, nos perguntando: voltar pra onde? Voltar como? Ou seja, há uma proliferação, uma epidemia de narrativas, discursos e análises que estão já planejando o futuro a partir da própria incerteza do presente. E um futuro onde a noção de “normalidade” é um galvanizador. Dessa forma, parece que antes da epidemia de coronavírus tudo estava “normal”, tudo estava de acordo com o “previsto”, com o “típico”. 

Por exemplo, aqui no Brasil há até hoje uma disputa para a definição do que significou a deposição de Dilma Roussef em 2016.  Se foi Golpe ou um processo normal de nossa democracia, se foi um processo político ou o resultado de um processo jurídico-legal previsto na constituição. Sem entrar nesse mérito, o fato objetivo é que se instalou no Brasil um clima de “volta à normalidade” após o impeachment de Roussef. O governo interino de Temer foi considerado uma transição democrática importante e que culminou na democrática, pelo menos em tese, eleição de Jair Bolsonaro e seu governo de ocupação militar. Correlato a esses fatores, de forma mais acelerada, Temer, Bolsonaro e nossas casas legislativas, amplificaram medidas reformatórias de austeridade fiscal e econômica que já vinham em pauta desde o segundo governo Roussef. Nesse sentido, temos reformas nos direitos coletivos trabalhistas, reformas nos formatos de investimento público por parte do Estado (o teto de gastos) e a reforma previdenciária, que modificou regras de financiamento de aposentadorias e benefícios sociais de seguridade. 

Todos esses sistemas no Brasil são interligados no sentido do financiamento público. O fim de uma mínima proteção no direito coletivo ao trabalho afeta a forma como a previdência social será operada e a mudança no sistema previdenciário é afetada também pelas medidas que se colocam para conter os “gastos excessivos do Estado”. Trocando em miúdos, de forma indireta seria esse o cenário da “normalidade” a qual deveríamos voltar após a epidemia, segundo alguns analistas. Ao mesmo tempo, muitos e muitas economistas que eram completamente favoráveis a essas “reformas fiscais” do Estado, hoje são favoráveis a uma política “de crise pandêmica”, com uma mínima retomada do investimento público por parte do Estado na produção de bens materiais e na produção de bem-estar social. Ou seja, a sugestão  de que o Estado só deve intervir em sua Economia-política em momentos de “anormalidade”, como tem sido considerada a crise epidemiológica atual, reforça indiretamente duas coisas: que as reformas fiscais anteriores não eram “intervenções estatais” e foram extremamente necessárias devido a um período, mais anterior ainda, de disfunções econômicas, fiscais e políticas  produzidas nos últimos 15, 20 anos.

Em suma, considero que temos que observar de forma mais abrangente como a dualidade normalidade e anormalidade tem sido colocada em jogo em múltiplos locais. Com isso quero sugerir que a atual crise de saúde global não é algo estritamente novo por sua completa “anormalidade”, mas que sua “novidade” pode estar nas formas em que se reconfiguram momentaneamente as propostas de um “retorno à normalidade”, ainda um tanto quanto “etéreo”.

Finalizo essa reflexão dizendo um pouco sobre a questão das pessoas com deficiência nesse contexto endêmico de crises e choques econômico políticos. O primeiro ponto é que, devido ao peso histórico do Estado Nacional na produção de cidadania e de direitos sociais no Brasil, as “políticas de inclusão econômica-política” serão cada vez mais precarizadas devido aos processos de austeridade fiscal[18]. Nesse sentido, as políticas públicas e sociais que se voltam a população com deficiência são extremamente dependentes da estrutura interligada em sistema que conforma a administração pública brasileira. Isto é, às pessoas com deficiência são destinadas políticas públicas multifatoriais, como inclusão no mercado de trabalho, nos espaços regulares de ensino e aperfeiçoamento profissional, políticas de acessibilidade aos aparatos públicos e coletivos de cultura, mobilidade urbana e saúde, além de uma série de políticas seguridade social que garante um mínimo de subsistência as pessoas com deficiência extremamente pobres. 

Por mais que essas políticas sociais nos últimos anos tenham tido cada vez mais interferência daquilo que poderíamos chamar de “soluções de mercado”, o concerto dos limites entre o público e o privado estava minimamente na mão do Estado. Na sua capacidade de concatenar os agentes para a produção de políticas públicas minimamente pautadas pela consideração das diferenças em busca da equidade econômico-política das suas populações. Nesse sentido, mesmo que as políticas públicas brasileiras se baseiem em estratificações demográficas e epidemiológicas para definir populações específicas e produzir políticas públicas direcionadas, ainda temos no porvir a perspectiva da “universalidade do acesso”. Nesse sentido, no caso do sistema público de Saúde brasileiro, todos tem o direito ao acesso e cuidado em saúde. De certa maneira, é desse prospecto da universalidade como algo politicamente construído a todo momento, é que as políticas sociais específicas podem ser minimamente organizadas. 

Então, acredito que devemos tentar colocar em jogo uma certa metodologia deficiente (DOKUMACI, 2018), uma certa metodologia aleijada (MCRUER, 2006), para analisar criticamente, dentro dos contextos latino americanos, como as ideias de normal, anormal, particular, universal, incluído, excluído, público e privado estão se fazendo dentro de uma “gramática epidemiológica”. Uma gramática que também coloca em jogo a ideia da normalização, da “reabilitação”, como se o próprio mundo estivesse doente, incapacitado, deficiente e precisando de várias formas de tratamento para se “endireitar”, para “voltar a funcionar apropriadamente”. Acredito que através dessa perspectiva aleijada possamos colocar em prática o que o sociólogo Richard Miskolci (2009) chamou de “analítica da normalidade”, tensionando as dicotomias ontológicas normalidade e anormalidade, disfunção e funcionamento, incapacidade e capacidade.  Dessa forma, podemos tentar elaborar como buscar, politicamente, noções cada vez mais expansivas de acesso a saúde, trabalho, cuidado, educação, trabalho, lazer, cultura. 

Diferentemente do que muitos epidemiologistas e analistas tem dito ultimamente, a saúde e as questões advindas da epidemia são fundamentalmente econômicas, políticas e geopolíticas. Não podemos esquecer disso.

 

Marco Antônio Gavério é discente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

 

Notas

[1] Este texto é um desenvolvimento adaptado de uma apresentação que fiz na mesa redonda, em 3 de junho de 2020, intitulada “Nova Normalidade? Entre confinamentos e novas educações”. O evento online foi organizado na parceria com o GT de Estudos Críticos da Deficiência da CLACSO e com o departamento de pedagogia da faculdade de educação da Universidade de Antioquia, Colômbia. Agradeço a Alexander Yarza de Los Rios e a Ximena Cardona Ortiz pelo convite e possibilidade de diálogo com os e as camaradas da América Latina.

[2] nesse sentido, as conexões digitais estão sendo fundamentais, tanto no sentido de comunicação entre as pessoas, quanto na produção, disseminação e recepção de mídias, jornalísticas e acadêmicas, de informação múltipla, muitas vezes contraditórias, sobre a epidemia.

[3] Aproveito a recente reflexão que fez o professor Jose Luis Fiori que utilizou a metáfora da tormenta para figurar a crise epidemiológica que passamos. E para sugerir como é difícil nas tormentas pensar. A fala de Fiori está disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Sybi1A2R_qM&feature=youtu.be. Ver também a ideia de sermos afetados, da antropóloga Jean ne Favret-Saada (SIQUEIRA, 2005).

[4] Ver matéria para referências históricas: https://revistapesquisa.fapesp.br/um-pa%C3%ADs-se-faz-com-homens-sa%C3%BAde-e-doen%C3%A7as/ ; ver também: AYRES. Elementos históricos e filosóficos para a crítica da epidemiologia. Rev. Saúde Pública, 27: 135-44, 1993; LÖWY. Epidemics and populations Stud. Hist. Phil. Biol. & Biomed. Sci. 33: 187–194, 2002; STEPAN. Eradication – Ridding the World of Diseases Forever? Cornell University Press, Ithaca, New York, 2011

[5] Ver o texto: A (re)apropriação da categoria “grupos de risco” – da Aids ao COVID-19 –

e a permanência do estigma sobre sujeitos em contextos pandêmicos. Por Ricardo Andrade Coitinho Filho. http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2353-boletim-n-39-cientistas-sociais-e-o-coronavirus; ver também: HACKING, Ian. The Taming of Chance. Cambridge: Cambridge University Press. 1990.

[6] Ver os textos: Deficiência, Coronavírus e Políticas de Vida e Morte. Por Patrice Schuch e Mário Saretta; Deficiências e adoecimento crônico: permanências e atualizações trazidas pelo coronavírus. Por Carolina Branco Ferreira e Pedro Lopes. http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2349-boletim-n-35-cientistas-sociais-e-o-coronavirus; Conexões íntimas e corporalidades singulares: deficiência em tempos de pandemia da Covid-19. Por Helena Fietz, Anahí Guedes de Mello e Claudia Fonseca. http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2387-boletim-n-61-cientistas-sociais-e-o-coronavirus; O que a experiência do Covid-19 nos diz sobre deficiência, trabalho e acessibilidade? Por Bernardo Oliveira, Daniela Navarini e Valéria Aydos. http://anpocs.org/index.php/publicacoes-sp-2056165036/boletim-cientistas-sociais/2395-boletim-n-67-cientistas-sociais-e-o-coronavirus 

[7] No momento de escrita deste texto (12/6/20), De acordo com os números oficiais do Ministério de Saúde, no acumulado dos 800 mil casos confirmados, cerca de 345 mil pessoas já se recuperaram da contaminação e cerca de 415 mil estão sob cuidados médicos. Isso sugere que o Sistema de saúde pública brasileiro, mesmo com todas as suas dificuldades estruturais de financiamento, tem conseguido minimamente suportar a expansão da epidemia pelo território nacional. Ao mesmo tempo, o Brasil é um dos países que tem feito pouquíssimos testes em massa até agora, acumulando menos de 1,5mi de exames para detectar o coronavirus entre fevereiro e junho de 2020. Os EUA, por exemplo, que já somam mais de 2mi de casos confirmados, já fizeram 23mi de testes. Trazendo para as taxas de testes globais por milhão de pessoas, o Brasil, portanto, tem um índice de 6,42 de exames produzidos contra 71,1 de exames feitos nos EUA.

[8] Tangenciei essa discussão da “saturação dos sistemas” no texto “Covid-19 e as imunidades dos sistemas flexíveis” e que pode ser acessado no endereço: https://geict.wordpress.com/2020/04/08/covid-19-e-as-imunidades/ 

[9] ANDORNO, Roberto. “Principio de precaución”, Diccionario Latinoamericano de Bioética, J. C. Tealdi, coord., Bogotá, Unibiblos y Red Latino Americana y del Caribe de Bioética de la UNESCO, vol. II, 2008, p. 345-347

[10] Em 6 de fevereiro de 2020 foi decretada a lei 13.979 que dispôs sobre as medidas de enfrentamento a emergência da saúde pública causada mundialmente pelo coronavirus. nos dias 20, 22 e 23 março de 2020 essa lei foi alterada por três medidas provisórias. Respectivamente são as MP’s n° 926, 927, 928. Oficialmente, no Brasil, o primeiro caso de contaminação por coronavirus está registrado no dia 26 de fevereiro de 2020, com as primeiras medidas de restrição social e urbana emergindo em 11 de março de 2020. Contudo, com essa linha do tempo, quero destacar que de 6 de fevereiro a 11 de março parece ter sido um tempo muito longo de resposta efetiva dos governos federais e estaduais para aplicação dos protocolos de contenção da contaminação. Também não podemos esquecer que, oficialmente, na China o primeiro caso confirmado de contaminação pelo coronavírus está registrado em 10 de janeiro de 2020 e nos EUA em 20 de janeiro.  Nesse sentido, já há estudos que apontam que o vírus estava em circulação no Brasil desde janeiro desse ano. Para isso ver: https://portal.fiocruz.br/noticia/estudo-aponta-que-novo-coronavirus-circulou-sem-ser-detectado-na-europa-e-americas 

[11] Hoje Emenda Constitucional 95.

[12] ver: ROSSI, Pedro; DWECK, Esther; OLIVEIRA, Ana Luíza Matos de (Orgs.). Economia Para Poucos: Impactos Sociais da Austeridade e Alternativas para o Brasil. Autonomia Literária, 2018

[13] Ver: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1044-saude-perdeu-r-20-bilhoes-em-2019-por-causa-da-ec-95-2016 

[14] Ver: Teto não se sustenta no financiamento da calamidade pública em 2021. Por Élida Graziane Pinto. https://www.conjur.com.br/2020-jun-02/contas-vista-teto-nao-sustenta-financiamento-calamidade-publica-2021 

[15] é preciso lembrar que no caso da epidemia, o STF garantiu que a responsabilidade da contenção do vírus era dos estados, com suporte do governo federal. Ver: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/04/16/decisao-do-stf-sobre-isolamento-de-estados-e-municipios-repercute-no-senado 

[16] Ver: Rumo ao colapso. Artigo de José Luís Fiori e William Nozaki. http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597114-rumo-ao-colapso-artigo-de-jose-luis-fiori-e-william-nozaki 

[17] E esse é um processo que também se desenha desde a América Latina como um todo, e na mesma temporalidade.

[18] Para uma consideração sobre as dimensões da austeridade política e econômica com relação às questões da deficiência em lógicas globais ver: MCRUER, Robert. Crip Times: Disability, Globalization, and Resistance. New York University Press, 2018; BLOCK, Pamela. Activism, Anthropology, and Disability Studies in Times of Austerity – In Collaboration with Sini Diallo. Current Anthropology, volume 61, supplement 21, February 2020.

 

Referências

 

DOKUMACI, Arseli. Disability as Method: Interventions in the Habitus of Ableism through Media-Creation. Disability Studies Quarterly, v.38, n.3 (2018)

MCRUER, Robert. Crip Theory:  Cultural Signs of Queerness and Disability. New York: New York University Press, 2006.

MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. Sociologias (UFRGS), v. 21, p. 150-182, 2009

SIQUEIRA, P. “Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada. Cadernos De Campo (São Paulo 1991), 13(13), 155-161 (2005).


Sociologia na Pandemia 14#

 

GÊNERO, PROFISSÕES E HOME OFFICE NA PANDEMIA

Por Maria da Gloria Bonelli e  Rossana Marinho

 

As medidas de isolamento social voltadas para inibir a propagação do novo coronavírus produziram mudanças no funcionamento das instituições e têm se valido fortemente da mediação das tecnologias digitais. Uma das consequências foi o aumento da modalidade de home office para alguns segmentos profissionais. 

No Brasil, um estudo de mercado realizado pela SAP Consultoria em RH (2016), com 325 empresas de diferentes segmentos, apontou que 68% delas utilizavam algum tipo de teletrabalho [1], sendo que 37% adotavam o home office, principalmente na área de tecnologia da informação e telecom. Segundo a pesquisa, 1 em cada 13 funcionários praticava a modalidade home office. Em nota técnica publicada recentemente pelo IPEA [2], já se estima que o mundo pós-pandemia ampliará as atividades profissionais por via remota.

Se essa modalidade vinha apresentando expansão no país, com o isolamento social tal prática eclodiu, ganhando visibilidade nos meios de comunicação. Muitas reportagens mostram profissionais de nível superior em reuniões por aplicativos, no exercício do home office. Em várias matérias, prevalece a figura do profissional masculino branco, ilustrado por imagens que se distanciam da realidade brasileira. É o caso da divulgação dos resultados de uma pesquisa realizada com profissionais de empresas, a maioria startups, cuja ilustração é o pai usando o computador, com o filho no colo, sentindo-se produtivo, com boa estrutura em casa, embora os dados apontem que os entrevistados consideravam a presença da família e de pessoas próximas desfavorável ao trabalho remoto [3].  

Uma pesquisa recente sobre o teletrabalho e segmentação econômica (Neves e Cireno, 2020) procurou medir o impacto da Covid 19 como uma nova fonte de desigualdade, considerando o acesso ou não ao home office.  Os autores baseiam-se nos dados da PNAD Contínua de 2018 para estimar a probabilidade de homens e mulheres, negros e brancos, realizarem esse tipo de atividade, considerando a ocupação que tinham na PEA (população economicamente ativa). Foi identificado que as mulheres têm 31,2 % de alta probabilidade de fazerem home office, contra 18% para os homens.  Quanto à cor/raça, os resultados foram de 31% para os brancos e 17,5% para os negros. Tal acesso está relacionado ao grau de escolaridade mais elevado, produzindo exclusão para os homens negros e mais participação para as mulheres brancas. O trabalho remoto em domicílio manteve-se pouco visível até a pandemia. Feito majoritariamente por mulheres, ganhou o status social do lar, carregado de pressões do trabalho e da casa, que se sobrepõem ao longo do dia e entrecorta o foco nas tarefas profissionais.   

Os impactos da pandemia variam no tipo de ocupação e vamos focar em alguns grupos profissionais de nível superior, que estão realizando home office. Selecionamos profissões que apresentam composição de gênero diversa, o que permite a comparação entre elas: profissionais de tecnologia da informação (TI), carreiras jurídicas, acadêmicas e docentes do ensino médio.  Nas profissões jurídicas, as mulheres vêm ampliando sua participação, correspondem a 49.7% dos advogados inscritos na OAB, 40% dos docentes dos cursos de graduação em Direito e 37.3% da magistratura nacional. No meio acadêmico, as professoras universitárias são 45.5%, tendo crescido apenas 1% entre 2006 e 2016 [4]; estão distribuídas desigualmente entre as áreas, destacando a presença em Educação, Saúde e Bem Estar, Artes e Humanidades, Ciências Sociais, Jornalismo e Informação. Na docência do ensino básico como um todo, no Brasil, havia 81% de mulheres e no ensino médio essa proporção reduzia para 59.6%. Na área de Tecnologia da Informação, para profissionais e técnicos houve uma diminuição da participação relativa feminina, entre 2003 e 2014. Segundo Nunes (2016, p. 385), tal variação foi “de 25% para 17% para técnicos (principalmente programadores) e de 39% a 28% para profissionais (engenheiros de software e analistas de sistema, sobretudo)”.

O home office na área de TI já estava marcado por diferenças de gênero e raça antes do isolamento social. Trata-se de uma profissão com predomínio masculino branco, seja nos postos dirigentes (executivos e gerentes), nas posições intermediárias onde atua a maioria de profissionais (engenheiros e analistas) e nas funções técnicas (programadores). Abordando o trabalho remoto na pandemia, Castro (2020) destaca como homens e mulheres trabalhadores em TI têm percepções distintas sobre a produtividade no home office, com elas se sentindo improdutivas e eles mais produtivos. Segundo a autora, o conteúdo do trabalho e a forma como se usa o espaço da casa sustentam os sentidos dissonantes que encontrou nas entrevistas realizadas anteriormente à pandemia. Os homens informavam que recorriam ao home office algumas vezes na semana, para avançar em tarefas que eram mais difíceis de serem realizadas na empresa, devido às várias demandas de reuniões, de atenção à equipe e que isolados em casa, tendo a dedicação ao trabalho respeitada e às vezes um ambiente como escritório, conseguiam preparar relatórios e planilhas de execução sem interrupções. Se eles diferenciam o conteúdo do trabalho feito em casa e na empresa, elas fazem as mesmas atividades nos dois espaços: inserção de dados, desenvolvimento de código, revisão de produto final, calls. Trabalhavam na mesa de jantar, sem um espaço respeitado, sendo constantemente interrompidas por demandas da família, o que as levava a se sentirem improdutivas e exaustas. Embora já tivessem experiência nesse tipo de jornada flexível, na qual a empresa aciona a profissional na hora em que precisa, o contexto do isolamento social exacerbou a sobreposição das atribuições das mulheres, como também a carga mental e emocional que as acompanha.  

Quando o conteúdo do trabalho realizado por homens e mulheres é semelhante, possibilitando o controle do tempo, do espaço de trabalho remoto, do compartilhamento dos cuidados e afazeres da casa, a percepção por gênero sobre o teletrabalho se aproxima, o que tende a ocorrer nas posições superiores, com maior autonomia e poder profissional, como observado na reportagem sobre ampliação do home office após a pandemia, que relatava a vivência de uma diretora-presidente de uma consultoria na área de TI [5]. 

Sobre as profissões do Direito, as matérias têm dado preferência à elite jurídica, revelando junto com o home office um pouco do estilo de vida. Abordando a conciliação do trabalho e da vida privada [6], tema simbólico à profissionalização das mulheres que labutam, em uma das matérias o enquadramento enfocava apenas a perspectiva masculina: com o pai trabalhando na escrivaninha, participando das lições escolares das crianças, profissionais com escritórios bem equipados, bibliotecas pessoais, um deles degustando vinho no jardim de sua casa. Em outra imagem divulgada pela TV Justiça, pode-se ver o avô-ministro em sessão virtual do STF, com a neta entrando na cena, ao seu lado [7].  As imagens representam o “escritório em casa”, onde homens brancos especialistas, com espaço e condições confortáveis/apropriadas ao trabalho, se dedicam às suas atribuições. 

A pandemia colocou o home office em cena. Jogou por terra o mantra do ideário profissional que institui a fronteira entre casa e trabalho e, ao colocar os homens no ambiente residencial, alocou a prática remota para o espaço público. Expressões disso foram as diversas reportagens na grande imprensa sobre o home office da cúpula do sistema de justiça. Como isso ocorreu em um momento que há um contingente expressivo de mulheres profissionais, com uma parcela mobilizada na resistência à discriminação de gênero, a vocalização delas também ecoou. Elas buscaram cobertura jornalística para seu protagonismo, apontaram como as reportagens produziam viés implícito de gênero, que privilegia o home office masculino em detrimento do feminino, obtendo resultados na divulgação em  jornais e sites especializados.  Junto com o home office, mulheres profissionais deram transparência às formas sutis de desconhecer a relevância da contribuição profissional delas [8], repercutindo a força e o reconhecimento de que tal ausência precisava ser reparada [9]. Na representação das profissionais do Direito, há o registro das dificuldades de acesso e de estrutura para o trabalho remoto, do acúmulo da tripla jornada de trabalho, de cuidados e de tarefas da casa, sem o apoio da ida das crianças para a escola, do suporte de avós e da delegação do serviço doméstico às trabalhadoras [10]. Essa matéria dá alguma visibilidade às distintas condições de trabalho no isolamento social, no mundo do Direito feminino, destacando a presença de uma advogada negra, mãe solo, sem possibilidade de delegação dos cuidados com o filho, percebendo-se em prática profissional precarizada, exercendo a advocacia em um escritório que funciona em sua residência.   

Se há maior probabilidade de as mulheres realizarem home office, isso configura uma desigualdade no acesso às ocupações que realizam trabalho classificado como intelectual, em contraste àquele chamado de trabalho manual.  Assim, em uma perspectiva macro da estratificação ocupacional, o trabalho remoto exclui os trabalhadores negros, com menor escolaridade. Em uma dimensão intraprofissional, de menor amplitude, ao comparar especialistas da mesma profissão, o que salta aos olhos nesse recorte é o favorecimento dos homens brancos em relação às mulheres brancas. 

 

 O “escritório em casa”

 

Embora o home office seja mais feminino, quando traduzido para o português, o “escritório em casa” adquire uma roupagem mais masculina. A mulher trabalhando remotamente em sua residência raramente se refere a trabalhar em um ambiente dela, chamado de escritório. Muitas trabalham na mesa da sala, compartilhando-a com outros familiares, criança ou adulto que as interrompem na execução de suas atribuições profissionais com as demandas deles; outras, improvisam espaços em algum ambiente da moradia, usam o quarto, a varanda, o sofá, a cama, o corredor, o puxadinho, enfim, um canto onde realizam o trabalho intermitente. Se a mulher tem filhos pequenos ou em idade escolar, somam-se à sobrecarga de afazeres domésticos o acompanhamento da educação remota, o apoio emocional no isolamento, com a família confinada em um espaço ocupado o tempo todo. Os cuidados e a carga mental do apoio a parentes, alunos, colegas, também estão presentes para as mulheres profissionais sem filhos. A pandemia aumentou as tarefas de proteção a idosos e grupos de risco, ficando o vínculo e a maior parte do planejamento e execução desses cuidados com as mulheres. Além dessas complicações na gestão do cotidiano, as condições do home office tendem a ser mais desconfortáveis para quem não possui escritório em casa, havendo problemas de espaço, ergonomia, equipamentos, conexão, trabalhando com desconforto e interferência sonora, compartilhando dispositivos, realizando lives simultâneas das reuniões dos adultos e das aulas das crianças. 

A cena de um escritório em casa onde a profissional se instala sem ser interrompida com recorrência e dedica-se focada à execução de seu trabalho é rara, mesmo no isolamento social de profissionais de nível superior. Essa possibilidade tem relação com gênero, raça, posição na profissão, poder aquisitivo, faixa etária, espaço da moradia e pessoas na residência.  A maioria das imagens que simbolizam o home office douram a pílula, fantasiam sobre práticas do cotidiano, mostrando condições ideais pouco acessíveis. Isso pode resultar da motivação das empresas em dar visibilidade a seu perfeito funcionamento no atendimento de clientes, ao interesse em manter trabalho remoto para reduzir custos operacionais, e a própria descoberta dos profissionais que, na excepcionalidade da situação, usaram da criatividade no quadro de desorganização da emergência sanitária e conseguiram resultados satisfatórios.

Além das características que diferenciam o saber e o poder das profissões, o exercício profissional varia em decorrência das formas de organização e da natureza do trabalho, das bases de controle, entre outros fatores. O home office das carreiras jurídicas públicas, com garantias profissionais e alguma experiência em teletrabalho, se diferencia daquele da advocacia solo, nas empresas ou nas sociedades de advogados. Já os profissionais de TI têm maior familiaridade com o trabalho digital, podendo fazer uma transição para o isolamento social menos atabalhoada. Quanto aos professores, em especial os do ensino básico, muitos tiveram que aprender o uso de ferramentas e novos formatos de atividades didáticas para o oferecimento das aulas por meio remoto, além da disponibilidade de equipamentos pessoais. Entre as categorias abordadas aqui, essa é a mais feminizada, com jornadas intermitentes, acumulando os cuidados da família, da casa, da docência e do trabalho emocional de administrar os sentimentos decorrentes dessa exaustão. A administração das emoções representa uma jornada extra, que combina os códigos de gênero, encaixando na subjetividade essas regras de sentimentos. Nesse grupo, encontrar um “escritório em casa”, para separar o trabalho produtivo do reprodutivo, é difícil. Também são mais escassas as repercussões na imprensa sobre o home office da docência, na pandemia. O tema aparece em uma reportagem sobre profissões que enfrentam a exaustão, na qual entrevista um professor e o mostra trabalhando no sofá da sala [11].  As matérias sobre docentes no isolamento social têm mais visibilidade nos sites de Educação e neles observou-se a transposição de códigos de gênero da vida privada para a profissional, sumindo a expressão home office para se referir às atividades de ensino e aprendizagem, utilizando-se termos que remetem aos sentidos estabelecidos do feminino. Os textos nomeiam o exercício remoto da docência como “trabalhar em casa” [12], “escola em casa” [13], remetendo ao lugar de acolhimento e cuidado. Em vez de fotos de home office, o foco da câmera é mais fechado, mostrando o professor ou a professora e seu notebook, aparecendo pouco do ambiente. Em uma das matérias, percebemos um contraste entre as imagens que ilustram as condições de estudo e a de trabalho: os alunos em suas casas, dispostos em um espaço amplo e equipado enquanto uma professora aparece em um estúdio de gravação de aulas online, fora de casa. As representações sobre o trabalho docente, dispostas nas matérias analisadas, contrastam com as ilustrações e as narrativas dos demais grupos analisados.

 

A ciência no home office

 

Desde o início da epidemia de Covid 19, os cientistas vêm tendo grande presença nas mídias. Na TV, todos os dias eles e elas aparecem nas telas, a maioria em transmissões remotas de seus equipamentos em home office, comentando aspectos de saúde, sanitários, econômicos, sociais, entre outros, amplificando a confiança na ciência. Já as matérias sobre o trabalho dos  cientistas e docentes universitários na pandemia tiveram visibilidade inicialmente nos sites e publicações especializadas [14]. As formas como a rotina da ciência foram afetadas e deslocadas para casa são analisadas em sua diversidade e nos sentimentos ambíguos que os profissionais têm em relação ao trabalho nesse espaço. A diversidade de experiências e opiniões sobre o isolamento é extensa. Há aqueles que percebem a melhora na oportunidade para reflexão e a produção científica, homens e mulheres que se sentiam abarrotados de tarefas no ambiente acadêmico e encontram o tempo necessário. Vários sentiram a urgência de apoiar orientandos estressados com a interrupção dos seus projetos de pesquisa, tendo mais essa carga mental e emocional para lidar, além da produtividade acadêmica e da vida privada que se acumulou sob sua responsabilidade, como o apoio a parentes. Outros, viram-se extenuados pela sobreposição das atribuições de pesquisa, administrativas, didáticas, dos cuidados, dos afazeres domésticos, das aulas remotas de seus filhos [15] [16].

A relevância que a casa adquire no contexto do isolamento social ressalta as ambivalências nas relações de gênero. As formas como o exercício profissional na residência são nomeadas é um reflexo disso: home office, trabalho em casa, trabalho remoto, fazer ciência em casa. Tais matérias apresentam ilustrações e artes, mas não há fotos de especialistas trabalhando para a análise dessas representações. Cabe destacar que homens e mulheres são ouvidos, relatando suas experiências e visões sobre o fazer científico no contexto de isolamento social.

Outro aspecto que ganhou expressão e visibilidade foi o impacto da pandemia na redução da submissão de artigos por mulheres. O foco saiu do fazer ciência em casa para o não fazer ciência em casa.  O recorte do problema tomou como referência a preocupação de algumas publicações estrangeiras que registraram a diminuição na submissão. No Brasil, a pesquisa Parent in Science e o levantamento da Dados: Revista de Ciências Sociais também observaram o alargamento da distância na métrica da produtividade entre mulheres e homens [17]. No texto publicado na revista Dados [18],  a sobreposição do  trabalho produtivo e reprodutivo aparece em uma foto simbólica, sem crédito, de uma sala que tem em primeiro plano uma menina brincando, uma boneca ao seu lado e, ao fundo, uma pequena mesa de trabalho com uma mulher usando o notebook. A representação é bastante generificada dos sentidos do espaço da casa.  A pauta repercutiu no noticiário e os jornais deram cobertura ao tema, alguns carregando nas cores da improdutividade [19] [20]. Mulheres cientistas produziram análises críticas sobre os sentidos atribuídos às desigualdades de gênero na ciência, contribuindo com interpretações que não se restringiam à experiência da maternidade, problematizando a naturalização das representações sobre a casa e o trabalho em isolamento social, como aos prováveis retrocessos nas conquistas feministas como resultado da pandemia [21] [22].

 

Considerações finais

O contexto da pandemia realocou boa parte dos indivíduos para o ambiente domiciliar e nele fez coexistir jornada de trabalho e atividades domésticas e de cuidados, produzindo novas fronteiras, negociações e subjetividades. O home office, em tempos de pandemia, acabou por conferir visibilidade às forças que produzem a vida social no que dizem respeito à generificação e racialização das atribuições, sejam elas da vida privada ou ocupacional.

Segundo o levantamento realizado para nossa análise, a visibilidade online do “escritório em casa” associa-se à posição social da profissão e do status do profissional nela. Homens brancos da elite jurídica são privilegiados também nessa notoriedade, enquanto mulheres negras na advocacia solo expõem suas desvantagens na carreira e na vida privada, tornando públicas suas dificuldades. As mulheres profissionais brancas bem-sucedidas conseguiram reverter o apagamento, articulando sua contribuição destacada, ao mesmo tempo que assumiam os cuidados e afazeres da casa, questionando concepções de gênero que as mantêm imperceptíveis no rol de notáveis.   

Mesmo nas profissões de nível superior, a representação de experts negros e negras, bem como de profissionais em relações afetivas para além da heterossexualidade, ficam fora da cena no home office. A discriminação nestes casos não é sutil.  A presença das diferenças nas carreiras públicas e privadas no espaço acadêmico, jurídico, da educação básica ou de TI é uma realidade que exige reconhecimento social, dos pares e da mídia. Tornar o trabalho remoto dos especialistas visível ou invisível reflete as disputas dos grupos profissionais por sua imagem pública, sendo reforçada pelos enquadramentos realizados por sujeitos que respondem pelas reportagens e por matérias em sites. Não basta identificar o apagamento das diferenças na representação das profissões como um processo social de longa e persistente duração. É preciso atentar para as formas como nas interações cotidianas alguns colegas vão ficando de fora, são esquecidos quando lembramos de quem indicar ou sugerir para compor o panteão a ser consagrado.  

Observar o fenômeno do home office a partir da perspectiva de gênero e das diferenças nos permite visualizar como essa presença no grupo profissional requer mobilização contínua também por seu reconhecimento e visibilidade no teletrabalho, nas formas como enfrentam as várias jornadas e compartilham os afazeres da casa e dos cuidados.  

 

Maria da Gloria Bonelli é Docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

Rossana Marinho é Docente do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Piauí.

 

Notas

[1] Trabalho realizado fora da empresa, por meio e tecnologias móveis, seja em home office, trabalho de campo, centros compartilhados, trabalho colaborativo.

[2] Potencial de teletrabalho na pandemia: um retrato no Brasil e no mundo. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/200602_nt_cc47_mercado_de_trabalho_iii.pdf . Acesso em 15/06/2020

[3] Disponível em: https://vocesa.abril.com.br/carreira/78-dos-profissionais-se-sentem-mais-produtivos-trabalhando-remotamente/. Acesso em: 15/06/2020

[4] Os dados sobre advogadas são do quadro de inscritos (OAB, 2020); das magistradas (Bonelli e Oliveira, 2020); das professoras universitárias (Jornal da Unicamp, 2018); das docentes (Carvalho, 2018); das profissionais em TI (Nunes, 2016).

[5] Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2020/06/empresa-de-consultoria-na-area-de-ti-vislumbra-ampliar-o-home-office-depois-da-pandemia-ckawu7l5c00eb015n3ydpy1b4.html. Acesso em: 10/06/20.

[6] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/em-casa-procuradores-ministros-e-advogados-conciliam-processos-com-filhos-e-lives.shtml. Acesso em: 10/06/20.

[7] Disponível em:  https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/03/neta-de-marco-aurelio-mello-aparece-em-sessao-virtual-do-stf-durante-voto-do-ministro.ghtml Acesso em 10/06/2020

[8] Disponível em :https://www.conjur.com.br/2020-mai-23/daniela-lustoza-invisibilidade-mulheres-pandemia. Acesso em 12/6/2020.

[9] Em coluna da Ombudswoman da Folha de São Paulo, Flavia Lima abordou como a mídia e seus jornalistas contribuem com a construção de um imaginário masculino das profissões jurídicas.  Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/flavia-lima-ombudsman/2020/05/mulheres-invisiveis.shtml. Acesso em 12/6/2020.

[10] As fotos neste link permitem perceber distintas condições de trabalho no isolamento social, no mundo do Direito feminino, destacando-se a presença de uma advogada negra, mãe solo, fotografando o espaço compartilhado com seu filho: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/home-office-na-pandemia-amplia-desequilibrio-de-genero-na-justica.shtml.

[11] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/sobretudo/carreiras/2020/04/home-office-na-pandemia-pode-levar-profissionais-a-exaustao.shtml. Acesso em: 10/06/20.

[12] Disponível em: https://educador.brasilescola.uol.com.br/noticias/coronavirus-professores-falam-dos-desafios-e-vantagens-de-trabalhar-em-casa/33270.html. Acesso em: 10/06/20.

[13] Disponível em: https://desafiosdaeducacao.grupoa.com.br/depoimentos-sobre-escola-em-casa/. Acesso em: 10/06/20.

[14] Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/o-desafio-de-fazer-ciencia-em-casa/.  Acesso em: 10/06/20.

[15] Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/maes-na-quarentena/. Acesso em: 10/06/20.

[16] Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/pesquisa-na-quarentena/. Acesso em: 10/06/20.

[17] Disponível em: https://adunifesp.org.br/maternidade-e-ciencia-em-tempos-de-pandemia-casa-comida-e-artigo-publicado/?fbclid=IwAR0oL_S2ejVzNMk9-rLtxgdM–ioIRu8Oq4xZlM6YnfrqC2MoS-soqB3zpQ. Acesso em: 12/06/20.

[18] Disponível em: http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/. Acesso em: 10/06/20.

[19] Disponível em: https://oglobo.globo.com/celina/submissao-de-artigos-academicos-assinados-por-mulheres-cai-durante-pandemia-de-coronavirus-24428725. Acesso em: 10/06/20.

[20] Disponível em: https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,producao-cientifica-de-mulheres-despenca-em-meio-a-pandemia-de-coronavirus,70003306675. Acesso em: 10/06/20.

[21] Disponível em: http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-cientifica-feminista/. Acesso em: 10/06/20.

[22] SBS Convida: Gênero, trabalho e isolamento social, com Bárbara Castro (Unicamp), Bila Sorj (UFRJ) e Nádya Araújo Guimarães (USP e Cebrap)  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=3&v=lLvvWumn8pA&feature=emb_logo . Acesso em 19/06/2020.

 

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SAP Consultoria em Recursos Humanos (2016) Pesquisa Home Office Brasil 2016, Campinas,  disponível em  www.pesquisahomeoffice.com.br, acesso em 7/6/2020.

 


Sociologia na Pandemia 13#

 

A velha sociologia pós-pandêmica

Por Samira Feldman Marzochi

 

À minha sobrinha Anna,

quando, aos nove meses, descobriu os “haidis”:

os que vivem, movem-se, relacionam-se

 e não são gente. 

 

 

A emergência da Covid-19, tomada como um novo fenômeno ecológico global, longe de pôr em questão os fundamentos da sociologia clássica, revela o quanto estes são relevantes para a compreensão da pandemia e orientação das condutas. A rápida disseminação entre populações humanas, em ambiente urbano e cosmopolita, de uma virose provavelmente originária, como tantas, de animais, leva-nos a retomar algumas noções fundantes da sociologia, como as de fato social, totalidade social, consciência coletiva, representações coletivas e sensíveis, simbólico e imaginário, dualidade humana, fato social total, indistinção entre natureza e cultura, entre outras. 

Mesmo que a “natureza” ainda seja percebida, pelo senso comum, como o substrato material ilimitado à disposição das necessidades humanas, fundo comum e universal de que se destacam as culturas particulares, a sociologia, desde o seu início, esforça-se por demonstrar que não é a natureza a origem da sociedade, mas o sistema social que hierarquiza e classifica como natureza a aparência da cultura. Em outras palavras, “natureza” é cultura aparecendo, inscrição no interior do mundo da linguagem fora do qual nada existe, senão como real ainda não simbolizado. Quando o real se impõe de modo inelutável e produz crises sociais, ao exemplo da pandemia de Covid-19, o vírus Sars-Cov-2, até então desconhecido, imediatamente ganha representação e lugar simbólicos.   

As crises ecológicas impulsionam a tomada de consciência, embora efêmera, de que a “natureza” não designa somente a reserva inesgotável para uso e descarte de dejetos, ou o ambiente externo e estranho à cultura e à tecnologia, mas também o interior do mundo social. Apenas submetida aos riscos extremos, gerados por seu modo de produção, consumo, e circulação mundial de pessoas e mercadorias, a sociedade contemporânea percebe o que a sociologia durkheimiana, desde o início, aprendeu com as filosofias aborígene e ameríndia: que não estamos separados da natureza e fazemos parte de uma só humanidade. A teoria sociológica se desenvolve ao abrir-se às formas ditas não ocidentais de pensar o mundo social, bem como aos outros ramos do conhecimento científico. 

Biólogos e infectologistas podem explicar de que modo algumas gripes e epidemias que acometem, periodicamente, populações humanas em âmbito mundial, resultam da produção e consumo de carne em larga escala, do confinamento de grande contingente animal em pequenos espaços, e do consumo ou aproximação, demasiada e inadequada, de animais silvestres. São doenças virais graves, de origem animal e altamente contagiosas entre as populações humanas, que estão associadas ao desmatamento, urbanização, crescimento populacional e globalização econômica. São, inicialmente, zoonoses, doenças animais transmitidas aos humanos pelos vírus que “saltam” de uma espécie à outra. 

Pesquisas científicas indicam que o vírus Hendra, originário de morcegos, foi transmitido de cavalos para pessoas na Austrália; que o Hantavírus e o Lassa, causadores de febre hemorrágica, surgiram de roedores; que o vírus da Febre Amarela teve macacos como reservatório; que o vírus Influeza foi transmitido de pássaros selvagens para aves domésticas e, em seguida, para pessoas (gripe aviária), às vezes depois de uma transformação na passagem pelos porcos (gripe suína). Há, ainda, a hipótese de que o sarampo tenha surgido de ovelhas e cabras, e o HIV-1 de chimpanzés. Em 29 de junho deste ano de 2020, a imprensa internacional noticiou a descoberta de um novo vírus da linhagem do Influenza, de potencial pandêmico, entre trabalhadores de matadouros e da indústria suína na China. 

Mas os morcegos, que abrigam variações do coronavírus, seriam o reservatório privilegiado de uma grande fração de outros vírus transmissores de doenças como Marlburg, Raiva, Ebola, Nipah, Tioman, Melaka, Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave, transmitida pelo Sars-CoV-1) e, muito provavelmente, da Covid-19 (transmitida pelo Sars-CoV-2), mesmo que tenha passado por um outro animal, o pangolim. Os vírus, em particular, não são microrganismos, como as bactérias, porque dependem das células de seres vivos para se replicar, mas sim invólucros de informação genética em constante transformação e que participam, ativamente, do processo de “seleção” e “adaptação” das espécies.  

Em última análise, são as invasões humanas dos territórios onde se concentram espécies animais, e as relações interespecíficas abusivas, a origem das mais importantes epidemias transmitidas pelos “novos” vírus que encontram o organismo humano indefeso, livre de anticorpos. Em contínua evolução, os vírus se mantêm infecciosos, enquanto nós permanecemos suscetíveis. Por isso uma sociologia pós-pandêmica, ainda que seja a mesma velha sociologia, não deveria eximir-se de priorizar a dimensão ecológica, a saúde humana, animal e vegetal, como decorrências das formas culturais de organização, produção e reprodução da vida material. Para tanto, deve ampliar a noção de relações sociais, tão cara a esta disciplina, às relações interespecíficas. 

O descentramento operado pela sociologia durkheimiana que, num primeiro momento, abala o pensamento moderno ao questionar a ideia de consciência e de razão centradas no indivíduo, para substituí-la pela noção sociocêntrica de “consciência coletiva” ou de razão centrada na sociedade, e que, mais tarde, desdobra-se em inconsciente e linguagem, pela via estruturalista e pós-estruturalista, caminha, agora, em direção ao ecocentrismo. Se a sociologia descobriu que “o homem é duplo” e ofereceu à psicanálise lacaniana as ideias elementares para se conceber o Sujeito como a porção coletiva do indivíduo, sendo esta a própria totalidade social inconsciente estruturada como linguagem, está a um passo de afirmar que o Sujeito é, também, a dimensão coletiva que atravessa os indivíduos das outras espécies. 

O que denominamos natureza seria, portanto, o inconsciente em movimento. Embora as outras espécies não falem como nós, é inegável que todos fazemos parte de um sistema comunicativo que a infectologia, entre outras disciplinas, pode comprovar: uma estrutura comum e universalmente válida da atividade inconsciente que a linguística confirma ao descobrir que, apesar da imensa diversidade de línguas humanas, há muito poucas leis fonológicas que valem para todas as línguas. Este lugar de encontro entre o Sujeito e o Outro, entre natureza e cultura, o inconsciente, seria o fundamento da intersubjetividade. É por meio dele que o outro deixa de ser mera projeção imaginária do eu. Deste modo, o inconsciente não é mais considerado o refúgio das particularidades individuais e adquire função simbólica.

Se a estrutura não pertence à consciência, mas ao comportamento, o Sujeito é da ordem do efeito, não da substância. Para a psicanálise pós-estruturalista, até mesmo na observação de comportamentos animais é possível admitir a existência de Sujeitos e de intersubjetividade. Neles se esboça um simbolismo coletivo, ainda que nada indique, é claro, a presença de especulação filosófica. A sociologia permite que se entenda o Sujeito, de forma geral, como aquele dotado de intencionalidade, que ocupa um ponto de vista ou um ponto de vista pressuposto, definido pelo olhar do Outro, e que varia segundo a especificidade dos corpos, afetos, afecções ou capacidades, modos de ser que constituem um habitus. Estes pontos de vista, no entanto, não são fixos, mas transitórios. É possível ocupar o ponto de vista do outro através da personificação, incorporando a natureza própria de outro círculo perspectivo. O Sujeito é, portanto, descentrado, perspectiva relacional. 

Esta nova etapa do descentramento sociológico exige, mais que as anteriores, a intensificação de uma característica própria da ciência, entendida como linguagem universal, que é a capacidade, não apenas de se colocar em dúvida, mas de abrir-se ao diálogo com outras fontes de conhecimento, – tradicionais, modernas, pós-modernas, – preocupadas com a ética e o equilíbrio socioambiental, e com a consideração da subjetividade da “natureza”. A filosofia dos grupos étnicos mais distantes dos grandes centros urbanos permitiu que o pensamento moderno avançasse e se desdobrasse, pondo-se a si mesmo em questão, para tomar consciência de seus limites e dos limites da consciência humana. 

Não é “o homem” que desaparece com as ciências humanas, como um perfil desfeito na areia, mas a humanidade que se expande para além da espécie humana. Quando a humanidade se torna objeto, conceito, põe em crise o seu referente e o supera. Questiona-se o homem branco, adulto, civilizado, para que se verifique sob que condições é possível o próprio conceito de universalidade. A sociologia durkheimiana, ao fazer do “homem” objeto científico, subjetiva todos os outros, pois se toda a vida social pode ser objeto, tudo pode ser sujeito. Não foi por acaso que a linguística, dedicada a investigar a linguagem nos animais, como fez Benveniste, pôde concluir que, também entre as abelhas, é a sociedade a condição da linguagem. 

Uma noção estendida de humanidade, ancorada em diferentes filosofias, subsidiaria a crítica ao especismo e o debate sobre o reconhecimento de animais, plantas, ilhas, rios, montanhas, mares, como sujeitos de direito ao pleno desenvolvimento, independentemente do seu valor afetivo, produtivo ou comercial. Dito de outro modo, o Sars-CoV-2 permite que se recupere o que a sociologia oferece como potência epistemológica desde o seu surgimento, e que foi pouco aproveitado pelo ensino e pela pesquisa sociológica no Brasil. 

Esta velha sociologia pós-pandêmica não deixaria de preconizar a cientificização do debate público para a democratização do conhecimento sobre os problemas socioambientais, assim como o fortalecimento do papel do Estado na educação, elaboração de leis e garantia dos direitos ambientais, – o que não se faria sem que se assegure a independência do campo científico em relação aos interesses eleitorais e econômicos. Apropriando-se da ciência, os grupos diretamente prejudicados pela destruição ambiental defender-se-iam da chamada violência epistemológica – a imposição de interesses políticos e econômicos sobre as coletividades subalternizadas, sob o disfarce de conhecimento especializado inacessível, quando se trata, apenas, de uma linguagem técnica rebuscada para deslegitimar demandas e desqualificar argumentos. 

A sociologia, em diálogo interdisciplinar com outras ciências e formas de conhecimento, pode bem demonstrar, didaticamente, os efeitos nocivos à saúde física e mental da espécie humana, das técnicas de exploração animal que acompanham a exploração do trabalho, e das tradições não problematizadas. A humanidade nunca se realizará plenamente se o preço do crescimento econômico for a desigualdade, o sofrimento de outras espécies e a destruição ambiental, pois o inconsciente, feito de linguagem e natureza, fundo comum a todos e elemento mediador da intersubjetividade, é a condição da constituição subjetiva. 

 

Samira Feldman Marzochi é docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

 

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SINGER, Peter. Libertação animal (edição revista). Porto Alegre: Lugano, 2004. 

 


Sociologia na Pandemia 12#

 

Pandemia, a nova fantasmagoria e as possibilidades da política

 

Por Fábio José Bechara Sanchez 

 

O atual momento pandêmico surgido a partir da proliferação do já conhecido Vírus SARS-COV-2, causador da COVID-19, tem produzido constantemente expressões como: “vivemos o maior desafio de nossa geração”; “quem poderia imaginar que passaríamos por isso?”, “parece ficção cientifica”, ou sobre como e quando alcançaremos um “novo normal”. 

Tem gerado discussões e debates também sobre o momento de “excepcionalidade” e sobre como lidaremos e “sairemos” deste momento. Os cuidados com o contágio, tais como usar máscaras e lavar constantemente as mãos, assim como o distanciamento social, se tornarão permanentes? O neoliberalismo recrudescerá ou se enfraquecerá diante do fortalecimento da percepção de que um sistema público de saúde e alguma forma de seguridade propiciada por politicas de bem-estar social são fundamentais para enfrentar momentos como esse? 

A pandemia é também consequência de nossa ação destruidora sobre o meio ambiente que demonstra que chegamos a um ponto de “não retorno” que causará novas catástrofes (climáticas e biológicas) que nos ameaça? As formas de enfrentamento à pandemia gerarão novas (ou o aguçamento das antigas) formas de dominação e controle social?

Comum a estas expressões cotidianas e estas indagações políticas e/ou acadêmicas percebe-se uma perplexidade e uma angústia diante a ruptura do cotidiano e do conhecido e, acima de tudo, uma vivência da história, da transformação e das incertezas abertas (ou agudizadas/aprofundadas) por esta emergência da exceção. A pandemia nos coloca diante uma percepção do tempo e da história, de transformação, de mudança e de que por mais que estejamos buscando permanentemente controlar e dominar as incertezas de nosso estar no mundo, descobrimos novamente com a COVID-19 que tudo que “é solido de desmancha no ar”. 

Nas tentativas de previsão, diante do que ainda parece como uma falta de perspectiva pandêmica, vemos desde leituras que iluminam possibilidades novas criadas pela pandemia, tais como: crise do neoliberalismo e retomada de políticas de seguridade social; avanços de propostas de renda mínima de cidadania, mudanças do andropoceno, etc. Um conjunto nada homogêneo e nem convergente de percepções e leituras do que vivemos no mundo imediato. Outras leituras, mais “criticas”, que acentuam os efeitos desagregadores e revelam traços da conjuntura que vivíamos e que a pandemia agudiza: o esfarelamento da solidariedade, o recrudescimento da dominação com a utilização das big datas para o controle dos corpos aproximando-se da realização ideal do poder disciplinar da quarentena como descrito por Foucault, o estabelecimento de novas e mais profundas políticas de exceção agora legitimadas pela exceção/emergência médico-sanitária na qual nos encontramos. De uma maneira geral o fato é que, nos parece, a pandemia tem gerado nas análises menos esperança e mais suscitado angústia. 

Por outro lado, talvez seja necessário também pensar as possibilidades (se é que existem) de realização da política que a pandemia abre. Se a política é a possibilidade de interrupção do fluxo linear do tempo (Walter Benjamin), o espaço da liberdade existente na intercomunicação entre as pessoas e que possibilitam “novos começos” (Hannah Arendt), a contingência da igualdade que ao encontrar a ordem de dominação (polícia) recoloca e recria a mundo do sensível (Jacques Rancière), a criação de outros possíveis (Deleuze), quais são as possibilidades da política neste momento? Ou seja, comum a estas leituras, se a política é a erupção do novo, qual a possibilidade de sua realização na “brecha” aberta pela pandemia? A própria pandemia é uma brecha ou o “brejo” da política? 

 

Capitalismo desorganizado, incertezas e exceção 

Nos anos de 1980, quando a agenda neoliberal avançava em todos continentes e regiões (talvez não tão rápido, mas tão profundamente como a dispersão da COVID-19 nos dias atuais) Claus Offe chamou a este processo e a esta nova forma de organização do Capital de “Capitalismo Desorganizado”. Ele se referia ao desmonte da estrutura institucional que deu suporte ao estado do “bem estar social” conduzido por politicas keynesianas e que estabilizou o capitalismo para seus “anos gloriosos”. 

Poderíamos afirmar, seguindo as trilhas de Marx (e também de Keynes) que o capitalismo nunca foi exatamente organizado, antes pelo contrário, ele é virtuoso em produzir suas crises. Ele tem uma lógica e uma dinâmica (dinamismo, diga-se de passagem, impressionante), mas esta lógica se caracteriza justamente por gerar crise: “a lógica do capital como expressão de um processo insaciável que tende à expansão, à desmedida e, por fim, à crise” (PRADO, 2017). 

Depois da crise de 1929, fruto do “descontrole” e falta de “organização” do capitalismo liberal então vigente, os operadores do Capital perceberam que era mais interessante controlar as incertezas a partir de uma economia minimamente planejada e com intervenção estatal. A partir de lutas e conflitos, foram sendo criadas travas ao “moinho satânico” [1] do capital. Como mostra David Harvey [2], esta intervenção estatal buscava, por um lado, garantir estabilidade ao próprio processo de acumulação. Por outro lado, criava mecanismos e direitos sociais que significavam para aqueles que vivem de seu trabalho algum grau de certeza e controle sobre a vida, sabendo que possuíam uma rede de proteção social que permitia evitar a angústia das incertezas. 

Assim, o que ficou conhecido como “os anos de ouro do capitalismo”, pautados por políticas keynesianas, se caracterizavam por ser um redutor das incertezas (e portanto das angústias). Como afirmou Francisco de Oliveira, explicando o que ele entende por anti-valor, “o anti valor é a forma pela qual o sistema capitalista achou um meio de anular as incerteza. Keynes tem um conceito que é o de redutor de incertezas que é muito interessante. Você tem que encontrar formas de reduzir a incerteza, senão o capitalismo não empreende” [3]. Para Keynes, segundo Chico, o único ente capaz de ser este redutor das incertezas é o Estado e os fundos públicos, que Oliveira chama de “anti-valor”. “O anti-valor é a rede que você põe debaixo do trapezista que está lá em cima e que vai dar um salto solto. Quem assegura que ele não se esborrache? A Rede. O anti-valor é isso, você cria uma rede de proteção ao risco que está no sistema capitalista de forma exponencial” [4]. 

Resumindo, o anti-valor (os fundos públicos) são esta rede de redução das incertezas, de controle, que serve tanto para estabilizar o mercado capitalista e seu permanente “desequilíbrio”; como para dar segurança e possibilidade de previsão de suas ações para aqueles e aquelas que vivem de seu próprio trabalho. Com saúde pública garantida como direito, sei que na incerteza e imprevisibilidade de uma doença ou acidente, serei assistido. Com educação pública de qualidade garantida, sei que o futuro de meus filhos esta minimamente previsto. Com direitos trabalhistas que dificultam a demissão ou com seguridade social caso fique desempregado, sei que posso minimamente planejar um financiamento para adquirir minha casa. E assim vai. O fundo público é um redutor de incertezas para o capital, mas é também para aqueles que vivem do trabalho. 

A desorganização do capitalismo pós anos de 1980, com o advento do neoliberalismo, acaba destruindo estas redes. Obviamente não todas. Apenas aquelas dos trapezistas que vivem do próprio trabalho, deixando mais ou menos intactas as daqueles que vivem do capital (por mais que a aplicação no mercado de ações pareça o campo por excelência das incertezas, da aposta em um futuro indefinido, esta incerteza não é tão aguda assim, pelo menos para os grandes operadores que provocam as profecias autorrealizáveis, como também as Redes de proteção foram fortalecidas para eles). 

O desmanche neoliberal vai tirando as travas de controle do capital para “os debaixo”, justamente aqueles que sem estes direitos não tem condições de planejar o futuro. A incerteza se instaura, o presente se torna o imediato da sobrevivência e a angústia (entendida no sentido lacaniano de uma “incapacidade de controle” [5]) sobre o futuro se amplia.  

Neste cenário, duas realidades se instalam. Por um lado, uma nova percepção do tempo, aquilo que Paulo Arantes chamou de “Novo tempo do Mundo” [6], onde vivemos um permanente estado de emergência. Arantes (assim como Habermans antes dele em seu Discurso Filosófico da Modernidade) recorre ao historiados alemão Reinhart Koselleck para caracterizar a modernidade. Para Koselleck a modernidade se caracteriza por uma separação entre o espaço das experiências e o horizonte de expectativas. Isto significa que, com esta separação, se tem uma percepção da passagem do tempo, uma vez que o horizonte de expectativas é diferente de nosso espaço atual de experiência. Mas significa também que construímos e agimos no sentido deste horizonte (“os homens fazem a história”). No “novo tempo do mundo” o horizonte de expectativas se achata. Não conseguimos mais prever e imaginar o horizonte, apenas fazemos a gestão de um tempo eternamente no presente, ao mesmo tempo veloz, que se apresenta diante de nós como emergência. E o estado de angústia, a última potência. Não possuímos mais horizontes de expectativas (não é por acaso que as distopias têm emundado nosso universo cultural. O curioso é que a pandemia da COVID-19 transforma as distopias ficcionais em uma realidade). Por outro lado, estamos sempre devendo algo, tendo que responder a algo (ao WhatsApp, à velocidade dos posts no Facebook, ao trabalho flexível, à fluidez das relações afetivas) em um permanente mal-estar. 

Se as redes redutoras de incertezas que os direitos sociais representavam foram sumindo para os “debaixo”, o mesmo não pode ser dito a respeito das formas de controle destas populações, pautadas, seguindo Foucault, por formas de biopoder [7] e pela gestão de populações a partir do “estados de exceção” (Agamben) [8], ou mesmo pela Necropolítica (Mbembe) [9]. De qualquer forma, uma sociedade do controle (Deleuze) [10]. 

Mais uma vez, o vírus SARS-COV-2 nos desvela esta realidade. Não se monta a complexa engenharia de gestão de populações que tem sido as quarentenas espalhadas pelo planeta de uma semana para outra. Os instrumentos já estavam presentes e (apenas) foram colocados a serviço do enfrentamento da pandemia. Mais do que isso, estes instrumentos de gestão colocados a serviço do controle do contágio têm levado a um nível assustador as formas de controle, como as informações conseguidas pelas grandes empresas de internet, ou como as companhias de telefonia celular conseguem mapear o confinamento (ou não) da população, ou como outros instrumentos obtêm mapas de contágio e adoecimento por rua e CEP [11]. 

O estado de exceção parece se radicalizar, vivemos uma espécie de exceção dentro da exceção. Pelo menos esta é a análise de um bom número de artigos que tem saído sobre o momento pandêmico. 

 

Vírus SARS-COV-2 e as possibilidades de um “verdadeiro estado de exceção”. 

Em suas famosas “Teses sobre a história”, mais especificamente na oitava, Walter Benjamin afirma que “A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção” [12]. Esta claro que o verdadeiro estado de exceção para Benjamin é a revolução que, como sabemos, para ele é o equivalente à chegada do messias, ou seja, a ruptura do fluxo contínuo do tempo, ou o “freio de emergência” como chamou Michel Lowy [13]. Em nossa leitura, esta ruptura do tempo linear (e vazio) é a própria política, que rompe o autômato fantasmagórico da história como progresso e recria a história como ação.  

A questão que nos colocamos no início deste ensaio era justamente a possibilidade deste verdadeiro estado de exceção (da política) a partir da pandemia. As incertezas, angústias e indefinições que a pandemia nos coloca, ao mesmo tempo que aguçam nossa vontade de controle e, consequentemente, formas de dominação, também parecem/podem apontar para novas formas de solidariedade, novas possibilidades, novos possíveis. 

Assim, alguns acreditam que a pandemia pode significar uma crise aguda do neoliberalismo e o resgate de formas de controle das incertezas menos pela gestão de populações e mais pelos direitos sociais. De fato, a pandemia parece pelo menos ter colocado a ideologia do estado mínimo em xeque. 

As propostas de renda básica de cidadania, que ao fim e ao cabo retomam não apenas a dimensão dos direitos, mas se apresentam como uma reivindicação de divisão da riqueza que é socialmente produzida, e que têm sido propostas por diversos intelectuais desde os anos 1990 (André Gorz, Robert Castels, Guy Standing, etc.), têm entrado na pauta de uma maneira como nunca antes entrou, devido à realidade aberta pela pandemia. 

Outro exemplo é a favela de Paraisópolis, que tem mostrado como a auto-organização, mesmo em momentos de adversidade,  gera o aprofundamento de laços de solidariedade. A instituição dos “presidentes” de rua, a criação de espaços de acolhimento e acompanhamento do contágio pela própria comunidade, podem apontar para o fortalecimento destes laços. 

De fato, a pandemia parece estar gestando várias formas associativas e coletivas que – nas brechas da “falta” de política publica de saúde, educação e seguridade – estão sendo criadas, muitas delas enraizadas em formas populares de sociabilidade já correntes. Tenho, por exemplo, acompanhado a mobilização em torno da Central de Movimentos Populares e de movimentos de moradia de pessoas moradoras de favelas e ocupações que têm sobrevivido à pandemia a partir da solidariedade e ajuda mútua, discutido (reivindicando) com o poder e implantado formas de captação de água e saneamento (questão central na pandemia) e, mais do que isso, já tem organizado formas de enfrentamento da crise de desemprego que vivem e viverão a partir do fomento da produção local, hortas comunitárias, bancos comunitários, empresas recuperadas, etc.

 

Rápidas considerações

Em seu ensaio “O Futuro de uma Ilusão”, Freud discute as formas que lidamos com a sensação de desamparo e de não controle. A Ilusão serve para apaziguar nosso terror diante da morte, do nada, da dor, da falta de sentido da vida. A ilusão, que não é necessariamente o erro, nos ajuda a dar conta deste desamparo. Para Freud, a religião serve como esta ilusão. Por que eu que sou saudável adoeci e meu vizinho que é fumante e sedentário não?  Por que este acidente aconteceu comigo? O que fiz para sofrer mais do que fulano? Por que fui contaminado pelo corona vírus mesmo fazendo quarentena e meu colega que sai todo dia não? A tentativa de resposta a perguntas como essas que criam a ilusão. A busca do “pastor” que dá sentido aquilo que não é compreendido. 

Ao invés da ilusão, Freud propõe no lugar uma ética da psicanálise. A psicanálise permite não uma resposta as questões, mas a compreensão de que não há resposta, o que há é nossa ação e responsabilidade diante dessas incertezas e do desamparo. Ao invés do controle, do “pastor” que me explica o sentido, a aceitação de nosso desamparo e a responsabilidade de como agimos diante dele.  

Por que retomo Freud nesta altura do campeonato? Porque este mecanismo pode ser pensado também para a possibilidade da política no atual momento da pandemia. 

Diante a angústia e incerteza, temos a tendência de buscar respostas e controle, voltar ao conhecido, voltar à origem e às raízes. Para isto, construímos fantasmagorias. Procuramos o pastor que amenizará nossas incertezas e acalantará nossa angústia. Neste sentido, a possibilidade de retrocessos autoritários, o retorno a identidades essencializadas (como “somos todos brasileiros”), o medo ao diferente e desconhecido, a vontade de destruição da alteridade, os ataques à democracia (que é por excelência uma sociabilidade anárquica, como lembra Rancièré, pois ela se baseia justamente na inexistência do pastor) é uma realidade. 

Mas podemos também aceitar a incerteza e nos responsabilizar pelas ações que nos farão atravessar a tormenta. Ação e responsabilidade são os fundamentos da política. E ao agirmos politicamente, a pandemia permite também que criemos novas possibilidades, novos começos. 

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Em artigo publicado neste mesmo espaço, Jorge Leite Junior nos lembra que “a linguagem não é apenas um instrumento para descrever o mundo, mas também para criá-lo” [16]. Seguindo esta trilha, é importante também analisar as próprias análises sobre a pandemia, os discursos que elas carregam e o mundo que elas criam. 

Não realizei um levantamento exaustivo a respeito, mas não tenho dúvida de que um número significativo destas análises tem focado mais nas dominações e formas de controle que atual pandemia pode aguçar e radicalizar. As novas exceções que ela produz. Uma necropolítica da pandemia. Este ensaio não desconsidera estas possibilidades, mas também vislumbra possibilidades de “emancipação” por elas também constituírem o momento  (pretensiosamente se filiando a uma teoria crítica). 

Novamente segundo as provocações de Jacques Rancièré [17], que em recente artigo discutindo a pandemia, se pergunta se as análises que percebem o momento atual apenas na chave da dominação, radicalização da sociedade do controle e da impossibilidade de ação neste cenário (ou que as ações como as da favela de Paraisópolis, relatado acima, são o fortalecimento da mesma dinâmica de gestão e de estado de exceção) não são uma resposta que já tínhamos antes mesmo da pandemia? O que estas análises totalizantes e “apocalípticas” revelam e produzem?  A resposta não me parece fácil e não ousarei tentar aqui, mas ousaria dizer que com certeza não produzem política.

 

Fábio José Bechara Sanchez é docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

 

Notas

[1] Expressão de Karl Polanyi. POLONYI, Karl.  A grande transformação: as origens de nosso época. Rio de Janeiro: Compus, 2000.

[2] HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2006.

[3] OLIVEIRA, Francisco. “A Universidade e as incertezas do capital”in: Revista Plural. Revista do Curso de pos graduação em Sociologia da USP. N.09. Ano 2002. Pg 208. 

[4] Idem. Pg209.

[5] Para Lacan “…a angustia surge quando o sujeito é confrontado com a ‘falta da falta’, ou seja, com uma alteridade onipotente (pesadelo duplo alienante, estranheza inquietante) que o invade a ponto de destruir nele qualquer faculdade de desejar” in: ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanalise. Ed Zahar. Rio de Janeiro.1998. pg 383. 

[6] ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

[7] FOUCAULT, M. Em defesa da Sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo, Martins Fontes, 1999.

[8] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004

[9] MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018

[10] DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

[11] Aqui é importante fazer uma observação: não estou questionando as medidas de confinamento e isolamento social, que parecem ser necessárias para conter um vírus do qual pouco se conhece (de novo as incertezas). Reconhecer as novas formas de controle não significa jogar fora os ganhos que a racionalidade cientifica nos legaram, assim como reconhecer estes ganhos não nos impede de reconhecer seus limites. O complicado é nessa altura cairmos na discussão se “estamos ou não do lado da ciência” quando desgovernos propõe algo que vai para além do absurdo. Se já faz tempo, aprendemos com Weber, que a ciência não pode “colonizar” a política. 

[12] BENJAMIN, Walter. “Teses sobre a História” in: Walter Benjamin – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.. São Paulo: Brasiliense, 1987.

[13] LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.

[14] FREUD, S. “Futuro de uma Ilusão” in: FREUD, S. (1926 – 1929) – Obras completas volume 17: O futuro de uma ilusão e outros textos. São Paulo. Cia das Letras. 2010

[15] RANCIÈRE, J.  O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014.

[16] LEITE JR, Jorge. “A utilidade das palavras” in: Boletim Coletividades – Sociologia na Pandemia. http://www.ppgs.ufscar.br/boletim-coletividades-sociologia-na-pandemia/

[17] RANCIÈRÉ, J. “Uma Boa Oportunidade?” in: https://n-1edicoes.org/039-1

 


Sociologia na Pandemia 11#

 

Lutas pela vida, o sistema prisional e a COVID-19

 

Texto coletivo do GEVAC UFSCar: Eduardo Rossler, Isabela Araújo, Isabela Hamra, Jacqueline Sinhoretto, Paula Garcia e Raphael Silva

 

O Brasil está constituído sobre um largo rastro de violência. E desde sempre houve lutas pela vida, na resistência indígena e negra, das mulheres, dos trabalhadores rurais, nos movimentos de favelas e pelos direitos da infância. Num país em que a violência estatal é sistêmica e estruturada em torno do racismo e de uma sociedade de exploração do trabalho, as lutas pela vida sempre foram a pauta dos movimentos sociais. 

2020 elevou a dificuldade dessa luta com o surto pandêmico do coronavírus e um Governo Federal que não tem compromisso com o controle da doença e com as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). Num país em que os homicídios chegam a matar 60 mil pessoas a cada ano, é difícil criar um levante popular contra o governo com base no argumento de que milhares de pessoas estão morrendo. 

Não obstante, a COVID-19 é caracterizada pela velocidade das mortes e pelo colapso dos serviços de saúde e funerários. As lutas pela vida, que sempre se fizeram no plano societal contra o Estado, ganharam uma nova legitimidade, inclusive se impondo sobre outros direitos e obrigações, como ir e vir, a educação, a economia. Calcula-se que 50% da população de São Paulo esteja em quarentena voluntária (ou nem tanto), mesmo com o Governo Federal trabalhando contra o distanciamento social e medidas de proteção, com uma ajuda econômica irrisória na comparação com os países do G20.

As lutas pela vida são demarcadas pelas desigualdades estruturais de raça, classe e gênero. Ainda que o movimento social de luta contra a pandemia seja impressionante, as hierarquias se fazem sentir quando se trata de reconhecer o valor da vida humana. Em outros países, presenciamos o valor da vida ser sobreposto inclusive às atividades econômicas. Mas, no Brasil, isto parece impossível, especialmente sob um governo que abertamente apoia a violência política e estimula outras formas de violência. Poderíamos chamar isto de uma luta por uma biopolítica democrática[1] versus uma necropolítica que se instala pela ascensão da extrema direita ao poder. 

O paroxismo do quadro entre lutas pela vida e políticas que impulsionam à morte pode ser encontrado no sistema carcerário. O Brasil tem a terceira maior população prisional do mundo. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu, há alguns anos, o “estado  de coisas inconstitucional” em que a população privada de liberdade é gerida no país. Os militantes dos direitos humanos e os cientistas sociais têm demonstrado que as pessoas privadas de liberdade recebem de seus familiares, durante as visitas, alimentos, produtos de higiene e medicamentos, que o sistema não provê porque praticamente todos os presídios convivem com superlotação. E uma das primeiras medidas dos sistemas prisionais foi proibir as visitas de familiares para evitar contaminação.

As prisões são territórios marcados por doença e esquecimento. Celas superlotadas, onde detentos se acotovelam em busca de “ar fresco” vindo dos espaços entre as grades. Condições abertamente insalubres, vulneráveis à toda sorte de patologias e violências, em que os sequestrados institucionais convivem sob a invisibilidade. Nelas, o direito e a obrigação de punir sobrepõem o direito à vida. 

Segundo dados do Infopen [2], o país possui 442.349 vagas, para quase 800 mil pessoas. Isto significa operar 197% acima de sua capacidade. Em algumas unidades, celas individuais de 6m²[3] chegam a abrigar 20 indivíduos.  Esses fatos explicam, por exemplo, porque a incidência de tuberculose é 28 vezes maior dentro das prisões. Sarna, HIV, hepatite e pneumonia também são endêmicas. A COVID-19 encontra nesses aglomerados de pessoas, já acometidas por doenças físicas e psíquicas,  espaço propício para sua disseminação. 

O primeiro caso confirmado de COVID-19 nas prisões brasileiras foi detectado no Pará em 08 de abril [4]. Uma semana depois, a primeira morte em decorrência do vírus foi confirmada no Rio de Janeiro, um interno de 73 anos. Em poucos dias notou-se uma escalada nas confirmações de novos casos da doença nas prisões brasileiras [5]. Em 20 dias os casos de coronavírus nas prisões foram de 1 para 107, com 7 mortes confirmadas, sendo que nesse período apenas 694 dos 755 mil detentos haviam sido testados. O Depen vem realizando esse monitoramento, inclusive comparando com o cenário de outros países, conforme falaremos adiante. 

A OMS apontou no documento intitulado “Preparedness, prevention and control of COVID-19 in prisons and other places of detention” [6], publicado em 15 de março de 2020, que na sociedade em geral uma pessoa infectada contamina de 2 a 3 pessoas, enquanto nas condições de encarceramento estima-se que essa contaminação passe para até 10 pessoas. Dessa forma, em celas coletivas, 67% estará contaminado pelo vírus ao final de 14 dias e, após 21 dias, todos os detentos estarão contaminados [7].

Trata-se de uma potência avassaladora do vírus nas prisões, confirmada pela letalidade 5 vezes maior no interior das penitenciárias do que a registrada na população geral. Esse número pode ser ainda maior, pois apenas 0,1% da população carcerária havia sido testada até 05 de maio, data de divulgação desse dado. Para os que foram eleitos afirmando que “bandido bom é bandido morto”, para uma história política de massacres em presídios, a inação é o ideal.

Não obstante, não apenas os presos estão se infectando com o vírus, mas também os servidores. Até 12 de maio, havia mais servidores do que presos diagnosticados com o novo coronavírus no estado de São Paulo. No entanto, a doença é mais letal entre os presos, saltando de 6,9% de falecimento entre o servidores para 23,5% dos presos levados à morte pela doença [8]. Já no Distrito Federal, que tem a maior concentração de casos, 1 em cada 4 presos testados estão contaminados somando 1.469 pessoas infectadas até 08 de junho. Até esta data haviam sido realizados 5.577 testes em presos e agentes e 26,3% deram positivo, sendo que o DF foi responsável por 74,7% de todos os testes realizados no sistema penitenciário nacional [9]. 

Somam-se aos dados as turbulências nos presídios, que durante a crise sanitária tiveram espaço discreto na mídia. Rebeliões [10], cartas de despedida [11] e contêineres [12] foram algumas pautas que furaram a bolha de uma realidade marcada pela produção do esquecimento. A inação em relação aos testes, EPI’s e notificações sobre infecções e mortes revela a face trágica das opções políticas feitas pelo poder público em favor de uma agenda que privilegia, cada vez mais, o impulso pela morte.

Conhecedor dos discursos punitivistas, que se materializam no crescimento assustador da população carcerária nacional, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou no dia 17 de março de 2020 a Recomendação nº 62 [13], antevendo os efeitos destrutivos que a pandemia potencializaria nas unidades prisionais do país. Entre as recomendações está a reavaliação das prisões provisórias para as mulheres gestantes e que possuem filhas/os até doze anos, idosas/os, indígenas, e pessoas com deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco. Além de presas que estão em unidades prisionais com ocupação superior à capacidade ou que possua instalações que propagam a contaminação do vírus. Preconiza ainda a concessão de prisão domiciliar a todas/os as/os presas/os que estão no regime aberto e semiaberto e aquelas/es que possuem o diagnóstico suspeito ou confirmado de contaminação pela COVID-19. Pensando nos/as trabalhadores/as, o documento demanda a distribuição de kits com máscaras, luvas e álcool em gel para as/os funcionárias das unidades prisionais.

Apesar da importância das preconizações, elas não foram bem recebidas, resultando em seu constante descumprimento, em todos os âmbitos por ela considerado. No que tange aos profissionais, policiais penais do Distrito Federal protestaram em frente ao Palácio do Buriti [14], denunciando a não distribuição de itens de segurança e as péssimas condições de trabalho a que estão submetidas/os em meio a pandemia. A mesma denúncia ecoou em outros estados, como Mato Grosso e Pernambuco. Além das violações de segurança das/os profissionais, a concessão de liberdade provisória e prisão domiciliar se tornou uma pauta em voga, após o Depen divulgar que cerca de 30.000 presas/os tinham se beneficiado dessas medidas [15]. 

Essa declaração associou as concessões à insegurança da população, uma vez que haveria muitos “bandidos soltos indiscriminadamente”. Acontece que este número, como esclarece o CNJ [16], não corresponde nem a 4% da população carcerária brasileira, com impacto reduzido no fluxo cotidiano do sistema prisional. Em cada estado, as pessoas libertas são uma pequena parcela entre os que correspondem aos critérios. Além disso, não mais do 3% das pessoas beneficiadas com alguma medida reentraram no sistema prisional.

O caráter protetor da vida enunciado na Resolução nº 62 do CNJ e as resistências ao seu cumprimento, em nome da punição, recrudesceram conflitos e tensões do dispositivo penitenciário brasileiro, e dos feixes de força que o constituem. As articulações políticas do atual contexto reverberaram pelo dispositivo, com destaque para o bolsonarismo, que tem por figura central Jair Bolsonaro e sua família; o lavajatismo, na figura de Sergio Moro; e, de forma mais difusa, a oposição que envolve partidos, sociedade civil e movimentos sociais.

A alternativa posta pelo CNJ, o desencarceramento, é resultado de demandas da sociedade civil que, rapidamente, se organizou para pautar o sistema de Justiça a fim de garantir condições mínimas de saúde e proteção no sistema penitenciário durante a pandemia de COVID-19, com destaque ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a Pastoral Carcerária e a Agenda Nacinal pelo Desencarceramento, que antes mesmo da Resolução ser publicada, já solicitavam o desencarceramento. 

O Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, demonstrou que não apenas discordava do desencarceramento, mas também se movia para torná-lo inviável. Moro produziu uma campanha contrária já no mês de março, expressa em suas entrevistas associando a soltura a novos crimes [17], criando o termo “solturavírus” e falando em prisão como “domicílio precípuo” dos presos [18]. Essa narrativa produziu efeitos rápidos, a exemplo de uma juíza que negou um pedido de liberdade pela suposição de que o postulante não iria cumprir as regras sanitárias se liberado, já que não cumpriu a lei [19]. Ou ainda um juiz que negou solicitação de prisão domiciliar porque apenas os três astronautas da Estação Espacial Internacional não estariam sujeitos ao contato com o vírus [20].

Ainda em sua cruzada anti-desencarceramento, o ex-ministro chegou a solicitar aos estados que informassem crimes cometidos pelos desencarcerados [21] e negociou a compra de tablets para os contatos virtuais de familiares e reclusos[22]. Essa última, embora importante medida para a manutenção dos contatos familiares, tornou-se mecanismo de barganha para a permanência dos presos e o não-cumprimento da Recomendação. O ex-ministro, responsável pela Lei anti-crime, deu uma cartada final antes de sua saída do Ministério: propôs a utilização de contêineres metálicos para o isolamento de presos infectados pelo COVID-19.

Essa medida produziu contestação da sociedade civil organizada, com destaque às Frentes pelo Desencarceramento, e firmes posições do CNJ e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). A gramática de lutas, recrudescida pela pandemia, situa a população encarcerada em condição vulnerável, seja pela pandemia, ou pelas disputas políticas em torno do poder de punir. A mobilização da sociedade civil tem sido fundamental no que estamos chamando de lutas pela vida, ou a tentativa de estabelecer o valor da vida acima de outras dimensões como a economia ou o direito de punir. 

Diante a proposta dos contêineres, em 11 de maio foi protocolada a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 684 [23] pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com base no estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) sobre a disseminação do coronavírus dentro sistema carcerário brasileiro. A ação solicita que a Corte reconheça a violação de direitos relacionados à saúde, à vida, à maternidade e à segurança da população prisional que estão assegurados na Constituição Federal de 1988. É embasada nas recomendações do CNJ e reforça a implementação de políticas de desencarceramento racional, em especial ante a resistência dos Tribunais e juízos locais. 

A ADPF nº 684 exige o esclarecimento da forma como os presídios estão sendo geridos, os dados dos infectados e aponta a subnotificação de casos e a insuficiência de testes realizados. Foram feitas críticas à forma ineficaz do Poder Executivo para a contenção do vírus apenas por meio da interdição de visitas e saídas temporárias, já que existe um intenso trânsito de servidores, novas prisões e solturas. Também criticaram o Ministério da Justiça e Segurança Pública e o Ministério da Saúde, que emitiram a Portaria Interministerial nº 7 com medidas de isolamento de presos através de cortinas e demarcação de linhas no chão para distanciamento, incabível à realidade prisional brasileira superlotada e com escassa equipe de saúde. Além de não haver mencionado a testagem de presos e ações de higienização.

As organizações e órgãos de execução penal autorizados a entrar em unidades prisionais foram impedidas de realizar inspeções desde que o MJ orientou a suspensão de entrada de familiares. Os conselhos da comunidade e os mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura não têm podido fazer inspeções. O CNJ publicou orientações para as inspeções judiciárias, privilegiando inspeções presenciais e, em último caso, virtuais. A ausência das inspeções realizadas pelos órgãos da sociedade civil agrava o desconhecimento sobre as condições internas nas prisões. Em razão disso, mais de 200 entidades subscreveram uma denúncia contra o Governo Federal à Comissão de Direitos Humanos da ONU e à OEA.

Atualmente, o Depen disponibiliza um painel de monitoramento dos sistemas prisionais, com dados do Brasil e de outros 49 países, sendo possível realizar uma análise comparativa [24]. Na última atualização, em 10 de junho, foi apontado o Brasil como o terceiro país no ranking de contaminações em presídios, com 0,6% da população afetada. Peru registra 11,3% do total de internos com testes positivos e EUA com 2,5%. É importante lembrar que a falta de testes interfere na comparação. 

Em 6 de abril estimava-se que 25.228 presos estariam cumprindo a pena em prisão domiciliar, após decisões judiciais que atenderam as recomendações do CNJ [25]. Esses são alguns dados que nos permitem analisar o avanço do coronavírus nas prisões brasileiras, considerando a subnotificação e as condições desses estabelecimentos, bem como os esforços que vêm sendo realizados para evita-lo. O Depen informou que 70 mil máscaras reutilizáveis já foram distribuídas para os detentos de todo o Brasil [26], no entanto, sabemos que a eficácia da medida é muito baixa, considerando a superlotação das prisões, atualmente com um déficit de 300 mil vagas.

Nosso intuito foi realizar o registro das lutas entre forças que disputam o sentido e os limites do direito à vida em contraste com o direito de punir. São lutas que opõem setores do Estado, que por sua vez estão diretamente conectados a movimentos societais mais amplos. O silêncio, o esquecimento e a estigmatização das pessoas privadas de liberdade são contrapostos nesse momento às evidências de que a prisão não é um ambiente isolado e de que as decisões que impulsionam à morte daquela população podem ter suas consequências estendidas muito mais amplamente. 

As lutas pela vida tensionam as vias de funcionamento de um Estado de Direito que nunca chancelou seu compromisso cotidiano com o objetivo democrático de fazer viver e garantir a vida. Dar passos nessa direção é uma forma de enfrentar o avanço do autoritarismo no presente. A pandemia intensificou as lutas pela vida, mas nada garante que essas lutas vencerão num contexto em que governo não lamenta mortes. Especialmente nas prisões, a COVID-19 pode realizar promessas de campanha e implementar a pena de morte, rechaçada há muito pelo ordenamento jurídico brasileiro, mas largamente praticada ao arrepio das leis por meio de práticas institucionais historicamente reproduzidas. 

O olhar para a prisão neste momento não é apenas para lembrar dos esquecidos. Trata-se de fortalecer – pelo estudo sociológico acurado e engajado – as correntes de luta pela vida que, ao fim ao cabo, passam todas pelo objetivo comum de construir uma experiência democrática mais profunda no eterno país do futuro. 

 

Jacqueline Sinhoretto é docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar. Coordenadora do Grupo de Estudos Sobre Violência e Administração de Conflitos – GEVAC

Eduardo Rossler, Isabela Araújo, Isabela Hamra, Paula Garcia e Raphael Silva são discentes do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar e pesquisadores do GEVAC

 

Notas

[1] O termo se refere a um debate contemporâneo que vê a possibilidade de que lutas por reconhecimento e proteção da vida possam impulsionar a democracia. É um entendimento que se opõe à visão de que a gestão biopolítica das populações apenas contribui com o declínio da democracia (como Giorgio Agamben e Roberto Esposito). No contexto da pandemia, vários autores têm engrossado este debate (como Sergei Prosorov e Panagiotis Sotiris), na perspectiva de observar as lutas sociais que apontam para a gestão da saúde pública como um marco de refluxo das políticas neoliberais e revalorização da soberania popular.

[2]http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-jun-2017-rev-12072019-0721.pdf

[3]http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_intervencoes_ambientais_controle_tuberculose_prisoes.pdf

[4] Moro confirma primeiro caso de coronavírus no sistema carcerário. Publicado em 08 de abril de 2020. Disponível em: https://www.otempo.com.br/brasil/moro-confirma-primeiro-caso-de-coronavirus-no-sistema-carcerario-1.2322597. Acesso em 10 de junho de 2020. 

[5] Em 12 de abril (apenas 4 dias após o primeiro caso confirmado) a Administração Penitenciária do Distrito Federal confirmou 18 agentes penais e 20 presos diagnosticados com o coronavírus.

[6] WHO Regional Office for Europe. Preparedness, prevention and control of COVID-19 in prisons and other places of detention. Publicado em 15 de março de 2020. Disponível em: https://www.euro.who.int/__data/assets/pdf_file/0019/434026/Preparedness-prevention-and-control-of-COVID-19-in-prisons.pdf?ua=1. Acesso em: 10 de junho de 2020. 

[7] Sanchez, Simas, Diana, Larouze. COVID-19 nas prisões: um desafio impossível para a saúde pública? Cad. Saúde Pública vol.36 no.5 Rio de Janeiro  2020  Epub May 08, 2020.

[8] Publicado em 17 de maio de 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/05/17/prisoes-de-sp-tem-mais-funcionarios-do-que-presos-com-covid-diz-secretario.htm. Acesso em 09 de junho de 2020.

[9] Publicado em 08 de junho de 2020. Disponível em: https://www.metropoles.com/distrito-federal/um-em-cada-4-presos-testados-no-sistema-penitenciario-do-df-tem-coronavirus. Acesso em 09 de junho de 2020.

[10]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/estamos-perdendo-o-controle-da-cadeia-diz-agente-penitenciario-de-sp-sobre-tensao-do-coronavirus.shtml

[11]https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/06/11/covid-19-carta-de-preso-sistema-prisional-sao-paulo.htm

[12]https://jornalistaslivres.org/depen-sugere-alojar-em-conteiners-presos-e-idosos-com-suspeita-de-covid-19/

[13] O documento traz preconizações a serem adotadas no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo, a fim de evitar a propagação do coronavírus, levando em consideração as medidas de prevenção propostas pela OMS: a constante higienização das mãos, a utilização de máscaras e a necessidade do isolamento social, evitando aglomerações, principalmente em locais fechados. https://www.cnj.jus.br/wpcontent/uploads/2020/03/62Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf

[14] Disponível em: https://jornaldebrasilia.com.br/cidades/sem-epis-para-trabalhar-policiais-penais-fazem-manifestacao-em-frente-ao-buriti/

[15] Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/ministerio-da-justica-estima-que-30-mil-presos-deixaram-cadeia-em-funcao-da-pandemia-de-coronavirus-1-24355221

[16] Disponível em: https://exame.com/brasil/o-que-pensam-os-juizes-que-estao-soltando-presos-em-meio-a-pandemia/

[17] Cf. https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/04/01/verificamos-detento-libertado-coronavirus/ – https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/31/covid-19-moro-cita-caso-nao-confirmado-de-preso-solto-que-voltou-ao-crime.htm. Acesso em 12/06/2020.

[18] Cf. https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/prisoes-coronavirus-e-solturavirus/. Acesso em: 12/06/2020.

[19] Cf. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/juiza-supoe-que-preso-descumprira-quarentena-do-coronavirus-e-nega-pedido-de-liberdade.shtml. Acesso em: 12/06/2020.

[20] Cf. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/01/tj-nega-prisao-domiciliar-a-presa-alegando-que-so-3-astronautas-nao-terao-contato-com-coronavirus.ghtml. Acesso em: 12/06/2020.

[21] Cf. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/governo-faz-ofensiva-contra-soltura-de-presos-devido-ao-coronavirus.shtml. Acesso em: 12/06

[22] Cf. https://exame.com/brasil/moro-diz-que-pandemia-reduziu-acidentes-e-roubos-em-estradas/. Acesso em: 12/06/2020.

[23] Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/385. Acesso em 11 de junho de 2020.

[24] Departamento Penitenciário Nacional, Ministério da Justiça. Levantamento nacional de informações penitenciárias. Atualizado em 10/06/2020. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/covid-19-painel-de-monitoramento-dos-sistemas-prisionais. Acesso em 09 de junho de 2020. 

[25] PEREIRA, Manuela Rached. Mais de 25 mil presos vão para casa durante pandemia, segundo Depen. Publicado em 07 de abril de 2020. Disponível em: https://ponte.org/mais-de-25-mil-presos-vao-para-casa-durante-pandemia-segundo-depen/. Acesso em 10 de junho de 2020.

[26] Departamento Penitenciário Nacional, Ministério da Justiça. http://depen.gov.br/DEPEN/depen-divulga-dados-da-producao-de-mascaras-demais-insumos-e-epis-para-combate-ao-coronavirus. Acesso em 09 de junho de 2020.

 


Sociologia na Pandemia 10#

 

Judicialização da política e crise institucional em tempos de pandemia

 

Por Fabiana Luci de Oliveira

 

Escrevo esse texto em um momento de grande ameaça às instituições democráticas brasileiras, em especial, ao Supremo Tribunal Federal, que tem se mostrado ativo no controle da constitucionalidade dos atos do Presidente Jair Bolsonaro, relativos à pandemia de COVID-19. 

Desde o início do seu governo, Bolsonaro atribui ao Congresso Nacional e ao STF a responsabilidade por tornar o país ingovernável, mobilizando seus apoiadores em atos e manifestações frequentes contra essas instituições. No último dia 28/05/2020, o Presidente subiu o tom nos ataques ao Supremo, declarando “Acabou, Porra! (…) Ordens absurdas não se cumprem e nós temos que botar um limite nessas questões” [1]. 

Ao ameaçar não cumprir uma decisão judicial, o Presidente anuncia um crime de responsabilidade e o abandono da legalidade. Como bem colocaram os professores especialistas em direito constitucional Diego Arguelhes, Juliana Gomes e Thomaz Pereira, “se Bolsonaro puder escolher quais decisões cumpre, e quais não cumpre, o que terá acabado será a democracia” [2].

Já houve na história recente ameaças e mesmo descumprimento de decisões do Supremo por parte de autoridades. O então presidente do Congresso Nacional, Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA), afirmou, em 1999, que não cumpriria uma liminar do Supremo, uma vez que “Esse Poder não vai se curvar diante das decisões errôneas como essas que suspenderam os trabalhos da CPI do Narcotráfico” [3]. E em 2016, a Mesa Diretora do Senado encaminhou nota ao STF informando que aguardaria o posicionamento do plenário do tribunal para então aceitar o afastamento de Renan Calheiros, não cumprindo, assim, liminar monocrática concedida Ministro Marco Aurélio [4]. 

Mas a reação de Bolsonaro ganha contornos ainda mais graves, considerando que ela se dá em resposta a buscas e apreensões contra parlamentares e militantes investigados no âmbito do inquérito 4781, conhecido como o inquérito das fake news, uma vez que as investigações podem atingir o filho do Presidente, vereador Carlos Bolsonaro, que comandaria um grupo de assessores do Planalto, no chamado “gabinete do ódio”. 

As investigações podem produzir provas que sirvam a uma eventual cassação de Bolsonaro no TSE, em decorrência de disparos de mensagens em massa na campanha presidencial em 2018. Como pontuaram os professores e cientistas políticos Marjorie Marona e Fábio Kerche [5], em artigo sobre as possibilidades para o afastamento de Bolsonaro, tramitam no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) oito ações de investigação judicial eleitoral que podem resultar na cassação da chapa Bolsonaro-Mourão. 

O Presidente parece atacar o Supremo para salvar a própria pele, e evitar a investigação de familiares e amigos potencialmente envolvidos em crimes de calúnia, difamação, injúria e associação criminosa.

Mas não se trata apenas disso. Há que se lembrar que durante a campanha eleitoral de 2018, não foram incomuns declarações em tom de ameaça ao STF, como a de que bastariam um soldado e um cabo para fechar o tribunal, caso ele se colocasse como obstáculo à agenda reformista conservadora e moralista do futuro governo [6]. Desde a campanha, Bolsonaro se apresentou como inimigo da agenda de direitos relacionados à proteção do meio ambiente, de grupos indígenas e minorias sociais. Direitos esses que foram assegurados em conhecidas, e majoritariamente aplaudidas, decisões do STF, como o reconhecimento da constitucionalidade das cotas raciais (ADPF 186); da união homoafetiva (ADPF 132 e ADI 4277); o direito de pessoas transgênero alterarem o nome e o sexo no registro civil sem se submeterem à cirurgia (ADI 4275); a ampliação das situações de descriminalização do aborto (ADPF 54); a garantia das demarcações de reservas indígenas (ACO 362 e 366) e a posse de terras às comunidades quilombolas (ADI 3239), para citar algumas.

Bolsonaro vem cumprindo suas promessas de campanha, delineando reformas e políticas contrárias ao caráter inclusivo e pluralista da Constituição.  No início de seu mandato, perguntei, em artigo escrito para o Jota [7], se poderíamos depositar nossas esperanças democráticas na capacidade do tribunal atuar como contraponto forte para fazer prevalecer os princípios fundamentais da Constituição, e conter práticas autoritárias do governo. Naquele momento já era esperado que os ataques ao tribunal seguiriam, e se intensificariam, mas a expectativa (ou esperança) era a de que o Supremo resistiria, e protegeria um núcleo mínimo de direitos fundamentais. Passados pouco mais de 16 meses do início do governo, já há elementos para balizar tal expectativa.

De acordo com a professora e especialista em direito constitucional, Eloísa Machado [8], no primeiro ano de mandato foram propostas 71 ações questionando a constitucionalidade de medidas do governo Bolsonaro. Em 8 dessas ações, o Supremo impôs alguma derrota ao governo – entre as quais estão restrições à extinção de conselhos pelo Executivo; a manutenção da demarcação de terras indígenas com a Funai; a suspenção do fim do DPVAT, e a manutenção da publicação de editais de licitação e leilões em jornais de grande circulação. Essa baixa proporção de derrotas (11%) foi lida como sinal de letargia do tribunal.

Mas olhando friamente para os números, essa proporção se iguala ao padrão geral de intervenção do Supremo em diplomas federais. Considerando o montante de ações que foram propostas contra diplomas federais no STF em governos anteriores, a proporção de ações declaradas procedentes (no todo ou em parte) gira em torno de 10% [9]. Esse dado poderia fundamentar a hipótese de que o STF não agiu de forma mais nem menos intervencionista, ou combativa, com relação ao governo Bolsonaro, se comparado a governos anteriores. Evidente que para um retrato mais completo, e verificação dessa hipótese, deveria ser observado o conteúdo das normas consideradas inconstitucionais, a centralidade das políticas revisadas para a agenda do governo, entre outros aspectos mais qualitativos. Mas o dado de partida permite esperar que a intensidade de interferência do Supremo nas políticas federais não tenha sido muito diferente no primeiro ano do governo Bolsonaro, levando em conta o padrão decisório do tribunal.

E mesmo se considerarmos a recente interferência do Supremo na revisão de um ato administrativo do Presidente, que foi a suspensão, por liminar monocrática, da posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal, há precedentes nos governos anteriores – a suspensão da posse do ex-presidente Lula como ministro no governo Dilma, e a anulação da posse de Cristiane Brasil como ministra no governo Temer. 

Mas a emergência da pandemia de COVID-19 possibilita observar o que parece ser uma mudança de padrão na forma de interferência do STF no controle de constitucionalidade dos atos do presidente. 

Foram 85 as ações de controle de constitucionalidade (Ação Direta de Constitucionalidade -ADI; Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF; e Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO) relacionadas à COVID-19, propostas no STF até o dia 22 de maio de 2020. Entre elas encontram-se três ADIs propostas em 2017, contestando a constitucionalidade da EC 95/20, uma vez que receberam petições de tutela provisória diante da urgência e excepcionalidade imposta pela pandemia.  

Um terço dessas ações questiona normas federais que limitam direitos sociais, sobretudo direitos trabalhistas. Outros 15% questionam normas que regulam a economia de mercado – são normas majoritariamente estaduais, incluindo as que protegem consumidores restringindo a negativação e a interrupção da prestação de serviços essenciais por inadimplência, normas que preveem redução de mensalidades escolares privadas, entre outras. E em terceiro lugar, normas federais que tratam de direitos civis, como privacidade e acesso à informação [TABELA 1]. 

A maioria das ações questiona diplomas de origem federal (77%), sendo que 54 delas (64%) referem-se a atos do Executivo. O Presidente saiu derrotado em 54% dos pedidos. Entre as derrotas que sofreu estão a decisão que barrou campanha publicitária contra o isolamento social, e a que reconheceu a competência concorrente dos estados, municípios e da União para adoção de medidas restritivas de locomoção e regulamentação do alcance e extensão da quarentena (suspendendo trechos da MP 926/20) [TABELA 2]. 

O tribunal restringiu e limitou o alcance de outras Medidas Provisórias ligadas ao contexto da pandemia. Na MP 927/20, que flexibiliza regras trabalhistas, o STF suspendeu dois trechos, um que previa que casos de coronavírus não seriam considerados ocupacionais, a não ser que comprovadamente causados pelo trabalho, e o que estabelecia que auditores fiscais do trabalho do Ministério da Economia atuariam apenas de maneira orientadora nesse período. Mas por enquanto, o Supremo manteve intacto outros trechos questionados, como o que dá ao acordo individual entre padrão e empregado prevalência em relação a leis trabalhistas e acordos coletivos, dispensando manifestação dos sindicatos para ratificação da diminuição de jornada e salário ou suspensão dos contratos de trabalho. Essa medida provisória foi alvo de 10 ações.  

O Supremo invalidou artigo da MP 928/20, que previa suspensão nos prazos de resposta a pedidos de acesso à informação aos órgãos ou entidades da administração pública, durante a pandemia, impedindo, dessa forma, que houvesse restrições na Lei de Acesso à Informação durante a pandemia. E suspendeu os efeitos da MP 954/20 que previa o compartilhamento de dados de usuários de telecomunicações com o IBGE para a produção de estatística oficial, determinando que o IBGE se abstenha de requerer esses dados e, suspenda eventuais pedidos já feitos.

Já a MP 966/20, que relativiza a responsabilização dos agentes públicos durante a pandemia da Covid-19, recebeu interpretação conforme à Constituição, com o STF estabelecendo que os agentes públicos devem seguir critérios científicos e técnicos em suas decisões, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos, podendo, em caso contrário, responder a processos civis ou administrativos, respondendo por ações tomadas no combate à pandemia. 

Na prática, isso significa que o STF tem conseguido, até aqui, colocar alguns limites à política negacionista do Presidente, no que se refere à pandemia. Quem mais acionou o STF para contestar essas políticas foram os partidos políticos, responsáveis por 67% dos pedidos [TABELA 3]. Os mais assíduos foram o PSB, Rede e PDT com cinco ações cada, seguidos pelo PT, com 4 pedidos, e PCdoB e PSOL, com 3 ações cada. Associações e sindicatos representando trabalhadores vêm na sequência, responsáveis por 11% dessas ações.

Um aspecto importante a ser observado é que a maioria das decisões relativas a normas do Executivo Federal tiveram o respaldo do colegiado – apenas 25% delas foram monocráticas [TABELA 4]. Ainda que muitas tenham sido decididas monocraticamente de início, a maior parte foi referendada pelo plenário da corte. Esse é um comportamento decisório diferente do habitual, uma vez que o Supremo é constantemente criticado pelo excesso de decisões individuais, ensejando o fenômeno da ministocracia [10]. Marjorie Marona e Paulo Alkimin, em artigo indagando se o bolsonarismo poderia unir o STF, argumentaram que frente à conjuntura de ameaça à legitimidade do tribunal e à própria democracia no Brasil a corte estaria agindo de forma mais coesa, valorizando posições colegiadas [11]. Mas se observarmos as 29 ações que tiveram liminares deferidas até aqui, notamos que embora as decisões colegiadas predominem, há muita divergência no plenário, sendo que 72% delas foram decididas majoritariamente e apenas 14% de forma unânime. 

Uma percepção comum é de que uma Corte que decida com unanimidade ou com pouco dissenso contribuiria para a manutenção da sua legitimidade. O juiz da Suprema Corte norte-americana John Roberts, é um dos que compartilham dessa visão [12], afirmando que decisões divididas aproximariam mais a corte de uma instituição onde predomina a política partidária. Sunstein (2015) [13] colocou essa percepção em teste, e analisou os padrões de votação na Suprema Corte norte-americana ao longo do tempo, e conclui que não há evidências empíricas que sustentem que o padrão decisório da corte represente problemas de legitimidade para a instituição.

Se olharmos para o comportamento da opinião pública acerca do STF, o mesmo parece se aplicar, uma vez que a avaliação da opinião pública reagiu de forma positiva à atuação do STF nesse período de pandemia. Pesquisa recente publicada pelo Datafolha [14] mostrou forte queda na taxa de reprovação popular do Supremo. Se em dezembro de 2019 eram 39% os brasileiros que avaliavam o desempenho dos ministros como ruim ou péssimo, e apenas 19% como ótimo ou bom, em maio de 2020 esses percentuais passaram a ser de 26% de reprovação e 30% de aprovação. A proporção dos que avaliam como regular mante-se estável, 38% em dezembro e 40% agora.

Os dados do Datafolha sugerem que houve um aumento da concordância da população com as decisões do STF, uma vez que como lembrado por David Easton (1975), quando se pergunta sobre o desempenho de uma instituição, avalia-se o nível de apoio específico de que ela goza junto ao público [15]. O autor propõe a diferenciação entre dois tipos de apoio público necessários às instituições: difuso e específico. O difuso trata da percepção de valor da instituição, e das expectativas normativas sobre suas competências, e independe do desempenho dos seus membros. Já o apoio específico tem a ver com a percepção do cumprimento das exigências e expectativas em relação ao papel da instituição, estando diretamente relacionado à confiança e ao desempenho dos seus membros, portanto, ao conteúdo das decisões [16].

A mesma pesquisa mostrou que o apoio popular ao Presidente Bolsonaro segue estável, em 33%. Já a proporção dos que avaliam seu desempenho como ruim ou péssimo passou de 30% para 43% no período [17]. Houve também redução significativa entre os que avaliam a atuação do presidente como regular, encolhendo de 33% para 22%.

Assim, na disputa entre o Presidente e o STF, embora ambos gozem de uma base de apoio popular de tamanho parecido, o tribunal parece estar em vantagem aos olhos da população, com avaliação positiva de 70%, comparada a 55% de Bolsonaro. 

A forma como o STF vem respondendo à judicialização das políticas de combate à pandemia me remete à afirmação de Robert Dahl (1957) [18] de que as cortes, por serem parte da elite política, em geral agem alinhadas ao interesse do governo, “a não ser durante breves períodos de desequilíbrio”. E para pensar esses períodos de desequilíbrio, é útil recorrer ao conceito de deserção estratégica, desenvolvido pela cientista política norte-americana, Gretchen Helmke (2005) [19]. A deserção estratégica implica que toda vez que o governo perde poder, a Suprema Corte tende a decidir mais desfavoravelmente a ele, numa estratégia mesmo de sobrevivência e de evitar retaliações do novo governo que virá. 

Se a resposta do STF à judicialização da política nesse momento de pandemia é um sinal de deserção estratégica, ainda é cedo para dizer. Mas sigo depositando minha esperança democrática na capacidade do tribunal fazer frente às práticas autoritárias do Bolsonarismo.

Como a cientista política Luciana Gross Cunha e eu [20] afirmamos em outra oportunidade, é inegável que nossa Suprema Corte tem uma série de defeitos que precisam ser corrigidos. Mas nossa democracia não pode prescindir da sua existência, nem demanda um modelo de tribunal completamente diferente, ainda mais nesse momento de crise institucional, polarização política, e em meio a onda reacionária que ameaça nossos direitos fundamentais, em uma sociedade altamente desigual e com elevada concentração de renda como é a brasileira.

Sigo esperançosa, mas não de forma ingênua. Evidente que o STF não irá corrigir os problemas do nosso sistema político. Basta observar que os principais avanços em termos de justiça distributiva que alcançamos no Brasil foram obtidos por meio de políticas governamentais direcionadas, e não por reformas constitucionais ou jurisprudência constitucional progressista [21]. O protagonismo do Supremo não pode substituir a via da política representativa na busca por uma sociedade mais democrática, justa e equitativa, mas deve complementá-la, num jogo de equilíbrio delicado entre as instituições [22].  

Fabiana Luci de Oliveira é docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar e bolsista produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq

 

Notas

[1] Redação O Estado de S. Paulo. “Ordens absurdas não se cumprem, temos que botar um limite’, diz Bolsonaro”, O Estado de S. Paul,  28.mai.20. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ordens-absurdas-nao-se-cumprem-temos-que-botar-um-limite-diz-bolsonaro,70003317466. Acesso em 30.mai.2020.

[2] ARGUELHES, Diego Werneck; GOMES, Juliana Cesario Alvim e PEREIRA, Thomaz. “Criticar sim, ameaçar nunca: a reação de Bolsonaro contra o Supremo”. Jota, 29.mai.20. Disponível em: https://www.jota.info/stf/supra/criticar-sim-ameacar-nunca-a-reacao-de-bolsonaro-contra-o-supremo-29052020. Acesso em 30.mai.2020.

[3] GONDIM, Abnor e DAMÉ, Luiza. “CPI descumpre liminar do Supremo”, Folha de S. Paulo, 16.dez.99. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1612199913.htm. Acesso em 30.mai.2020. Acesso em 30.mai.2020.

[4] CARVALHO, Daniel et al. “Senado desafia Supremo e mantém Renan na presidência da Casa”. Folha de S. Paulo, 06.dez.2016. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/12/1838885-senado-desafia-supremo-e-mantem-renan-na-presidencia-da-casa.shtml.

[5] MARONA, Marjorie e KERCHE, Fábio. “Brasil na encruzilhada”, 29.mai.20. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/brasil-na-encruzilhada/. Acesso em 30.mai.2020.

[6] HOUS, Débora Sögur et al. “Bastam um soldado e um cabo para fechar STF, disse filho de Bolsonaro em vídeo”. Folha de S. Paulo, 21.out.18. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/basta-um-soldado-e-um-cabo-para-fechar-stf-disse-filho-de-bolsonaro-em-video.shtml. Acesso em 30.mai.2020.

[7] OLIVEIRA, Fabiana Luci de. “O Supremo e a política judicial informal”. 01.mar.19. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/o-supremo-e-a-politica-judicial-informal-01032019. Acesso em 30.mai.2020.

[8] ALMEIDA, Eloísa Machado de. “Supremo abandona letargia e passa a controlar atos do governo Bolsonaro”. Folha de S. Paulo, 05.mai.20. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/supremo-abandona-letargia-e-passa-a-controlar-atos-do-governo-bolsonaro.shtml. Acesso em 30.mai.2020.

[9] Ver OLIVEIRA, Fabiana Luci. Agenda suprema: interesses em disputa no controle de constitucionalidade das leis no Brasil. Tempo soc. [online]. 2016, vol.28, n.1, pp.105-133. ISSN 1809-4554.  https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.106021.

[10] Ver ARGUELHES, Diego Werneck  e  RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministrocracia: O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Novos estud. CEBRAP [online]. 2018, vol.37, n.1, pp.13-32. ISSN 1980-5403.  https://doi.org/10.25091/s01013300201800010003.

[11] MARONA, Marjorie. ALKMIN, Paulo. “Um Por Todos, Todos Por Um: O Bolsonarismo Pode Unir o STF?”. Jota, 09.mai.20. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-por-todos-todos-por-um-o-bolsonarismo-pode-unir-o-stf-09052020. Acesso em 30.mai.20.

[12] Disponível em: https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2007/01/robertss-rules/305559/. Aceso em 30.mai.20.

[13] SUNSTEIN, Cass R. (2015). “Unanimity and Disagreement on the Supreme Court”. Cornell Law Review, Vol. 100 (4), pp. 769-823. Disponível em: http://cornelllawreview.org/files/2015/05/Sunsteinfinal.pdf. Acesso em 30.mai.20.

[14] BÄCHTOLD, Felipe. “Reprovação a Congresso e STF tem forte queda em meio a crise com Bolsonaro, diz Datafolha”. Folha De S. Paulo, 30.mai.20. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/reprovacao-a-congresso-e-stf-tem-forte-queda-em-meio-a-crise-com-bolsonaro-diz-datafolha.shtml. Acesso em 30.mai.2020.

[15] Ver EASTON, David. (1975). “A re-assessment of the concept of political support”. British Journal of Political Science, v.5, n.4, p.435-457. 

[16] OLIVEIRA, Fabiana Luci. (2020). Decisões impopulares reduzem a legitimidade do STF? Jota, 17.jan.2020. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/decisoes-impopulares-reduzem-a-legitimidade-do-stf-17012020. Acesso em 30.mai.20. 

[17] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/rejeicao-a-bolsonaro-bate-recorde-mas-base-se-mantem-diz-datafolha.shtml. Acesso em 30.mai.2020.

[18] DAHL, Robert. (1957). “Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy maker”. Journal of Public Law, N. 6: 279-295.

[19] HELMKE, Gretchen. (2005). Courts under Constraints – Judges, Generals, and Presidents in Argentina. Cambridge: Cambridge University Press.

[20] OLIVEIRA, Fabiana Luci de. CUNHA, Luciana Gross. Reformar o Supremo Tribunal Federal? REI, vol 6 (1), 2020. https://doi.org/10.21783/rei.v6i1.457.

[21] Como afirma Ran Hirschl (“The Political Origins of the New Constitutionalism,” Indiana Journal of Global Legal Studies, 2004, Vol. 11(1): 71-108), a constitucionalização de direitos e o fortalecimento dos poderes de revisão judicial resultam de um pacto estratégico conduzido por elites políticas hegemônicas, em associação com as elites econômicas e jurídicas com as quais têm interesses compatíveis. Essas elites buscam o insulamento de suas preferências políticas, preservando-as frente às mudanças potencialmente advindas da política democrática. Esse empoderamento, para ele, é reflexo da combinação de preferências políticas e interesses profissionais e econômicos desses grupos.

[22] OLIVEIRA, Fabiana Luci de. (2017) O Supremo Tribunal Federal e a Política No Brasil Contemporâneo. KA 2017 Cadernos1 ABST.indd 125. https://www.kas.de/c/document_library/get_file?uuid=284006f0-b5fe-a5e5-7d30-360bcc6d5e98&groupId=265553

 

TABELAS

 

Tabela 1. Decisão em ações de controle de constitucionalidade (ADI, ADPF, ADO) propostas contra normas federais, de acordo com origem da norma

Tema da norma Âmbito Total
Estadual Federal Municipal
Direitos sociais 0% 42% 0% 33%
Regulação da economia 56% 3% 100% 15%
Direitos civis 0% 17% 0% 13%
Administração da justiça 0% 14% 0% 11%
Política orçamentária e fiscal 0% 11% 0% 8%
Federalismo 11% 5% 0% 6%
Funcionalismo público 28% 0% 0% 6%
Política tributária 6% 3% 0% 4%
Competição política 0% 3% 0% 2%
Processo legislativo 0% 3% 0% 2%
 (N) 18 66 1 85

Fonte:  elaboração própria com base em Painel de Ações Covid-19, atualizado até 22.mai.2020

Tabela 2. Decisão em ações de controle de constitucionalidade (ADI, ADPF, ADO) propostas contra normas federais, de acordo com origem da norma

Decisão Origem da norma
CNJ Executivo Federal Governo Federal Legislativo Federal Total
Liminar indeferida/pedido prejudicado 100% 13% 67% 15%
Liminar deferida (todo/parte) 54% 38% 49%
Sem decisão 33% 33% 63% 36%
(N) 1 54 3 8 66

Fonte:  elaboração própria com base em Painel de Ações Covid-19, atualizado até 22.mai.2020

Tabela 3. Autores de ações de controle de constitucionalidade (ADI, ADPF, ADO) propostas contra normas federais, de acordo com origem da norma

Autor ação Origem da norma Total
CNJ Executivo Federal Governo Federal Legislativo Federal
Partido Político 0% 67% 100% 63% 67%
Associação (trabalhador) 0% 11% 0% 13% 11%
Associação (profissão jurídica) 100% 9% 0% 0% 9%
Associação (interesse econômico) 0% 9% 0% 0% 8%
Presidente da República 0% 2% 0% 25% 5%
Governador 0% 2% 0% 0% 2%
(N) 1 54 3 8 66

Fonte:  elaboração própria com base em Painel de Ações Covid-19, atualizado até 22.mai.2020

 

Tabela 4. Tipo de decisão em ações de controle de constitucionalidade (ADI, ADPF, ADO) propostas contra normas do Executivo Federal, de acordo com o resultado

Liminar indeferida/pedido prejudicado Liminar deferida (todo/parte) Total
Majoritária 29% 72% 64%
Monocrática 71% 14% 25%
Unânime 0% 14% 11%
(N) 7 29 36

Fonte:  elaboração própria com base em Painel de Ações Covid-19, atualizado até 22.mai.2020

 


Sociologia na Pandemia 9#

 

Fazer morrer e deixar morrer: efeitos da Covid-19 e da estupidez nas periferias

 

Por Luana Motta e Gabriel Feltran

 

Desde o anúncio dos primeiros casos de contaminação por Covid-19 no Brasil, em fevereiro de 2020, a desigualdade passou a ser tema recorrente no debate público. A ideia de que estamos todos expostos ao vírus por sermos todos seres humanos não encontra correspondência na realidade; há certos corpos mais expostos tanto à contaminação quanto aos efeitos políticos, sociais, econômicos e sanitários do vírus, bem como da pandemia. 

Acadêmicos, epidemiologistas, médicos, químicos, microbiologistas, economistas e cientistas sociais, mas também matérias jornalísticas e nas redes de movimentos sociais e ONGs de periferias, já alertavam e debatiam como os efeitos do vírus se distribuiria desigualmente. As preocupações iam desde a ausência de pesquisas sobre o comportamento do vírus em ambientes como as favelas, ou a falta de modelos estatísticos e epidemiológicos para prever como a pandemia poderia se desenvolver nesses territórios, até o silêncio dos governos sobre planos e estratégias específicos para essas localidades. Ressaltava-se os problemas de infra-estrutura urbana pré-existentes, que poderiam agravar o cenário. 

Ainda que num primeiro momento a incidência dos casos tenha se concentrado em territórios e sujeitos mais ricos, já sabíamos que seus efeitos, com o desenrolar da pandemia, seriam mais intensos e letais entre os mais pobres; que a desigualdade inicial do alastrar do vírus se inverteria. Talvez a notícia que marca esta inversão tenha sido aquela da primeira morte por Covid-19 no Rio de Janeiro, a de uma empregada doméstica que se contaminara através da patroa, que havia chegado da Europa recentemente. Dois meses depois desta morte, já está evidente que as periferias urbanas têm experimentado a pior face da pandemia.

Em projeto piloto na cidade de São Paulo, pesquisadores, em conjunto com o IBOPE e o Laboratório Fleury, coletaram amostras de sangue de uma amostra de 520 pessoas, em seis distritos da capital paulista, investigando a existência de anticorpos para o Sars-CoV-2, causador da Covid-19, produzidos dias depois da infecção [1]. Entre os seis distritos escolhidos, três foram escolhidos por terem os maiores números de casos e estarem entre os mais ricos da cidade; os outros três foram incluídos por terem as maiores taxas de mortalidade, distritos dentre os mais pobres da cidade. Um dos resultados indica que onde há mais óbitos, distritos pobres, testa-se muito pouco; ou seja, o número oficial de casos está muito mais subnotificado nas periferias. Nos distritos mais ricos testa-se mais e oferece-se muito melhor tratamento. Os resultados da pesquisa confirmam os dados oficiais: no que tange à distribuição territorial dos óbitos, as mortes por coronavírus na cidade de São Paulo são sensivelmente mais altas nas periferias, em especial em áreas de cortiços, favelas e conjuntos habitacionais [2]. 

Tragédia anunciada: em São Paulo, morre-se hoje, ao menos, 10 vezes mais de Covid-19 nas periferias do que em bairros centrais da cidade, da elite e das classes médias. As razões dessa tragédia são diversas. Muitos moradores de periferias são trabalhadores e continuam realizando suas atividades laborais, não têm a opção de cumprir a quarentena. Seus deslocamentos pela cidade são feitos, na maioria dos casos, em transporte público, ambiente em que o risco de contaminação é muito elevado. Além disso, problemas persistentes e já antigos de infraestrutura urbana e serviços essenciais, como o saneamento precário, a intermitência no abastecimento de água, as ruas e vielas estreitas e pouco ventiladas nas favelas, além de residências com muitos moradores, são elementos decisivos para a aceleração da disseminação do vírus. Soma-se a tudo isso o fato de que as periferias, com exceções pontuais, têm serviços de saúde precários, insuficientes ou inexistentes (o que inclui falta de vagas em hospitais, atendimento no tempo adequado, distância dos hospitais ou centros de referência, etc.). Este é o cenário que os mapas e os números produzidos por colegas e jornalistas, ainda que preliminares, têm nos mostrado.

Nosso trabalho de pesquisa tem sido o de entender as periferias, a cidade e o conflito urbano a partir das próprias periferias; partimos do pressuposto de que centro e margem se produzem mutuamente [3]. Essa aposta metodológica e epistemológica, de um olhar relacional para o que existe nas periferias, para o que elas são, e não para o que elas ainda não seriam, é profícua também para entender a pandemia. Os relatos de nossos interlocutores e amigos mais próximos nas favelas e bairros pobres de Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, mas também de notícias de redes de ONGs e movimentos sociais comunitários, são de que os problemas nesses territórios não se encerram nas elevadas taxas contaminação e mortalidade por coronavírus [4]. 

A fome está de volta às favelas. Pesquisa recente do CEBRAP demonstra que um dos problemas mais recorrentemente mencionados por líderes comunitários é a falta de alimentos. Desemprego crescente, trabalhos ainda mais precários e cortes nos salários têm atingido em cheio as quebradas. A tudo isso se soma a dificuldade de acesso – por razões técnicas ou por desinformação – ao “auxílio” de R$ 600,00 do governo federal. Alguns são considerados não aptos a receberem, outros enfrentam problemas com a liberação do benefício, outros tantos estão com “erros” em seus cadastros.  

Frente a este duro cenário, nos chegam notícias de mobilizações de vários tipos. O “nós por nós” das favelas nunca pareceu tão evidente. À arrecadação de roupas, cobertores, alimentos e produtos de higiene pessoal, somam-se distribuição de máscaras e álcool em gel, medicamentos e mesmo elaboração de estratégias comunitárias de comunicação em saúde, com brigadas coordenadas centralmente. As organizações de base e as estratégias de Saúde da Família do SUS são, novamente, vitais seja para distribuir esses recursos arrecadados, seja para cadastrar as famílias mais necessitadas. A criação de comissões de acompanhamento de parcelas do território, registros dos casos (confirmados e/ou suspeitos), registros de mortos pela Covid-19 também contam com igrejas e associações de base. Também as iniciativas do mundo do crime têm aparecido, mesmo que de modo muito fragmentado. Circulam notícias de toques de recolher, regras específicas para circulação de pessoas nas comunidades e, em alguns casos, de obrigatoriedade do uso de máscaras. De modo mais tímido, também temos visto ações de igrejas evangélicas e católicas de assistência, distribuição de alimentos, produtos de higiene pessoal, etc. 

Ainda que revelem a presença de distintas instâncias normativas legítimas nas periferias, essas são ações de mitigação, que incidem sobre as condições básicas e mais urgentes de vida. Moradores, associações, movimentos socais, mundo do crime ou igrejas não têm a capacidade de incidir sobre o atual problema de saúde pública, nem sobre a tragédia da coordenação dessas ações no plano federal. Não conseguem conter a expansão da contaminação e, muito menos, evitar as elevadas taxas de mortalidade. Não se pode fazer muito apenas no plano local, frente a uma pandemia. 

Imaginemos que tivéssemos um estadista no governo, com um primeiro escalão de ministros da mais alta capacidade técnica e política. Imaginemos que, no mês de fevereiro, esses atores se reunissem com seus estrategistas e montassem um plano unívoco de prevenção do vírus, que não estava em território nacional exceto por dois casos, já isolados. Sonhemos que o ministério da saúde fosse ocupado por alguém que conhece o SUS e sua incrível capilaridade, bem como capacidade de coordenação. Que esse ministério liderasse os colegas para que escolas, CRAS, CREAS, CAPs e outros equipamentos públicos, munidos de uma estratégia única entre governo central, estados e municípios, tivesse prevenido a chegada do vírus no Brasil e, no caso de contaminação comunitária, estabelecesse regras rígidas, junto da segurança pública, para que ela fosse minimizada imediatamente. Nesse caso, estaríamos agora relaxando nossas medidas de isolamento, como faz atualmente a Alemanha. Assim, entende-se que não há ausência de Estado nas periferias e favelas brasileiras. Há profunda ausência de coordenação e responsabilidade e há precariedade de determinados serviços públicos nesses territórios, sem dúvida. 

Mas os efeitos da presença estatal inconsequente é assassina, nesses territórios. Não bastasse a pandemia, operações policiais voltam a acontecer e a matar jovens pobres e negros, os operadores mais baixos dos mercados ilegais, nos territórios que estudamos. No momento em que o Presidente da República afirma que os brasileiros estão acostumados a nadar em córregos de águas contaminadas, sem que nenhum problema aconteça, lembramo-nos de que a expectativa de vida nos distritos periféricos de São Paulo é de 55 anos de idade, enquanto nos Jardins, na mesma cidade, têm-se a expectativa média de viver 80 anos.  É presença estatal, ainda, o anúncio de que O Governo Federal estuda utilizar navios para isolar e tratar pessoas de baixa renda infectadas com a doença que não necessitem ficar na UTI. A solução […] é considerada promissora para o caso do Rio de Janeiro, estado com […] uma população de cerca de 1,5 milhão vivendo em centenas de comunidades” [5].

Sim, pressupõe-se novamente que as favelas, contaminadas pelas elites, podem produzir um efeito rebote. Melhor isolar essa gente em navios, quem sabe seja até melhor lançar esse pessoal em alto mar. Depois de alguns anos lidando com as notícias diárias, não parece difícil notar que há sim um projeto político estatal em curso, com foco nas periferias. Não há ausência estatal. Ainda que a pandemia escancare e agudize a desigualdade, a pobreza, a falta de acesso a serviços públicos e direitos básicos, o acúmulo do debate da sociologia urbana brasileira nos indica que o que vem pela frente será ainda pior. 

A plausibilidade de consentirmos com essa realidade parece ter como base de sustentação uma nova figuração das resoluções do conflito urbano. Se nas últimas três décadas, o conflito urbano teve seu cerne radicalmente deslocado do problema da integração das classes trabalhadoras para a questão da violência que emanaria desses espaços, a pandemia é uma oportunidade.  

Essa nova figuração do conflito urbano brasileiro nos parece ser um elemento decisivo para compreendermos o que tem se passado nas periferias, em tempos de pandemia. Ao longo dos anos 2000 muito se discutiu no Brasil sobre a idéia foucaltiana de que, na modernidade e com o advento do biopoder, a governamentalidade tratar-se-ia de fazer viver e deixar morrer. Especialmente nos últimos anos, em que temos assistido ao crescimento da letalidade policial e ao agravamento das condições de pobreza nas periferias, nós que estudamos esses espaços e vidas marginais temos nos perguntado se estas ideias ainda valem, politica ou analiticamente. A pandemia parece nos indicar que o cenário é ainda mais grave. Há algumas semanas noticiou-se que o Governo Federal solicitou à empresa privada que controla a distribuição da transferência de renda, que evitasse quem tem parentes na cadeia [6]. Se não há mais horizonte de integração universal e se a alteridade se radicaliza, sobretudo frente aqueles considerados sem recuperação, é hora de resolver o assunto: fazer morrer os bandidos, como de costume, e deixar morrer a massa daqueles que não foram atletas. “E daí?”

 

Luana Motta é professora do Departamento de Sociologia da UFSCar.

Gabriel Feltran é professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

 

Notas

[1] Para uma síntese dos achados da pesquisa ver episódio 15 do Podcast Luz no Fim da Quarentena, em https://piaui.folha.uol.com.br/radio-piaui/luz-no-fim-da-quarentena/

[2]https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/05/04/bairros-com-maior-numero-de-mortes-por-coronavirus-em-sp-concentram-favelas-e-conjuntos-habitacionais.ghtml

[3] DAS, V.; POOLE, D. (eds.). Anthropology in the margins of the state. Santa Fé: School of American Research Press, 2004, p. 225-252.

[4] Nessa mesma direção, pesquisa da Rede de Pesquisa Solidária, indica problemas decorrentes da pandemia que não se encerram na doença em si. Ver https://redepesquisasolidaria.org/wp-content/uploads/2020/05/boletim-7-pps.pdf

[5] https://www.agazeta.com.br/brasil/morador-de-favelas-brasileiras-infectados-com-coronavirus-podem-ir-para-navios-0320

[6]https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/05/14/governo-nega-auxilio-emergencial-para-parentes-de-presos.htm

 


Sociologia na Pandemia #8

 

A utilidade das palavras

 

Por Jorge Leite Jr.

 

Vamos salvar o pensamento
De alianças com carrascos
E casamentos com carrancas
Que na voz que o mundo te arranca
Vale é o tanto quanto lavras
A utilidade das palavras

Nei Lisboa

 

Atualmente, para se caracterizar a pandemia causada pela dispersão global do novo coronavírus SARS–CoV-2 (causador da doença chamada COVID–19), tanto na ciência quanto na mídia, o termo “peste” não é utilizado. Isso mostra um avanço civilizatório. Afinal, a linguagem não é apenas um instrumento para descrever o mundo, mas também para criá-lo.

Herdeiro de uma visão religiosa e derivado da lógica das “pragas” enviadas por um deus, o termo peste evoca a noção de uma doença genérica decorrente de um castigo divino; é um tipo de punição pelo desrespeito ou teimosia humana frente às ordens de uma poderosa entidade sobrenatural e que atinge toda uma população (Delumeau, 1993). Por seu caráter místico, a palavra peste carrega em si a violência de uma vingança desmedida e o sofrimento de uma condenação. Não foi por acaso que, no início da AIDS na década de 80 do século XX, ela foi chamada de “peste gay”, por certos grupos religiosos (Duby, 1999). 

Além disso, “peste” também supõe algo que se determina no plano divino e que, depois de decidido, torna-se tanto inevitável de acontecer quanto impossível de parar. Assim, a peste é um acontecimento que deixa o ser humano sem ter como se proteger. É por isso que durante o processo de mudança epistemológica que moldou a ciência moderna, o termo peste foi gradualmente substituído por endemia, epidemia ou pandemia de acordo com sua localização, duração e/ou alcance. Ocorre então a alteração da visão de um castigo coletivo e inevitável, para um problema público teoricamente previsível, evitável e tratável. A morte coletiva deixa de ser vista como um destino e passa a ser encarada como um desafio sanitário e populacional que pode ser superado.

Apesar desta mudança importante nos campos epistemológico e linguístico, que tem como pressuposto a noção de agência humana com sua capacidade de prever e atuar antes e depois de uma crise gerada por agentes patógenos, isso não significa que outros elementos das dinâmicas sociais estejam excluídos de interferir nos modelos de saúde pública. Assim, diversos interesses políticos, econômicos e culturais influenciam nas decisões que os países irão tomar em relação a seus sistema de saúde, tanto na prevenção de doenças e promoção da saúde quanto no atendimento terapêutico de sua população. Em livro de 2005, ao refletir sobre a gripe aviária (nome popular da doença pandêmica que nesse mesmo período atingiu especialmente – mas não apenas – países asiáticos), o sociólogo Mike Davis afirma:

A concordância científica em relação ao eminente perigo de uma pandemia de gripe aviária é quase tão ampla e abrangente quanto o consenso de que os seres humanos são os grandes responsáveis pelo aquecimento global. Todas as organizações responsáveis pela saúde mundial, inclusive a OMS e os CDC, tem alertado que o próximo furacão viral pode ser ainda mais letal do que a pandemia de 1918 (Davis, 2006; p.187).

 

Conforme o comentário de Davis, podemos concluir que não há absolutamente nada de inesperado ou repentino na atual pandemia. Diferente da lógica da peste, a covid-19 não é consequência de um destino inevitável; tampouco a negligência na testagem, a escassez de leitos hospitalares e as mortes por falta de atendimento ou equipamento (no sistema de saúde público ou privado) são situações imprevisíveis ou inusitadas e, por isso, fora de qualquer possibilidade de planejamento a curto, médio ou longo prazo. 

Da mesma forma, a crise sanitária que o Brasil vive é fruto tanto de escolhas políticas que não apenas visam sucatear a saúde pública, quanto de um Estado que nunca se interessou em investir o necessário naquele que é um dos mais importantes programas de democratização e inclusão em nosso país: o Sistema Único de Saúde. O SUS, o maior projeto de atendimento universal, integral e equitativo do mundo, é o resultado de um plano político democrático e inclusivo; o seu subfinanciamento e desmonte, é o resultado de outro plano político, desdemocratizante, subserviente a interesses do mercado e investidor no desmantelo da estrutura estatal de seguridade social. Se o termo peste não é mais usado hoje em dia, ainda assim a ideia de destino e inevitabilidade das mortes parece estar presente nas falas do atual presidente e seus subordinados quando afirmam: “É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”; “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” [2]; “Na humanidade, não para de morrer (…) Sempre houve tortura” [3]; “É inevitável” [4] –  usadas como justificativas para naturalizar o descaso intencional e genocida de seu governo.

Mas se algumas palavras deixam de ser usadas (e, por isso mesmo, as concepções de mundo a elas associadas perdem validade), certas metáforas se mantém de forma persistente. É o caso da guerra. A metáfora da guerra em si não é boa nem ruim. Em certos momentos históricos pode ser extremamente útil e até necessária. Mas na área da saúde, ela com certeza não deve ser o referencial que orienta as ações voltadas à prevenção, proteção e cuidado de vidas em situações de vulnerabilidade social e física. A ensaísta norte-americana Susan Sontag já havia apontado em 1978 (no livro “A doença como metáfora”, em que discute a tuberculose e o câncer), e depois novamente em 1988 (em “AIDS e suas metáforas), a inutilidade terapêutica e a agressividade da linguagem ao se pensar e descrever enfermidades e tratamentos médicos como se fossem um conflito militar. Desde então esta crítica é repetida, especialmente nos tempos atuais (Sexuality, 2020), de maneira totalmente inócua. O processo médico de prevenir e curar doenças não é uma guerra ou como uma guerra

Apesar da urgência da resposta, da necessidade de uma logística e organização próprias, do esforço de profissionais treinados para um fim específico e do enorme sofrimento coletivo comum a ambos, crise sanitária e guerra[5] são coisas distintas em pressupostos, métodos e objetivos. Termos como “combate”[6], “front”[7], “inimigo”[8], “alvo”[9], “recrutas”[10], “soldados”[11], “campo de batalha”[12] (ou mesmo “orçamento de guerra”)[13], acompanham uma lógica na qual a violência é não apenas legitimada e tomada como necessária, mas também a dor e a morte são relativizadas e naturalizadas[14]. A linguagem bélica dá uma intenção racional ao vírus e divide as pessoas entre um lado “a favor” e outro “contra”. Se no Brasil existe alguém que está ativamente contra os esforços para o enfrentamento à doença, esse alguém com certeza não é o vírus. 

A guerra é um comportamento consciente e intencional do ser humano (e não de microrganismos) e é feita pressupondo o inimigo como um ser capaz de pensar e agir estrategicamente. Vírus não pensam, não planejam ataques nem discutem táticas de invasão. O coronavírus não é um guerreiro, um militar ou um estrategista, apesar da letalidade em comum. Da mesma forma, médicos e operadores da saúde não são soldados, especialmente em relação ao tema da morte: agentes de saúde salvam vidas acima de todo e qualquer ideal político, e não as tiram em nome desses ideais. O objetivo último de uma guerra (mesmo de defesa) não é salvar vidas, e o de uma emergência sanitária como a que estamos vivendo, sim. A atenção primária em saúde não é a mesma coisa que o front de um campo de batalha, pois seus procedimentos e objetivos são distintos e opostos.

A acusação de agentes patogênicos serem criados em laboratório, a nacionalização do vírus e a linguagem xenófoba da guerra seguem a mesma lógica: a da agressividade militar contra um Outro. O princípio do combate bélico estimula comportamentos agressivos e diminuição da empatia geral – e não apenas pelo inimigo. Ele fragiliza a democracia por sua lógica de exceção, ao mesmo tempo em que visa diminuir a capacidade crítica da sociedade em relação aos líderes políticos que conduzem o conflito, ofuscando os esforços conjuntos para além dos interesses nacionalistas e/ou de mercado. Além disso, o embate marcial é baseado em uma ideal de masculinidade tradicional, que despreza e subjuga tudo aquilo que é associado ao feminino, inclusive os “cuidados” – a área central de enfrentamento a uma pandemia.

Neste momento de emergência sanitária, é importante atuarmos como cidadãos e cidadãs com foco nas ações de prevenção e cuidado. Temos que pensar em termos de atenção e assistência, não em termos de conflito – mesmo porque, afirmar que estamos em guerra pode ser algo muito cruel e insensível para com a populações do planeta que realmente estão em guerra.

Se a metáfora e a linguagem militar estão sendo usadas em vários países do mundo, isso diz menos sobre a seriedade e eficiência no enfrentamento global à pandemia e mais sobre a hierarquização das prioridades e a preparação local para o uso de tecnologias militares/policialescas de controle social. Embasada na concepção de inimigo a ser exterminado, a militarização da saúde pode facilmente transformar o combate à doença no combate ao doente (Pimenta, 2018). Da mesma forma, o chamado à adesão coletiva aos métodos de prevenção e proteção ao coronavírus pode se tornar uma convocação dos mecanismos de Estado para culpabilização dos sujeitos.

Mas a mudança de terminologia/pensamento parece ser algo extremamente difícil em nosso país. Mesmo o importantíssimo evento organizado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)[15], foi uma marcha pela ciência. Ainda que o termo “marcha” não esteja unicamente associado ao universo militar, sua origem e o atual momento histórico brasileiro se encarregam de fazer tal relação. Este evento – afirmo: fundamental – não poderia ter sido uma “caminhada”, uma “jornada” ou até mesmo uma “passeata”? Confesso que fiquei incomodado com a ideia de cientistas marchando.

Nas últimas semanas, houve o aumento expressivo de militares nos cargos estratégicos do SUS. Independente da competência dessas pessoas, a questão levantada é: por que, especialmente nesse momento, tais cargos não foram preenchidos por profissionais da saúde? O Brasil possui um quadro técnico reconhecido internacionalmente e que já há décadas trabalha justamente em questões de saúde coletiva, gerenciamento e logística do SUS e afins. A única explicação para que tais pessoas não sejam nem cogitadas aos cargos-chave ou para o assumir o próprio Ministério da Saúde é a esperança por parte do atual governo, da eliminação de uma parcela da sociedade, especialmente aquela mais vulnerável ao vírus: pobres, deficientes, idosos, desempregados, moradores de periferia – justamente aqueles que há tempos são considerados um fardo à Seguridade Social. Estamos vivendo uma emergência (junto a uma crise) de saúde pública por causa do desmantelamento programático tanto na Seguridade Social (Saúde, Assistência Social e Previdência) quanto na Educação e Cultura –  e esse problema não foi criado por um vírus.

O sistema de saúde de uma sociedade, materialização mais completa da biopolítica, nas mãos de um governo proto-fascista, torna-se a expressão oficial da necropolítica. O Estado brasileiro em seu viés genocida, que historicamente investe no extermínio das populações negras e periféricas – tendo como instrumento ironicamente cruel a chamada “segurança” pública –, no atual governo usa o próprio Ministério da Saúde para abandonar a população à própria sorte. O desleixo na testagem, a subnotificação dos casos de pessoas infectadas e mortas, a cada vez mais escassa e escondida divulgação do número de óbitos no site do MS e a coação para o uso de um medicamento cuja eficácia não tem comprovação científica (podendo inclusive ser prejudicial aos doentes), são exemplos disso.

A militarização da saúde no Brasil é decorrente do projeto maior de um governo autoritário que idealiza as forças armadas, idolatra torturadores e aparelha ideologicamente o Estado, já contando com 54% dos ministérios ocupados por militares. A relativa tranquilidade com que esta situação é aceita por parte da sociedade talvez decorra também da consequência lógica de pensar que, se estamos em guerra, nada mais óbvio do que ter generais e militares no comando do Ministério da Saúde. O Brasil não precisa de militares no poder – nem na política institucional, nem na linguagem de enfrentamento a pandemia.

Conforme o vocabulário político/moral contemporâneo, vivemos simultaneamente uma “guerra às drogas”, “guerra ao terrorismo”, “guerra ao crime”, além de uma “batalha espiritual” – segundo alguns grupos religiosos – e, agora, uma “guerra ao vírus”. Já não temos guerras e conflitos o suficiente? Sendo assim, não custa, relembrar Sontag (1989: p. 111): “Não estamos sendo invadidos. O corpo não é um campo de batalha. Os doentes não são baixas inevitáveis, nem tampouco são inimigos. Nós — a medicina, a sociedade — não estamos autorizados a combater por todo e qualquer meio.” Se a linguagem for pensada como um campo em disputa, ao invés de um campo de batalha, podemos abandonar a metáfora da guerra assim como abandonamos o termo “peste”. Quem sabe então, as imagens e palavras usadas sejam mais úteis não apenas para descrever, mas para criar uma sociabilidade em que possamos pensar e agir em termos de coletivismo, cooperação e ajuda.

 

Jorge Leite Jr. é professor do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal de São Carlos (DS/ PPGS/ PPGLit – UFSCar)

 

Notas

[1] O título deste boletim é retirado da música homônima lançada em 2001 pelo cantor e compositor gaúcho Nei Lisboa, cuja terceira estrofe é reproduzida aqui como epígrafe.

[2]https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/01/todos-nos-vamos-morrer-um-dia-as-frases-de-bolsonaro-durante-a-pandemia.htm

[3] https://www.youtube.com/watch?v=v9gLHrP7RNw

[4]https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/05/epidemia-de-coronavirus-vive-nova-etapa-e-avanco-ao-interior-e-inevitavel-diz-ministro-interino-da-saude.shtml

[5] https://www.charidy.com/vempraguerra

[6]https://nacoesunidas.org/5-razoes-pelas-quais-o-mundo-precisa-da-oms-para-combater-a-pandemia-da-covid-19/

[7] https://www.sanarmed.com/covid-19-sistema-imune-e-nosso-front-de-guerra-colunistas

[8] http://www.sbac.org.br/blog/2020/04/16/covid-19-conhecendo-o-inimigo/

[9]https://pebmed.com.br/covid-19-estudo-brasileiro-identifica-alvo-potencial-em-grupos-de-risco/

[10]https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2020/05/21/onu-municia-recrutas-digitais-contra-desinformacao-e-caos-da-covid.htm 

[11] http://www.acm.org.br/nossos-soldados-da-saude-e-a-epidemia-de-coronavirus/ 

[12]https://oglobo.globo.com/economia/empresas-entram-no-campo-de-batalha-contra-coronavirus-24319464

[13]https://www.camara.leg.br/noticias/659759-congresso-promulga-hoje-pec-do-orcamento-de-guerra/ 

[14] No Brasil houve até um apresentador popular de TV que pediu ao governo um campo de concentração:

https://www.youtube.com/watch?v=7XIAhM1U6lA

[15] Ocorrido virtualmente no dia 07 de maio de 2020, tendo como mote a defesa da ciência frente a um presidente que declara orgulho de sua ignorância cultural e uma equipe de governo assumidamente anti-intelectual, que usa a própria máquina do Estado para desacreditar e aniquilar a produção científica nacional, especialmente na área de Humanidades.

http://portal.sbpcnet.org.br/marcha-virtual-pela-ciencia/

 

Bibliografia

DAVIS, Mike. O monstro bate à nossa porta. Rio de Janeiro, Record, 2006.

DUBY, Georges. Ano 1000 Ano 2000 – Na pista de nossos medos. São Paulo, Editora/ Imprensa oficial do Esatdo, Unesp, 1999.

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo, Companhia das letras, 1993.

PIMENTA, Denise. “If you suspect a case of Ebola. free call 177”: Ensaio sobre a militarização da saúde em Serra Leoa no período da epidemia de Ebola (2014-2016). Cadernos De Campo, São Paulo, 27(1), 2018, p. 85-117.

SEXUALITY policy watch. COVID-19 e linguagem bélica: compilação crítica (em português, espanhol e inglês), 2020. https://sxpolitics.org/ptbr/covid-19-e-linguagem-belica-compilacao-critica-em-portugues-e-ingles/10443

SONTAG, Susan. AIDS e suas metáforas, São Paulo, Companhia das letras, 1989.

 


Sociologia na Pandemia #7

 

Pandemia e desigualdades socioambientais

 

Por Rodrigo Constante Martins

 

Ainda estão em jogo os modos pelos quais a pandemia da COVID-19 capitulará nossa história. Tanto o conhecimento sobre o vírus e sobre o alcance de suas interações com o meio e com o corpo humano, quanto as estratégias nacionais e internacionais de reação ao que se convencionou classificar como crise sanitária, vêm se deslocando rapidamente no tempo e no espaço. Em qualquer dos momentos desta crise, entretanto, há uma variável transversal que condiciona em larga medida sua dinâmica e alcance. Em lato senso, podemos classificar esta variável como questão ambiental.

 

O caráter interdisciplinar da moderna questão ambiental demanda esforços de uma verdadeira ecologia de saberes para o dimensionamento de sua interação com a pandemia da COVID-19. A este respeito, as perguntas são variadas e complexas. Dentre as mais relevantes: como o vírus SARS-CoV-2 responde ao clima? Por que suas formas anteriores (manifestas em 2002 e 2009 na China) não se tornaram pandemias e como foram ambientalmente controladas ou limitadas? Suas interações com climas e populações tropicais, equatorianas, mediterrâneas ou temperadas, revelam alguma particularidade importante? Quais as hipóteses mais sólidas para compreender as variações do ritmo e gravidade das contaminações em diferentes contextos sócio territoriais? No, Brasil, em particular, qual será a intensidade da relação já verificada na França e nos EUA entre poluição urbana e o número de óbitos?  No ritmo de expansão das queimadas e dos desmatamentos da era Bolsonaro, quais os riscos do agravamento das morbidades respiratórias que concorrem para os casos mais severos de ocorrência da COVID-19?

 

Desde a sociologia, aparatos analíticos importantes se acumularam nas últimas décadas para a problematização da questão ambiental. Um destes aparatos, e que certamente nos permite avançar sobre as incertezas do presente, se ampara na noção de risco. Na contemporaneidade, incertezas manufaturadas potencializaram as possibilidades de ruptura do tecido social. Desde o final da década de 1970, as incertezas nucleares e as expectativas de desastres ecológicos vieram marcar o caráter global dos riscos, quanto alteraram drasticamente as representações sociais e a consciência subjetiva de segurança dos problemas e perigos gerados.

 

As assertivas mais correntes em torno da noção de risco podem parecer, em um primeiro olhar, caminhos bastante azeitados para se observar a pandemia do COVID-19. Afinal de contas, o vírus ultrapassou fronteiras e hemisférios, alcançando números elevados de contaminados e provocando óbitos em diferentes classes e estratos sociais. A segurança das instituições modernas (Estado, industrialismo, mercado, ciência, etc), confrontada pelo SARS-CoV-2, fora profundamente impactada.

 

Mas a noção de risco e seu corolário mais geral – a saber, a modernização reflexiva – termina por deixar de lado a concretude das diferentes experiências que se multiplicam nos territórios atingidos. E, como bem podemos acompanhar nas notícias diárias de diferentes regiões do globo, estas experiências são atravessadas por ordens simbólicas específicas, que revelam gramáticas sobre o corpo e sobre suas ameaças que não são universais como desejaria o dispositivo técnico-epidemiológico. Ademais, assim como a moderna (des)ordem industrial se caracteriza pela produção e distribuição desigual de bens, a distribuição dos riscos também é marcada pelas diferenças políticas, econômicas e socioambientais.

 

Um exemplo sintomático a este respeito é a decisão sobre quais corpos devem se expor a situações de maior vulnerabilidade no atual contexto de pandemia. Nos EUA, os trabalhadores rurais foram alçados à categoria de “essenciais” pelo governo, de modo a poderem trabalhar durante a crise sanitária para a garantia da segurança alimentar dos norte-americanos. Note-se que as colheitas na agricultura norte-americana empregam anualmente cerca de dois milhões de trabalhadores e trabalhadoras rurais. Deste total, o próprio governo estima que mais da metade (isto é, mais de um milhão de trabalhadores) é formada por imigrantes ilegais. De acordo com o California Farm Bureau, no estado da Califórnia, entre os trabalhadores temporários, o percentual de imigrantes ilegais passaria dos 70%. Seriam, em sua grande maioria, trabalhadores mexicanos (The New York Times, The Coronavirus Outbreak, 02/04/2020).

 

Esta seleção dos corpos e dos territórios a serem lançados em situações de risco sugere que as instituições reflexivas (neste caso, Estado e mercado) operam fronteiras contingentes, com critérios móveis de inclusão/exclusão e utilidade. A mobilidade destes critérios termina por permitir que a distribuição dos riscos repercuta desigualdades sociais, econômicas e territoriais próprias do capitalismo industrial-informacional.

 

Uma alternativa importante para a compreensão não apenas destas situações de riscos, mas do próprio alargamento questão ambiental, se organiza em torno das noções de justiça e desigualdades ambientais. E estas noções se revelam particularmente sensíveis na identificação do alcance da pandemia da COVID-19 e, principalmente, no do desenho das populações mais vulneráveis.

 

No cenário das desigualdades ambientais, é conhecida a forte correlação entre indicadores de pobreza e a ocorrência de doenças associadas à poluição por ausência de água e esgotamento sanitário, ou por lançamento de rejeitos origem industrial. Esta desigualdade resulta, em grande parte, da vigência de mecanismos de privatização do uso dos recursos ambientais coletivos – tais como água, ar e solos – e da proteção seletiva do universo da política institucional. 

 

No Brasil, por exemplo, os conhecidos níveis de desigualdades socioambientais são centrais na interpretação dos números conhecidos da pandemia, bem como na construção dos seus prognósticos. Sabidamente, os bairros mais podres dos grandes centros urbanos brasileiros enfrentam condições de vulnerabilidade que passam pelos espaços habitacionais confinados, sem infraestrutura completa, nos quais frequentemente as condições sanitárias básicas se constituem em item raro. O acesso permanente à água potável, condição fundamental para as práticas de higiene corporal e limpezas necessárias no combate à disseminação do SARS-CoV-2, também se faz ausente. Neste cenário, não causa estranheza a tragédia instalada nas periferias de das regiões metropolitanas de Manaus, Belém, Fortaleza, Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo.

 

Em setembro de 2019, a Comissão de Serviços e Infraestrutura do Senado Federal realizou uma audiência pública sobre a universalização do saneamento básico no Brasil. Na ocasião, dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) davam conta de que 48% da população brasileira não possuía coleta de esgoto, 46% dos esgotos eram tratados e pelo menos 35 milhões de pessoas no país não tinham acesso à água tratada (Agência Senado, Da Redação, 25/09/20190).

 

Estes dados espantam. Mas, abstraídos de seus contextos, parecem referir-se somente à infraestrutura ou à política pública em sentido lato. Entretanto, sob o olhar sociológico e, especialmente, sob a perspectiva socioambiental, estes dados ganham sentido quando articulados com a experiência concreta dos grupos sociais atingidos pela violência das cifras. E nesta experiência, o corpo não se faz apenas de matéria orgânica. É também tecido por relações de classe, etnia, raça, gênero, geração. Estas relações – ou marcadores – dão forma à história social tornada corpo. Por isso, ameaçado ou contaminado, o corpo traz consigo a história das desigualdades ambientais resultantes destes marcadores. Desigualdades ambientais cujos impactos mais perversos estão concentrados entre negros e negras pobres que vivem nas franjas dos direitos formais, longe da assistência regular à saúde e com acessos precários à água, saneamento e outras formas de segurança ambiental.

 

Mas o corpo não é apenas posicionado socialmente. Ele também age, busca deslocamentos. É, portanto, enfrentamento. E traz a subjetividade que pode levantar-se contra os constrangimentos desta história incorporada. Este levante parece tomar forma, por exemplo, nas estratégias locais de enfrentamento da crise sanitária empreendidas pelas diferentes comunidades que convivem cotidianamente com os produtos da desigualdade ambiental – caso emblemático das estratégias de prevenção e cuidado adotadas pela comunidade Paraisópolis, na cidade de São Paulo (Folha de São Paulo, Equilíbrio e Saúde, 05/05/2020).

 

Ainda a propósito do enfrentamento, os rumos que os desafios ambientais contemporâneos vêm tomando apontam para a urgência de inovações políticas. Inovações políticas que garantam as possibilidades de transformações nas formas de acesso e intensidades de usos dos recursos ecossistêmicos. A crise econômica resultante (e em alguns casos, como no Brasil, pré-existente e apenas aprofundada) pelo contexto da pandemia da COVID-19, acirra as disputas em torno de projetos de poder e, em última instância, de projetos de sociedade. O discurso em torno da “retomada” do crescimento econômico, que versa sobre a simples manutenção da experiência de combustão do mundo, poderá levar as sociedades contemporâneas a uma nova encruzilhada em futuro bem próximo. Esta encruzilhada pode ser produto das elevadas temperaturas globais, das alterações nos níveis dos oceanos, da toxidade das águas, do ar e dos corpos, ou mesmo de uma nova ameaça viral global. De qualquer (má)sorte, o desprezo pelas alternativas ao regimente de acumulação intensivo na exploração do trabalho e dos recursos ecossistêmicos nos será caro. No caso, caro não apenas em valores monetários, mas sobretudo em perdas de espécies, de vidas e dos modos sociais diversos de se experimentar a variedade ambiental que ainda nos cerca.

 

Rodrigo Constante Martins é docente do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós Graduação em Sociologia (PPGS) e do Programa de Pós Graduação em Ciências Ambientais (PPGCAm) da UFSCar


Sociologia na Pandemia #6

 

Trabalhadores rurais. Uma categoria esquecida, embora essencial em tempos de pandemia

Por Maria Aparecida de Moraes Silva

 

Uma leitura atenta das notícias veiculadas pelos diversos meios de comunicação aponta para a ausência de referências sobre os trabalhadores rurais. Num país, considerado o maior produtor de commodities do mundo isto pode causar certa estranheza, num primeiro momento. Na verdade, os trabalhadores rurais são ofuscados, negados pela sociedade mais ampla. Meu intento é contribuir para que esta névoa que os encobre seja retirada para que as pessoas possam enxerga-los como essenciais neste momento da epidemia que nos assola.

Acompanhando as pesquisas produzidas no México (Flores, 2010) com trabalhadores rurais que migram para os EUA para a colheita de vários produtos, sobretudo, frutas e hortaliças, percebo que há muitas similitudes em relação aos migrantes do nordeste e do Vale do Jequitinhonha (MG) que labutam nos canaviais, cafezais, laranjais das terras paulistas. Nos EUA, os migrantes mexicanos, hondurenhos, guatemaltecos são, em muitos casos, considerados ilegais, portanto, tratados como criminosos. No entanto, se há uma maior demanda deles para as áreas de produção agrícola, as porteiras se abrem e os guardas fazem vistas grossas às suas travessias. O importante é não prendê-los, mas vigiá-los e garantir que, finda a colheita, eles sigam a rota do caminho de casa. Tudo ocorre no contexto de um faz-de-conta. Nos tempos do coronavírus, quando as pessoas estão com medo de saírem de seus confinamentos, têm aumentado a procura por estes trabalhadores “ilegais”. O importante é que eles estejam munidos da declaração de alguma empresa assegurando-lhes o trabalho. Tal como antes, o jogo do faz-de-conta e da hipocrisia se repete. 

Nas cidades paulistas rodeadas pelas plantações acima mencionadas, o controle policial também ocorre, com outras nuances. Assim que as safras terminam são também vigiados e obrigados a retornar. Em ambas as situações, trata-se de pessoas discriminadas e negadas. Pessoas que, segundo um processo histórico perverso, foram arrancadas de seus lugares de origem e obrigadas a viver eternamente perambulando de um lugar a outro em busca de trabalho para a garantia da própria sobrevivência e de suas respectivas famílias. Os trabalhadores mexicanos, representados por várias etnias indígenas, além do processo de expropriação realizado por grandes empresas, sofrem as perseguições de grupos paramilitares e do narcotráfico. Em ambos os casos, guardadas as diferenças, são encobertos pelo nevoeiro que os transforma em meras silhuetas vagantes de um lugar a outro.

Ademais das razões estruturais que sustentam a base da concentração da propriedade da terra e da produção, é necessário considerar que, no caso brasileiro, são negros e pardos, em sua maioria, além de indígenas, que colhem maçãs no Rio grande do Sul (Motta, 2019). Não se trata de considerá-los excluídos, bem ao contrário. São incluídos, porém invisibilizados e negados. É uma forma de reduzir o valor de suas forças de trabalho, de negar-lhes os direitos básicos, de submetê-los às condições degradantes de trabalho, de arrancar-lhes a dignidade humana. Nos canaviais paulistas, entre 2003 a 2007, registramos 21 mortes por exaustão. Nos laranjais, ademais do excessivo esforço, são obrigados a conviver com os inseticidas utilizados para o combate das pragas.

 A fim de retirar a névoa que recai sobre os homens e mulheres que labutam na terra, tomarei como exemplos, as mulheres empregadas na colheita da cebola, as que trabalham nas granjas de ovos e nas plantações de laranja. Uma visão naturalizada consideraria tais tarefas como leves, porque desempenhada por mulheres [1]. Bem ao contrário, é o que minhas pesquisas no estado de São Paulo revelam ao acompanhar estas trabalhadoras em vários campos.

No caso da colheita das cebolas, primeiramente, os tratores dirigidos por homens as removem da terra. Em seguida, as mulheres iniciam a segunda fase deste processo que combina o uso de máquinas (conduzidas por homens) e o trabalho manual, executado pelas mulheres. No início da jornada, trabalham agachadas. A tarefa consiste, em, de posse de um estilete, ir retirando os talos maiores da cebola e depositando-as em montes, que, em seguida, serão recolhidos também pelos tratores. Com o passar das horas, além do cansaço, do calor provocado pelas altas temperaturas, elas ficam na posição sentadas sobre a terra. As dores da coluna aumentam, além das mãos, punhos e dedos. Há também muitas queixas relacionadas aos problemas na bexiga e vagina, provavelmente, provocados pela “quentura” da terra, segundo suas palavras. O salário é pago por produção, o que contribui para exigir maior esforço e “ir até onde o corpo aguentar”.

No que se refere á produção de ovos, a situação laboral é a seguinte, tomando o caso de uma granja que produz galinhas poedeiras. Em geral, as granjas comportam milhares de aves. Estão situadas longe dos centros urbanos, em razão dos odores causados pelos excrementos, penas, sangue, restos de ração, inseticidas, medicamentos, vacinas, antibióticos, hormônios, que vão se acumulando durante o período necessário para a produção, segundo avaliação criteriosa dos técnicos e agrônomos. Tais resíduos vão se misturando à serragem do chão da granja.

Sigamos uma destas trabalhadoras, Lourdes (nome fictício).  Logo pela manhã, após vestir-se adequadamente para entrar na granja com roupas esterilizadas para evitar a transmissão de doenças às aves, e receber as instruções dos técnicos sobre as tarefas do dia, ela adentra a granja. No início são os milhares de pintainhos (de apenas três dias de vida) que ali estão. É um momento em que o emprego das mulheres é mais justificado pelas qualidades naturalizadas, tais como, afeição, cuidado. Segundo Lourdes, os pintainhos não estão com as mães, por isso, é necessário trata-los com muito carinho, dar-lhes proteção, regular bem a temperatura para aquecê-los. São frágeis. Ela mesma afirma que os homens são brutos e chegam até mesmo a chutá-los, porque eles se enervam com os piados constantes. É o momento do exercício da maternagem. Ela passa a considera-los como seus filhos. À medida que vão crescendo, ela se encarrega de vaciná-los, cortar seus bicos para que eles não se firam uns aos outros. Após alguns meses, há a seleção das fêmeas que serão poedeiras. Segundo o relato de Lourdes, este é um período difícil porque as galinhas ficam no escuro durante cinco meses, não podendo ganhar muito peso, portanto, comem pouco, o que aumenta o estresse. Muitas chegam até a comer umas às outras. Há ainda outra informação. No período menstrual, as mulheres não podem adentrar a granja. Segundo Lourdes, as galinhas sentem o cheiro do sangue e, nestes casos, elas voam em conjunto sobre elas, podendo, até mesmo, feri-las.

Na granja onde Lourdes trabalha são oito mil aves. Assim que adentra a granja, as galinhas se desesperam e vêm em sua direção em busca da comida. Apenas um facho de luz muito fraca no fundo da granja lhe serve como guia. Esta tarefa se repete diariamente. Após os cinco meses no escuro, as galinhas estão prontas para botar ovos, incessantemente, até que, já esgotadas, são encaminhadas ao abate. Quanto a Lourdes, ela, em seguida à saída do “lote”, ao lado dos demais trabalhadores, é destinada à limpeza da granja. Todo o material orgânico e inorgânico acumulado é removido e vendido como fertilizantes (cama de frango) [2]. Em seguida, outro “lote” de pintainhos chega à granja e o processo se reinicia. Segundo Lourdes, o pior é o mau cheiro, que fica impregnado no corpo, causando muitas dores de cabeça, vômitos e inapetência. Ainda: o sofrimento das galinhas. Elas “choram”. Para ela, é impossível ficar alheia a isso. Por esta razão, jamais consome ovos ou carnes de aves produzidos em granjas.

A descrição das duas tarefas laborais revela a violência embutida tanto em relação às trabalhadoras, quanto em relação às aves. O estado de São Paulo é um dos maiores produtores de ovos do País. A invisibilidade prevalecente em relação aos/às trabalhadores/as rurais é causada por inúmeros fatores. O mais importante deles se reporta à ideologia do chamado agronegócio, setor responsável por 25% do PIB do país. Trata-se de um setor modernizado, com emprego de tecnologias avançadas, resultantes de um significativo avanço científico, com taxas de produtividade cada vez mais crescentes. Esta é a face visível, a que os meios de comunicação exibem em seus diferentes programas de marketing. No entanto, a outra face, a do trabalho, é ofuscada. 

Quanto à colheita da laranja, a situação é a seguinte. A jornada de trabalho inicia-se por volta das quatro horas da madrugada, quando preparam o café e também a comida para o almoço na roça, ou eito, como ainda é chamado. Eito é uma palavra da época da escravidão, mas ainda vige, do mesmo modo que feitor. Às seis horas, tomam o ônibus, os RURAIS. Chegando ao eito, as tarefas são distribuídas pelos empreiteiros, ou “turmeiros”, que são os donos dos ônibus e responsáveis por organizar as “turmas” de trabalhadores/as.

Em geral, o trabalho começa por volta das sete horas, com pausa de uma hora, às 11 horas para o almoço. Colher laranja não é uma atividade leve, como se pode pensar. Ao contrário, é um trabalho pesado, além de perigoso. Vejamos no que consiste. A altura da laranjeira pode chegar até oito metros. Portanto, a colheita precisa ser feita com o auxílio de uma escada de três metros de altura, com 15 degraus, chegando a pesar 35 kg. É de ferro, para fixar-se melhor no meio das ramas e também para dar maior estabilidade ao/a colhedor/a. A colheita é feita a partir dos galhos superiores aos inferiores. As frutas nos galhos mais baixos, chamados de saias, exige que a posição seja ajoelhada ou abaixada. À medida que as laranjas vão sendo colhidas, elas são depositadas nos “bags”, sacolas de plástico, com alças que são colocadas em torno do pescoço. É preciso lembrar que há exigência do uso dos EPIs (botas/caneleiras, sapatos especiais, boné-árabe, óculos, luvas, camisas de mangas longas e calças). Quando a capacidade do “bag” se completa, o/a colhedor/a deposita as laranjas em caixas, cujo peso é de 27 kg. O preço pago por cada caixa é R$1,00. Há a imposição de uma quantidade mínima colhida por dia, em torno de 70 caixas, ou seja, no mínimo 1890 kg. Se esta meta (média) não for atingida, o/a trabalhador é dispensado/a. Esta forma de pagamento, por produção, é imposta pelos patrões com a finalidade de auferir maiores ganhos e causar ao empregado a imagem de que quanto maior esforço, maior será seu ganho.

É uma atividade que exige muita habilidade manual, por isso a maior preferência pelas mulheres. Vale dizer ainda que a colheita se faz com as duas mãos simultaneamente, impondo a rotação dos punhos no ato de arranque da fruta, a fim de não causar danos aos galhos. Portanto, há necessidade de se equilibrar no alto da escada, com o peso da sacola ao pescoço. Ademais, há que se movimentar ao redor da planta, deslocando a escada na medida em que as frutas vão sendo colhidas, e recolher no chão ou nas ramas inferiores, na posição agachada ou ajoelhada, como foi dito acima.

O trabalho na colheita da laranja traz muitos males à saúde dos/as trabalhadores/as. Dores nos punhos, em razão dos movimentos repetitivos, desgaste na coluna, causado pelo peso da sacola, acidentes causados por possíveis quedas da escada. O contrato de trabalho é temporário. Com a reforma trabalhista, alguns direitos foram perdidos, dentre eles, o pagamento das horas in itineri, isto é, o tempo gasto até o local de trabalho, nos casos em que não há contrato ou registro em carteira. Outras perdas se reportam ao tempo de contribuição previdenciária. Em se tratando de uma atividade temporária, muitos/as não conseguem a aposentadoria, tendo em vista que a partir dos 50 anos de idade, a capacidade laboral fica extremamente restringida pelo desgaste físico ocorrido durante o tempo de trabalho.

A descrição das três tarefas laborais revela a violência embutida tanto em relação às trabalhadoras, quanto em relação às aves. O estado de São Paulo é um dos maiores produtores de ovos do País. A invisibilidade prevalecente em relação aos/às trabalhadores/as rurais é causada por inúmeros fatores. O mais importante deles se reporta à ideologia do chamado agronegócio, setor responsável por 25% do PIB do país. Trata-se de um setor modernizado, com emprego de tecnologias avançadas, resultantes de um significativo avanço científico, com taxas de produtividade cada vez mais crescentes. Esta é a face visível, a que os meios de comunicação exibem em seus diferentes programas de marketing [3]. 

 No entanto, a outra face, a do trabalho, aquela que produz a gigantesca riqueza, é ofuscada, negada. 

Girando esta moeda, é possível perceber as duas faces que, embora, diferentes, fazem parte do mesmo processo. Esconder, negar quem trabalha no campo é uma maneira de justificar ideologia do agro brasileiro, considerado um dos mais exitosos do mundo. 

Nestes tempos de coranavírus, há um apelo, justificável, para o isolamento social. Os trabalhadores rurais, do mesmo modo que tantos outros urbanos, não podem cumprir esta norma. Eles são essenciais à produção dos alimentos que chegam às nossas mesas. No entanto, além de não serem considerados essenciais, são negados. Resta-nos refletir sobre estas razões. As três descrições acima nos alertam para várias questões: as injustiças sociais, não direitos, não cidadania e também à negação do humano. Do mesmo modo que os “lotes” de aves são descartados, remanejados, abatidos, as pessoas, que labutam na terra são substituídas por outras e ou descartadas quando suas forças físicas “não aguentam mais”. Pior ainda. A sociedade da qual fazem parte, sequer os vê, sequer sabe que existem. Em tempos de coronavírus, alguém se pergunta de que mãos advêm a cebola, a laranja ou os ovos que consomem?

Se os mínimos direitos lhe são negados, como imaginar se estão protegidos por máscaras, luvas e mantendo o distanciamento social?  Deixo ao/à leitor/a faculdade de resposta a esta questão.  

 

Maria Aparecida de Moraes Silva é professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar

 

*Algumas ideias deste texto foram publicadas no Boletim da ANPOCS: 

 http://www.anpocs.com/index.php/ciencias-sociais/destaques/2358-boletim-n-43-cientistas-sociais-e-o-coronavirus

 

Notas

[1] Embora haja homens na colheita da laranja, as mulheres são preferidas.

[2] Os resíduos da produção das aves, em razão de sua composição, são utilizados como fertilizantes. No entanto, alguns pecuaristas chegaram a emprega-los como ração para o gado, em razão dos preços baixos. Esta prática, sem dúvida, põe em risco a segurança alimentar da população que consome leite e seus derivados, além da carne. Tal prática, associada à chamada doença da vaca louca, é proibida.

[3] Segundo notícias recentes, a China, maior compradora das commodities brasileiras, planeja aumentar as importações de soja, carnes e ovos, tendo em vista a dizimação de seus rebanhos, causada pela gripe suína, e também como forma de se precaver em casos de recrudescimento da pandemia do novo coronavírus em seu território.  Mais ainda. O gigantismo da produção de commodities tem ocorrido graças à incorporação de terras, particularmente, da Amazônia, por meio da violência contra camponeses e populações indígenas. Assim, além do crime ambiental, por meio de queimadas e a devastação da floresta amazônica, há o genocídio dos povos indígenas, cada vez mais encurralados por grileiros e mineradores. A este respeito, consultar: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/05/desmatamento-da-amazonia-uma-tragedia-anunciada.shtml

 

Referências

FLORES, Sara María Lara (Coord.). Migraciones de trabajo y movilidad territorial. México: Miguel, Angel Porrua, 2010. 

MOTTA, Grasiela da Silva. A cadeia produtiva da maçã: trabalho e empresas no Rio grande do Sul. Tese de doutorado. PPG/ Sociologia e Antropologia, UFRJ, 2019.


Sociologia na Pandemia #5

 

Quatro lições da pandemia sobre a mobilidade no mundo contemporâneo

 

Por Svetlana Ruseishvili

 

A proliferação acelerada do SARS-coV-2 (“o novo coronavírus”) tem sido uma das maiores preocupações da saúde pública globalmente. 

O vírus viaja. 

Assim como mercadorias, ideias, informações, capitais e seres humanos no mundo contemporâneo, o vírus parece ter embarcado na complexa teia de mobilidade que despreza limites municipais, fronteiras nacionais e barreiras geográficas. É justamente a mobilidade do vírus que se tornou um dos maiores desafios a ser enfrentado. 

Mas o vírus não viaja de forma autônoma, ele embarca nos indivíduos que, por sua vez, são cada vez mais rápidos e eficientes em seu movimento. 

Não por acaso que as primeiras medidas adotadas pelos países ao redor do mundo foram as restrições de mobilidade humana. Fronteiras fechadas, pessoas imobilizadas em suas casas, controle rígido da mobilidade urbana. Paradoxalmente, o direito a livre movimento, um dos pilares do liberalismo, parece ter se tornado o maior aliado do vírus mortal que põe em xeque a estrutura demográfica, econômica e social da vida coletiva contemporânea. 

A dimensão e o alcance global da restrição de mobilidade humana internacional são inéditos na história moderna. De acordo com os dados levantados pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) da ONU, no início de maio, 219 países, territórios e áreas impuseram algum tipo de restrição de entrada nos pontos fronteiriços, que compreende a restrição de entrada para os passageiros vindos das áreas de risco, medidas sanitárias compulsórias (quarentena, exames médicos) ou interrupção de concessão dos vistos de entrada [1].  

O objetivo desse texto é refletir sobre algumas características essenciais da mobilidade humana no mundo globalizado composto por Estados-nação que a pandemia trouxe à tona. Antes discutidos nos textos científicos, hoje esses aspectos são vividos por cada um de nós no dia a dia marcado pelo isolamento, distanciamento social e a (auto)vigilância. São as lições da pandemia sobre a maneira com qual a mobilidade e a fixidez são geradas e gerenciadas na tensão entre a agência dos indivíduos e os dispositivos de segurança dos Estados-nação. 

A mobilidade é uma noção fundamental para pensar a sociedade liberal capitalista contemporânea. No plano das ideias, laissez-faire e laissez-passer resumem a centralidade das liberdades individuais como valores supremos. No plano econômico, a (i)mobilidade de trabalho, a circulação de mercadorias e do capital são processos constitutivos da valorização do valor e, consequentemente, da reprodução do capitalismo, – conceitos marxianos, tão bem desenvolvidos nos últimos trabalhos de David Harvey [2]. 

No entanto, nem tudo e nem todos se movem de forma igual no mundo contemporâneo. Embora a mobilidade migratória esteja ativamente construída por alguns regimes políticos populistas como um problema social a ser resolvido, o número de migrantes internacionais, refugiados e solicitantes de refúgio é consideravelmente menor que o número de viajantes de curta duração. De acordo com as estimativas de agências internacionais, nos últimos anos foram registradas 1.4 bilhões de entradas de viajantes internacionais de curta duração [3], enquanto 244 milhões eram migrantes, ou seja, viviam fora de seu país de origem [4]. É evidente que a diferença entre os viajantes e os migrantes ou solicitantes de asilo diz respeito não apenas a categorias nas quais são enquadrados pelos agentes de controle fronteiriço, mas sobretudo ao tempo, à velocidade, à rota e ao conforto de seu deslocamento. 

 

Lição n. 1. A mobilidade é distribuída de forma desigual

Embora alguns governos tentem promover uma assimilação entre a figura do migrante e a disseminação do vírus, os fatos têm desmentido esse argumento. Uma investigação do The Intercept [5] mostrou que em ao menos 93 países o paciente zero tinha vindo ou tinha passado por algum país da Europa. A maioria deles viajou de avião e por um período curto: negócios, turismo e visitas de curta duração. Em alguns países da África, a classe política foi afetada pelo vírus de forma precoce em comparação com a sociedade como um todo, o que suscita a relação desse fato com a sua maior mobilidade. Parece claro que o principal agente disseminador do vírus internacionalmente é alguém que viaja sem grandes obstáculos e em grande velocidade. Nesse mesmo sentido, a Organização Mundial de Saúde afirma que os viajantes causais ou frequentes (turistas, políticos, executivos, etc) são mais propensos a transmitir doenças infecciosas do que migrantes e deslocados forçados, cujo deslocamento é muitas vezes mais lento e que tendem a permanecer nos locais de instalação por períodos de tempo maiores [6]. 

 Lição n. 2. A mobilidade deve ser pensada em relação à imobilidade

Nos países com grande índice de desigualdade social, como o Brasil, a segunda lição da pandemia se revela com mais clareza. Enquanto alguns segmentos da sociedade adotaram medidas de auto-isolamento, transferindo as atividades cotidianas para dentro de suas casas, outros tantos continuam trabalhando fora de casa. Sob a ótica da mobilidade, enquanto uns se sujeitam à imobilidade, outros não tem outras escolhas a não ser se manter em mobilidade para sobreviver. A pandemia nos ensina que o impacto da mobilidade na vida das pessoas só pode ser pensado em relação ao seu binómio, a imobilidade, a fixidez. 

A historiadora marxista Silvia Federici já mostrou como o advento do capitalismo condenou certos grupos sociais tanto à mobilidade compulsória (trabalhadores precários expulsos dos campos pelo cercamento, por exemplo), quanto à imobilidade compulsória (mulheres cuidando dos filhos e dos idosos) [7]. Hoje, a pandemia revela que as sociedades mais desiguais continuam reproduzindo o mesmo padrão da mobilização e imobilização forçada, incluindo nesse processo novos segmentos de população fortemente marcados pelo gênero, raça, classe, etnia e nacionalidade. 

Assim como a mobilidade só faz sentido quando é pensada dialeticamente em relação ao seu oposto: a fixidez, a díade mobilidade-imobilidade não pode ser compreendida fora da dinâmica social do capitalismo globalizado que a produz e molda em diferentes escalas, local, regional e global. 

 

Lição n. 3. O fechamento de fronteiras não impede as pessoas a migrarem, mas aumenta os riscos relacionados à migração

O fechamento de fronteiras e outras medidas de contenção do vírus, sobretudo, o isolamento, suspenderam o curso estabelecido de políticas de acolhimento dos migrantes. Na França, por exemplo, todos os procedimentos de solicitação de refúgio e entrevistas para a concessão da autorização de residência foram suspensos. De um lado, isso gerou alguns efeitos positivos, dentre eles a suspensão das detenções dos migrantes irregulares (já que a expulsão dos estrangeiros também foi interrompida) e a prorrogação automática da validade da autorização de residência por três meses. Por outro lado, grande número de migrantes foi condenado a existir num limbo jurídico, sem acesso à regularização migratória e por isso ainda mais exposto aos riscos relacionados com a COVID-19 [8].

Nos Estados Unidos, o governo de Donald Trump suspendeu por 60 dias a emissão dos “green cards” e restringiu por, ao menos 120 dias, a entrada de imigrantes no país. O premiê da Hungria, Viktor Orbán, suspendeu, por tempo indeterminado, o acesso de refugiados a áreas de fronteira. 

No Brasil, o governo de Bolsonaro resolveu fechar a fronteira com a Venezuela assim que a Organização Mundial de Saúde decretou a pandemia [9], embora o número de infectados por coronavírus no Brasil tenha sido muito maior que na Venezuela. Além de ser motivada por considerações ideológicas, a medida pôs em xeque as políticas de proteção dos deslocados forçados, ao determinar que o descumprimento da portaria implicaria na “deportação imediata e a inabilitação de pedido de refúgio”, contrariando inclusive os princípios da Lei de migração n. 13.445/2017. A norma não protegeu o país do vírus e ainda forçou os migrantes venezuelanos a se aventurar em travessias arriscadas. A restrição de mobilidade internacional por via aérea só foi adotada posteriormente [10], muito depois que o vírus tenha sido importado da Europa pelos viajantes. 

Assim, os efeitos da restrição da mobilidade internacional impactaram diversos grupos de pessoas em movimento de maneiras diferentes. Aqueles que tem acesso às viagens rápidas, seguras e confortáveis optam por adiar os seus deslocamentos ou a adotar meios de transporte individuais. Ao mesmo tempo, o recrudescimento do controle fronteiriço põe os indivíduos que fazem travessias perigosas em um risco ainda maior, já que, como sabemos das últimas décadas da história da migração na Europa e nos Estado Unidos, as barreiras físicas não impedem os indivíduos a migrarem, mas aumentam os riscos ligados à travessia. Os primeiros, obrigados à imobilidade, ficam seguros em suas casas. Os segundos ficam expostos ao vírus nos campos de refugiados, centros de retenção e acampamentos improvisados numa perigosa iminência de uma catástrofe humanitária. 

Enquanto suspendeu a circulação internacional regulada e ordenada, o fechamento de fronteiras trouxe à tona a maneira assimétrica com a qual o acesso à mobilidade segura, rápida e confortável é distribuído entre diversos grupos sociais, nacionais e étnicos.

 

Lição n. 4. Combater a ilegalização de migrantes beneficia a sociedade como um todo

Diferentemente dos países liderados pela extrema-direita, o governo de Portugal concedeu a todos os migrantes, refugiados e solicitantes de asilo a regularização coletiva, garantindo assim o seu pleno acesso ao sistema de saúde pública [11]. Essa decisão foi justificada pela evidência lógica de que conceder aos migrantes irregulares o acesso à saúde protege a sociedade como um todo.

Em Nova York, um dos bairros mais afetados pelo vírus é o Queens, que também abriga grande parcela da população migrante da cidade. Em parte, os altos índices de contaminação se devem ao fato de que os migrantes são empregados em setores de economia informal ou que exigem pouca qualificação e, portanto, não podem optar pelo trabalho remoto. Em parte, isso se deve à falta de seguro médico e do acesso à saúde, assim como ao medo de serem detidos e deportados, já que muitos desses migrantes são indocumentados e criminalizados pelo governo de Trump. Como sabemos, a ilegalização dos migrantes é produzida pelo Estado e tem se tornado um mecanismo eficaz para produzir a mão de obra barata, precarizada e disciplinada pelo medo. 

No entanto, a pandemia revela que a ilegalização dos estrangeiros pode por em risco toda a sociedade e elevar o número de casos graves e óbitos. Sem acesso ao tratamento médico e ausentes nas estatísticas oficiais, os migrantes criminalizados pela ausência de documentos constituem um dos grupos mais vulneráveis e mais expostos à contaminação. Além disso, a falta de regularização migratória pode se tornar um fator que os impede a acessar as medidas de auxílio emergenciais, colocando em extremo risco econômico e sanitário, como tem acontecido no Brasil nas últimas semanas [12]. 

Ainda é cedo para fazer previsões sobre o futuro da mobilidade humana após a pandemia. Alguns autores apontam para as consequências nefastas da normalização das medidas restritivas emergenciais para a liberdade do movimento, outros acreditam que a COVID-19 pode convencer as sociedades que apenas as medidas coletivas, solidárias e universais são capazes de proteger a população dos perigos de epidemia, pobreza e violência. 

O vírus trouxe à tona a maneira com a qual a desigualdade sistêmica produz padrões de mobilidade e imobilidade que podem proteger uns e ameaçar outros. Essas lições devem servir para produzir novos argumentos e novas agendas nas lutas sociais. Estamos diante de um dilema ético, afirma Gurminder Bhambra: como podemos continuar a ignorar as populações migrantes que, como vem sendo escancarado pela pandemia, são tão fundamentais para a nossa sobrevivência [13]?

Muitos puderam sentir na pele como é viver a sua mobilidade costumeira ser sujeita a todo tipo de controle, restrição e vigilância. “Todos somos refugiados agora”, sugere Steve Ali, um refugiado sírio que vive hoje em Londres [14]. O momento pode ser propício a desenvolver a empatia por aqueles que buscam por meio da mobilidade a proteção e o futuro. 

Para os migrantes, a pandemia veio a exibir, novamente, o lugar reservado para eles na sociedade de classes. Como aponta David Harvey, a classe trabalhadora europeia e estadunidense é fortemente marcada pela raça, gênero e nacionalidade e possui clara origem migratória [15]. A falta de escolha que os migrantes enfrentam entre se contaminar em nome de cuidar dos outros e conservar a renda ou ficar desempregados sem qualquer benefício é uma dura lição da pandemia para eles, para os governos e para todos nós. 

 

Svetlana Ruseishvili é Docente no Departamento de Sociologia da UFSCar

 

Referências bibliográficas

[1] International Organization for Migration. Global Mobility Restriction Overview. 4 May, 2020. Disponível em: https://migration.iom.int/. Acesso em 7 de maio de 2020.

[2] Ver Harvey, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo, Boitempo Editorial, 2011. ___. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo, Boitempo Editorial, 2016. ____. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo, Boitempo Editorial, 2018. 

[3] United Nations World Tourism Organization. International Tourism Highlights. 2019 edition. Disponível em: https://www.e-unwto.org/doi/pdf/10.18111/9789284421152. Acesso em: 7 de maio de 2020. 

[4] International Organization for Migration. World Migration Report, 2018. 

[5] Penney Joe. “Coronavírus começou na China, mas a Europa foi polo do contágio global”. The Intercept, 4 de abril de 2020. Disponível em : https://theintercept.com/2020/04/04/coronavirus-europa-china/?fbclid=IwAR32xyVHJX_WDgcMBBRI2jdSloVSFX05k0t1_v9mxWMtsZfsyyeFcJSy Yms. Acesso em: 30 de abril de 2020. 

[6] Mantovani, Flávia. « Pandemia pode levar a restrições de migrações pelo mundo”. Folha de São Paulo, 27 de abril de 2020. Disponível em : https:/www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2020/04/27/. Acesso em: 30 de abril de 2020. 

[7] Federici, Silvia. Calibã e a bruxa. São Paulo, Editora Elefante, 2018.

[8] Agier, Michel et al., « Personnes migrantes en centres de rétention et campements. Désencamper pour protéger », in : Annabel Desgrées du Loû (dir.), Dossier « Les migrants dans l’épidémie : un temps d’épreuves cumulées », De facto [En ligne], 18 | Avril 2020, mis en ligne le 10 avril 2020. Disponível em: http://icmigrations.fr/2020/04/07/defacto-018-01/. Acesso em: 7 de maio de 2020. 

[9] Brasil. Presidência da República. Portaria n. 120, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros provenientes da República Bolivariana da Venezuela, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa.

[10] Brasil. Presidência da República. Portaria Interministerial n. 203, de 28 de abril de 2020. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, por via aérea, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa.

[11] Alberti, Mia; Cotovio, Vasco. Portugal coronovirus: Migrants and asylum-seekers given full citizenship rights during coronavirus outbreak. CNN World, March 31, 2020. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/03/30/europe/portugal-migrants-citizenship-rights-coronavirus-intl/index.html. Acesso em: 30 de abril de 2020. 

[12] Martinez-Vargas, Ivan; Mantovani, Flávia. “Caixa barra pagamento de auxílio emergencial a imigrantes”, Folha de São Paulo, 7 de maio de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/caixa-barra-pagamento-de-auxilio-emergencial-a-imigrantes.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa. Acesso em: 7 de maio de 2020. 

[13] Gurminder K. Bhambra. “Rethinking Brexit in the light of Covid-19”, Discover Society, April 22, 2020. Disponível em: https://discoversociety.org/2020/04/22/rethinking-brexit-in-the-light-of-covid-19/?fbclid=IwAR0PNiG63BToC57UEcHZg2iw9fNVkygU6wkYDuqIhUGCg9Sb. Acesso em: 7 de maio de 2020. 

[14] Ali, Steve. “We are all refugees now”, GQ, 11 April, 2020. Disponível em: https://www.gq-magazine.co.uk/politics/article/coronavirus-refugees-isolation?fbclid=IwAR2VF4S68Rtkimzi3A5Fi3eXbaNtHi1uJsTGzXQJGiZthzOeuh8NauE. Acesso em: 7 de maio de 2020. 

[15] David Harvey: Política anticapitalista em tempos de coronavírus – Blog da Boitempo. Publicado em 24 de abril de 2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/24/david-harvey-politica-anticapitalista-em-tempos-de-coronavirus/. Acesso em: 7 de maio de 2020.


Sociologia na Pandemia #4

Estamos todos vivos? Saúde, política e precariedade na pandemia de Covid-19

Por Everton de Oliveira

 

Nesta semana, o Brasil ultrapassou a marca de mais de 114 mil infectados e 7.900 mortos por conta da pandemia de Covid-19. As campanhas de prevenção e de promoção ao isolamento social defendem, de forma ampla, uma defesa à vida, contra o retorno apressado às atividades rotineiras do período pré-pandemia. Trata-se sobremaneira de uma questão de defesa da vida, de lutar contra mais mortes desnecessárias. Mas isso está longe de ser um lugar comum. Para entendermos a fundo a questão da defesa da vida, temos que encará-la politicamente, colocando-nos as seguintes perguntas: de que vida estamos falando? Que mortes estamos lamentando? E o que buscamos defender? Responder essas questões trará a projeção política que o problema da administração de mortes e vidas humanas implica para o poder público. Da mesma forma, observar qual dessas realidades é mais habilmente administrada pelo governo (a vida ou a morte) trará o entendimento de qual será nosso suporte, e se o teremos, para a reconstrução de nosso cotidiano.

Um dos aspectos que se destaca atualmente para a construção desse entendimento é o quadro generalizado de subnotificações em saúde. Termo recentemente popularizado pela imensa subnotificação dos casos de agravos e mortes por conta da Covid-19 (Gaete, 2020), a subnotificação implica o referenciamento impreciso de doenças e problemas de saúde, sejam eles mais ou menos debilitantes, fatais ou não. Isso implica, basicamente (mas não apenas), um cruzamento de duas fontes distintas de dados: a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID 10), pela qual médicos e profissionais de saúde se orientam para formular seus diagnósticos; e os dados de cartórios de registro civil do país, que embasam seus dados pelos atestados de óbito, feitos pelos profissionais de saúde. A primeira fonte pode ser encontrada no Serviço de Informática do Ministério da Saúde (DATASUS). Quanto à segunda, é de fácil acesso pelo portal da transparência do governo federal.

Quando esses dados são comparados, eles tendem a apresentar o tipo de entendimento que cada governo tem em relação à promoção e ao suporte à vida. Constitucionalmente, no Brasil, isso está assegurado no Capítulo II, do Título VIII da Constituição Federal, que versa sobre a obrigação do Estado em garantir a seguridade social a seus cidadãos. Isso deveria garantir, a toda pessoa brasileira, o direito à saúde, à previdência social e à assistência social. O Sistema Único de Saúde, o SUS, nasceu dessa defesa, preconizando a universalidade, a integralidade e a equidade do atendimento médico, algo inédito no Brasil até 1990! Mas há uma relação fundamental na administração de uma política pública da amplitude do SUS, que perpassa todos os governos do mundo, que é a garantia de dados confiáveis para o direcionamento e o ajuste da política de atendimento à saúde. E aqui está nosso problema. Não porque os sistemas de armazenamento e divulgação de dados não sejam eficientes e funcionais. Mas porque a coleta é sempre multissituada, isto é, dependente de uma série de fatores locais, culturais, institucionais e técnicos particulares a cada região, o que relega ao Ministério da Saúde a tarefa de revisar, ou não, a qualidade dessas notificações. Sua equipe técnica facilmente mapearia a lacuna, comparando as bases de dados, como as acima citadas, além de outras específicas. Quando esse mapeamento não é feito, podemos observar, então, a direção que um governo toma diante da escolha entre vidas e mortes.

Chegamos a um ponto, no atual cenário da pandemia, em que se torna impossível responder à questão título deste texto: estamos todos vivos? Não é possível dizer. O painel de acompanhamento da pandemia do Projeto Covid-19 Brasil, liderado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), estimava, no dia de escrita deste texto (05 de maio), que o total da população infectada no Brasil era três vezes o número oficial anunciado (estando infectadas, portanto, mais de 310 mil pessoas). E, levando-se em conta apenas os dados oficiais, estimava que o número de mortes poderia ultrapassar a casa dos 13 mil por volta do dia 10 de maio (levando-se em conta a notificação dos casos). Considerando apenas o estado com maior número de casos, São Paulo, o número de casos de óbitos por insuficiência respiratória já chega a quase 1.000 a mais que o mesmo período do ano passado, segundo os dados do Portal da Transparência. Segundo o Datasus, em fevereiro de 2020 (último mês processado), havia ocorrido 1.707 óbitos por complicações do aparelho respiratório, o maior número desde 2014. E o número de pessoas mortas em casa dobrou em menos de um mês (Bergamo, 2020). Não é possível dizer com exatidão, nesse contexto, quantas pessoas exatamente já morreram, quantas foram infectadas, e quantas irão ainda falecer, simplesmente por não saber se está, ou não, infectada. É assim que cada um de nós nos tornamos desimportantes no contexto da pandemia. Mas mesmo a desimportância é seletiva. 

Um dos filósofos paradigmáticos do século XX, Michel Foucault, tem uma conhecida análise a respeito do que ele chamou de biopolítica. Ele dizia que um governo, para ter o controle real de sua população, precisava preconizar, entre outras coisas, uma precisa identificação e contagem das pessoas que compunham a população, daí a importância da estatística para a gestão estatal. Esse era o primeiro passo para uma administração fina da população, assim como para a manutenção de suas taxas sociais: a manutenção da taxa de habitantes vivos, de produção e circulação de riquezas, da taxa de recolhimento de impostos, das taxas de mortalidade e fecundidade, entre outras. Havia extremos conhecidos da biopolítica, como o racismo, a xenofobia, a homofobia, a misoginia, que resultava em governos totalitários, como o Estado nazista. O totalitarismo europeu buscava “salvar” sua população de um “inimigo” tido como externo, como judeus, islâmicos, hindus, homossexuais, ciganos. A estes restavam o extermínio, a face reversa da biopolítica.

Contudo, no Brasil, os inimigos da nação foram historicamente forjados em sua própria população. Negros, nordestinos, pobres, mulheres, indígenas, quilombolas, sertanejos, trabalhadores rurais (caipiras, meeiros, parceiros, colonos, boias-frias, sem-terra), entre outros. Se aqui existe algo próximo a uma biopolítica, é a despeito de toda uma grande camada populacional que geralmente não importa, para o Estado, se permanece viva, se terá condições para tanto, ou se virá a morrer em um futuro próximo. Outro filósofo paradigmático da atualidade, Achille Mbembe, identificou essa governamentalidade do contexto pós-colonial como necropolítica. A necropolítica não é uma oposição de termos com a biopolítica. Antes, é a particularidade da gestão da vida e da morte nos Estados economicamente e politicamente marginais, como o Brasil. Em sua face mais extrema, é a gestão da vida de uma parcela mínima da população a despeito do extermínio de sua grande maioria. Não é de hoje que a relação das periferias urbanas do Brasil com o Estado é pautada pela guerra cotidiana, assim como a relação de comunidades tradicionais com as forças armadas paramilitares na fronteira agrícola do Centro-Oeste e Norte do país. Mas em sua face mais dissimulada, a necropolítica deixa morrer, de diversas formas: isentando-se de fomentar políticas sociais para as camadas da população em situação de vulnerabilidade; retirando direitos trabalhistas que garantiriam o mínimo da sobrevivência em tempos de crise; endurecendo as normas de garantia da previdência social; não contabilizando os mortos da pandemia, que hoje estão majoritariamente nas periferias urbanas, como é o caso de Brasilândia, Sapopemba e Cidade Tiradentes, na cidade de São Paulo (Martins e Pessoa, 2020). 

Essas são as vidas precárias do Brasil. Uma vida, dizia a filósofa Judith Butler, não é o mesmo que um organismo vivo. Uma vida, para ser reconhecida enquanto tal, tem que ser politicamente enquadrada nessa condição. Uma vida salva no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, é uma vida. Um corpo deixado à morte e à negligência estatal em Manaus, é um organismo (ainda) vivo. As subnotificações embasam o enquadramento político no qual o Estado procura construir seu contexto da pandemia. Um quadro em que corpos morrendo aos milhares em questão de dias é a condição de vida de um programa de governo que clama pela vida e pela volta ao trabalho, às custas de organismos descartáveis. Mais do que isso, um quadro no qual corpos não são mais contados, pois a população já não é mais a questão. Já não interessa saber se estamos vivos, se iremos morrer, ou se seremos a causa da morte daqueles com quem partilhamos nosso cotidiano.

Desde 2018 um de meus interesses de pesquisa é o que se convencionou chamar de epidemia de suicídios no sul do Brasil. Esse enquadramento da questão busca suplantar o quadro histórico de subnotificações em casos de suicídio no Brasil. Pode parecer estranho no atual contexto, mas não faz mais que 10 anos que o suicídio passou a ser encarado internacionalmente enquanto um problema de saúde pública. O documento publicado pela OMS em 2017, Depression and Other Common Mental Disorders: global health estimates, atestou a mudança no enquadramento, declarando a depressão como a principal doença incapacitante na atualidade, tendo no suicídio seu desfecho fatal. Iniciativas locais passaram a se realizar em diversas regiões do Brasil, especialmente articuladas à campanha do “Setembro Amarelo”, de prevenção ao suicídio. Antes disso, porém, as pessoas morriam nas zonas rurais do sul do Brasil, e suas vidas jamais foram choradas para além daqueles que partilhavam seu cotidiano. Na verdade, geralmente se ressaltava a “fraqueza” e “egoísmo” das vítimas (Machin, 2009), retirando qualquer possibilidade de reconhecimento daquelas mortes enquanto vidas a serem lamentadas.

Quando um Estado abre mão de saber se estamos todos vivos e transforma em questão política o número de mortes da pandemia, damos adeus à seguridade social e um olá ao massacre dos corpos precários. Mas, como no caso dos suicídios, é possível construirmos, para nós, outro contexto. Iniciativas como os painéis de acompanhamento da pandemia, os boletins, como esse próprio, a cobertura jornalística, e as imagens de cemitérios improvisados e corpos acumulados podem permitir, ainda que tragicamente, que as vidas fragmentadas da pandemia se tornem vidas dignas de luto. Trata-se de desconstruir o contexto no qual a letalidade é pretensamente baixa, no qual a pandemia não é assim tão letal. Trata-se de reivindicar nosso direito de saber se estamos e se permaneceremos vivos, se aqueles que queremos bem não correm riscos ao partilhar conosco o cotidiano, de poder chamar de vidas as mortes que ainda sequer foram contadas. É preciso construir um contexto no qual perguntar se estamos todos vivos tenha uma resposta menos problemática. 

 

Everton de Oliveira é Docente no Departamento de Sociologia da UFSCar

 

Referências:

 

BERGAMO, Mônica. Número de Pessoas que morrem em casa dobra em SP na pandemia de Covid-19. Disponível em:

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2020/05/numero-de-pessoas-que-morrem-em-casa-dobra-em-sp-na-pandemia-de-covid-19.shtml.

MARTINS, Carolina e PESSOA, Gabriela Sá. Bairros com favelas e cortiços concentram mais mortes por Covid-19 em SP. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/05/areas-com-favelas-e-corticos-registram-mais-mortes-por-e-covid-19-em-sp.htm.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

GAETE, Rodrigo. Análise: subnotificação. Projeto Covid-19 Brasil (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo). Disponível em: https://ciis.fmrp.usp.br/covid19/analise-subnotificacao/.

MACHIN, Rosana. Nem doente, nem vítima: o atendimento às “lesões autoprovocadas” nas emergências. Ciência & Saúde Coletiva, v. 14, p. 1741-1750, 2009.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, v. 2, n. 32, p. 123-151, Dez. 2016.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Depression and Other Common Mental Disorders: global health estimates. Genebra: Organização Mundial da Saúde, 2017.

 


Sociologia na Pandemia #3

Boletim pandemia e mundo social: notas sociológicas sobre racismo, diáspora e dinâmicas sociais restritivas

Por Priscila Martins Medeiros e Valter Roberto Silvério


Conceitos sociológicos para se pensar o hoje

Há pelos menos quatro meses nos encontramos numa nova rotina: a tentativa diária de acompanharmos a profusão de informações jornalísticas, políticas, econômicas e acadêmicas – de várias áreas do conhecimento – quanto ao novo Coronavírus (COVID-19), surgido inicialmente na cidade chinesa de Wuhan e que rapidamente ganhou proporções de pandemia. O reaparecimento de doenças altamente contagiosas disseminou, também, muitos conceitos sociológicos tais como “desigualdades sociais”, “isolamento social” e “controle social” que, pela rapidez com que eles são mobilizados nas narrativas cotidianas, acabam sendo esvaziados de seus conteúdos e referências de formulação inicial.

Isolamento social, por exemplo, é um termo sociológico associado a grupos considerados “inassimiláveis” em certa perspectiva da sociologia americana, que na segunda década do século XX produziu diversos estudos sobre controle social, considerados como um conjunto de técnicas e de recursos simbólicos, institucionais ou materiais criados em sociedade com o intuito de assegurarem comportamentos coletivos previsíveis, de acordo com regras morais e éticas vigentes em cada época. A partir desses pressupostos em torno da ideia de controle social, a sociologia americana desenvolveu os primeiros estudos sobre “criminalidade”, “delinquência juvenil”, bem como de “assimilação cultural e desvio social” relacionados especialmente às pessoas imigrantes e pertencentes a minorias étnicas.

Realizando um deslocamento da ideia macrossociológica de controle – por vezes pensada como ordem social regulada pelo Estado e outras grandes instituições sociais – os pioneiros da Escola de Chicago, como Herbert Mead (1863-1931) e Robert E. Park (1864-1944) realizaram análises microssociológicas sobre o que seriam os fundamentos da coesão dentro do próprio tecido social. O acento conservador dessa perspectiva, herdeira dos conceitos sociológicos de Émile Durkheim (1858-1917), colocava foco sobre a harmonia social e suas permanências, ao invés das possibilidades transformadoras, da agência dos sujeitos e de mudança social. Mantendo aspectos da psicologia social, os pensadores da Escola de Chicago elaboraram estudos que transitavam pelo funcionalismo e pelo interacionismo, e que se mantiveram dominantes nas décadas seguintes. Já no Pós-Segunda Guerra Mundial, há uma recuperação das questões macrossociológicas nos estudos sobre mecanismos de controle social e de manutenção da ordem social. Com base no estudo das práticas de dominação do Estado, de “classes dominantes”, e de instituições como penitenciárias, sanatórios, asilos, hospitais, escolas, há uma diversificação de tradições sociológicas, com base em premissas do marxismo, do pós-estruturalismo, entre outros (ALVAREZ, 2004: 169-170).

Desde o final dos anos 1960, no entanto, a ênfase em marcadores sociais que transcendem os limites da “classe social” – como gênero, sexualidade, raça, etnia, migração – vem ganhando destaque a partir de outras vertentes do pensamento que consideram, por exemplo, a colonização como elemento chave para se pensar o discurso modernizante e moralizante. Pesquisadores dos chamados Estudos Culturais e Pós-coloniais, por exemplo, se dedicaram aos debates sobre dominação, marginalidade, alteridade e, de outro lado, sobre insubordinação e resistência, elaborando reflexões sobre a produção de significados no cotidiano, tanto no campo das experiências dos sujeitos quanto das gramáticas simbólicas mais amplas (SMITH e RILEY, 2009).

 

Crises sanitárias no Brasil: entre a vulnerabilidade e a resistência

No momento em que escrevemos este texto, o Brasil já se apresenta entre os dez países do mundo com maior número de mortos pelo novo coronavírus. Como sabemos, esta não é a primeira grande crise sanitária enfrentada pelo país e – em tempos de aprofundamento das desigualdades resultantes do nosso modelo de sociedade – provavelmente precisaremos aprender a conviver com a ameaça constante de novas doenças. 

Logo nos primeiros anos do século XX, e em especial em 1904, o aprofundamento dos casos de varíola o Brasil – coincidindo com as campanhas de combate à febre amarela e à peste bubônica já em andamento – levaram o então diretor geral de saúde pública, Oswaldo Cruz, a endurecer o conjunto de profilaxias existentes e a propor ao Congresso a reinstauração da obrigatoriedade da vacinação, que já havia acontecido em décadas anteriores. 

No Rio de Janeiro, a vacina obrigatória foi mais um elemento dentro de um caldeirão histórico de aparatos repressivos, que atingiram em cheio a população mais pobre, majoritariamente negra. O mais conhecido cortiço carioca, o Cabeça de Porco – ambiente principal do romance O Cortiço (1890) de Aluísio de Azevedo e que chegou a abrigar 4.000 pessoas – foi derrubado em 1893 e as pessoas expulsas, simbolizando assim o início da era higienista de administração da cidade. O episódio representou, para Chalhoub (1996), o mito original das intervenções violentas das autoridades públicas sobre o cotidiano. O projeto de ordenação e de reforma urbana da cidade do Rio de Janeiro se articulava com interesses econômicos de setores empresariais da época (CHALHOUB, 1996: 19). Havia a ideia de um Brasil, ainda a ser construído a partir da capital, que acomodaria as camadas já privilegiadas da população, remanejando os “excedentes humanos”.

A ação do governo não se fez somente contra os seus alojamentos: suas roupas, seus pertences, sua família, suas relações vicinais, seu cotidiano, seus hábitos, seus animais, sua forma de subsistência e de sobrevivência, sua cultura. Tudo, enfim, é atingido pela nova disciplina espacial, física, social, ética e cultural imposta pelo gesto reformador. Gesto oficial, autoritário e inelutável, que se fazia, como já vimos, ao abrigo de leis de exceção que bloqueavam quaisquer direitos ou garantias das pessoas atingidas. Gesto brutal, disciplinador e discriminador, que separava claramente o espaço do privilégio e as fronteiras da exclusão e da opressão (SEVCENKO, 2013: 82).


O projeto que ficou conhecido como “Bota-abaixo”, fortalecido na gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906) e sob a presidência de Rodrigues Alves, significou a junção dos discursos econômico e cientificista, legitimando a truculência autoritária. Assim, empregando adjetivos relacionados à noção de impureza, as autoridades ladearam indivíduos à falta de higiene e à desumanização, estabelecendo uma relação de poder na qual o “sujo” não contém os predicados da razão (FILHO, 2017). Em O Alienista, Machado de Assis já nos advertia sobre os perigos do cientificismo associado ao autoritarismo. No folhetim publicado em 1881, ao tentar encontrar o exato limiar entre normalidade e insanidade, o protagonista Bacamarte já apresentava um paralelo sofisticado com o Brasil lembrando-nos o “arrancar à força como dentes podres”, aqueles que a República entendia como indesejáveis. Disse mais tarde Lima Barreto, em Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909): “[…] projetavam-se avenidas;
abriram-se nas plantas squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também uma população catita, limpinha, elegante e branca” (BARRETO, 2010: 224).

Foi então nesse somatório de imposições e disciplinamento da cidade que eclodiu, em 09 de novembro de 1904, a Revolta da Vacina. Heterogênea, a revolta era composta por pelo menos dois focos: de um lado, o motim popular contra o despotismo estatal e, por outro, uma insurreição militar com expectativas golpistas para derrubar o governo Alves. A revolta logrou acabar com a obrigatoriedade da vacina, que foi revogada em 16 de novembro daquele ano, uma semana após o início de conflitos violentos com as forças do governo (PAULA, 2016: 135).

A historiografia contemporânea tem destacado que a Revolta da Vacina é um exemplo de movimento popular exitoso da história brasileira, baseado na defesa do direito dos cidadãos de não serem arbitrariamente tratados pelos governos (CARVALHO, 2010: 138-39). Nesse sentido, e a despeito de toda a violência sofrida durante os dias de revolta, a reação popular“[…] não foi contra a vacina, mas contra a história” (SEVCENKO, 2013: 120). Com isso, queremos dizer que, no mínimo, esse episódio nos convida a relativizar o uso generalizante da noção de vulnerabilidade, tão apregoada inclusive por nós sociólogos. Em termos da ação política, o significado histórico da Revolta da Vacina pode estimular profundos reflexos no interior da Sociologia enquanto disciplina acadêmica, tanto no que toca aos debates sobre agência e formas de resistência inteligente (GUSMÃO e VON SIMSON, 1989) quanto nas reflexões sobre o exercício dos direitos constitucionais (no caso, da Constituição de 1891) e no próprio fortalecimento de nossa experiência democrática. Falaremos um pouco mais disso ao final desta breve reflexão.

Cabe destacar também, na história das grandes crises sanitárias sofridas no Brasil, o caso
da Gripe Espanhola, que matou cerca de 35 mil pessoas no país. Só na cidade do Rio de Janeiro, estimasse que metade da população tenha contraído a doença e que 12 mil pessoas tenham morrido. Diversas teses e dissertações nas áreas de saúde pública e de história dão conta de relatar como os descendentes de africanos, ou a população não-branca, de modo geral, no Brasil eram apontados como causadores de “doenças negras” (DALL’AVA, 2015) e, portanto, do agravamento das condições sanitárias do país (GOUVEIA, 2017), entendidos nos termos da época como sinônimos de desordem e de perigo (SILVA, 2017). De acordo com Lima e Hochman (1996), a gripe espanhola ofereceu à população brasileira razões suficientes para desconfiar da eficiência da estrutura federal na área da saúde. E, de fato, a devastação causada pela epidemia
exigiu, em 1920, a nacionalização das políticas de saúde e saneamento no Brasil (LIMA e HOCHMAN, 1996: p. 35-36). Ainda faltam pesquisas sociológicas sobre a gripe espanhola e a atuação da população perante a crise. Mas o fato dela ter sido amplamente relacionada às questões etnicorraciais, num contexto em que a população negra pressionava pela mudança das narrativas da escravidão, nos coloca a urgência de refletirmos as epidemias e as pandemias através de categorias sociológicas mais amplas: categorias que deem conta de contrabalancear as versões economicistas da história ou que fatalmente recaiam na concepção apressada de passividade e submissão da população nos momentos de crise.


COVID-19: questões sociológicas para o hoje

Na atual pandemia da COVID-19, há a preocupação renovada com as populações mais pobres e com maiores dificuldades de isolamento social e de manutenção das condições mínimas de vida. No Brasil de hoje, 13, 6 milhões de pessoas vivem em favelas e, desses, 67% são negros. O estudo intitulado O Brasil com baixa imunidade: Balanço do Orçamento Geral da União 2019, divulgado em abril deste ano pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), mostra que, desde 2014 até o ano passado, houve um corte de 28,9% das despesas discricionárias dos programas sociais no país. Essa precarização das condições de vida acentua ainda mais as desigualdades raciais e de gênero no país, conforme artigo publicado pela Folha de São Paulo em 27 de abril.

Não há dúvidas de que a exposição permanente dos dados da vitimização desproporcional (mortes efetivas) de negros, populações nativas e latinos (no caso norteamericano) tem sido uma importante estratégia de denúncia das desigualdades sociais. No entanto, a participação de negros, latinos e nativos entre os representantes da ordem, mesmo que estatisticamente de forma insignificante, levanta a questão colocada por Stuart Hall (2017) para percepção das consequências devastadoras das relações de poder que constroem hierarquias: o problema da relação entre o que os olhos podem ver e o que a mente pode perceber. Ou seja, a maior visibilidade da representação política de negros, latinos, nativos e mulheres em cargos de governança – perceptível no Brasil, nos Estados Unidos e muitos outros países – provoca uma contradição entre essa exposição midiática e o regime discursivo que historicamente subalternizou as minorias. Essa discrepância entre o que vemos hoje e o que sempre se acreditou ser a esfera política, nos permite construir a seguinte pergunta de pesquisa para a sociologia e a área da etnicidade: Como minorias que participam da “ordem” têm atenuado, ou alterado, o regime de representação da desigualdade social associada à cor/”raça”/gênero neste novo contexto global-transnacional-diaspórico?

É, também, com Stuart Hall (2017) que aprendemos como é difícil trabalhar a questão
de como os passados coloniais violentos habitam o presente histórico e reverberam nas estruturas sócio-políticas-econômicas de sociedades, como a brasileira. O peso do passado colonial é sentido nas produções da Sociologia e das Ciências Sociais como um todo que, por exemplo, não conseguem narrar as dinâmicas sociais à partir das ações criativas dos sujeitos como forma de resistência ao racismo e de reelaboração de suas vidas num contexto racializado. Ou seja, as ações mobilizadoras em seu próprio proveito; as formas de luta; as transformações psicossociais, discursivas e ideológicas; as redes sociais e dinâmicas institucionais mobilizadas por esses próprios agentes (HAMILTON, 1988; GUSMÃO e VON SIMSON, 1989).

As muitas experiências de núcleos negros na história do Brasil – irmandades religiosas, confrarias, clubes e associações negras, imprensa negra – baseados na solidariedade, reciprocidade e no comunitarismo, nos dão um vasto conjunto de exemplos sobre as formas de insubordinação e de resistência criadora e criativa. Esses grupos foram capazes de manter, contra todas as tendências violentas do racismo brasileiro, sistemas de relacionamento e de ajuda mútua, que lhes permitiu a própria manutenção e o crescimento. Portanto, muito longe das narrativas sobre uma suposta passividade ou sobre posições simplesmente reatoras ao racismo, esses grupos “[…] inventaram seus próprios mecanismos de sobrevivência, suas ferramentas ideológicas e redes de reações sociais, seus próprios veículos de luta através do tempo e do espaço. Esse é o processo cultural, uma expressão criativa, dinâmica da totalidade das relações que caracterizam sua realidade física e cultural” (HAMILTON, 1988: 22), no contexto da diáspora.

 

Pensando a agenda sociológica pós-pandemia

Hoje, em meio ao surto global de COVID-19, vivemos uma situação passível de originar o que a historiadora alemã Eva Schlotheuber chama de pandemia da mente. Ou seja, à medida que vivemos num contexto de expressiva desinformação – potencializada pelo desencontro de informações pelas mídias digitais – as linhas que separam o que é fato e o que é ficção são rotineiramente emaranhadas. Existem dois tipos de respostas polares, a partir das quais se podem vislumbrar os caminhos de uma sociedade pós-pandemia. Uma primeira, tradicional, que aciona as velhas respostas como forma de rememorar que as sociedades humanas se constroem e se reconstroem encobrindo seus velhos problemas. A outra, que se concentra na modelagem como uma tecnologia para legitimar versões particulares do futuro como base das políticas e investimentos atuais. Com toda a sua aparente precisão, os modelos são essencialmente uma maneira de incluir uma série de questões e incertezas em uma narrativa autorizada, que estabiliza temporariamente o futuro.

O reaparecimento de doenças altamente infecciosas como a COVID-19, em um mundo globalizado, ou seja, no qual as relações sociais pressupõem atores supranacionais, nacionais e também locais, nos coloca de frente com uma série de muitas outras questões sociológicas (DINGWALL et all, 2013), das quais destacamos: 1) A repercussão e o impacto das disciplinas e/ou modalidades científicas na projeção de contextos de riscos e incertezas; 2) O comportamento da mídia na produção de ciclos de “questões”, frente a dinâmica competitiva de audiência, a serem respondidas pelos representantes da ordem – cientistas, médicos, economistas, políticos profissionais, formuladores de políticas públicas. O modo como as respostas são fornecidas pode ampliar ou reduzir as ansiedades ante a constante possibilidade de instalação do pânico e da necessidade de identificação na forma de rótulo de um “Folk Devil”; 3) O surgimento de “novos” temas para a Sociologia, tais como a interação entre saúde pública, imigração e segurança nacional; a realização de interesses econômicos versus a dinâmica da governança em saúde; a divisão de gênero do trabalho doméstico e do cuidar; e os indicadores quantitativos que, normalmente, demonstram como as minorias são desproporcionalmente vitimadas.

Não é preciso dizer que cada um desses temas acima citados, quando associados a doenças infecciosas e/ou pandemias (HIV, SARS 2002-2003; H1N1 2009, COVID-19), constituem um novo conjunto de desafios para os sociólogos e teóricos sociais em geral e, ao mesmo tempo, questionam o pensamento restrito (disciplinas específicas e/ou temas específicos no interior de uma área disciplinar) e escancaram a necessidade e as possibilidades de atualização da agenda de pesquisa que atenda ao interesse público.


Sociologia na Pandemia #2

Da emergência à busca pelo direito e à solidariedade imediata

Por André Ricardo de Souza

Em face da profunda crise do coronavírus algo apareceu com força no debate público enquanto medida a ser adotada: a política pública emergencial de transferência de renda às pessoas necessitadas.  Em 2003, o então senador do Partido dos Trabalhadores (PT) Eduardo Suplicy conseguiu aprovar no Congresso Nacional seu projeto da universal renda básica da cidadania, algo, porém, não posto em prática pelo Poder Executivo. Em seu lugar, o Governo Lula implementou o Programa Bolsa Família (PBF), que também se tornou lei no ano seguinte.

O tema resurgiu este ano como uma solução necessariamente imediata para dezenas de milhões de pessoas sem salário ou renda fixa, de modo a lhes permitir ficar em casa na condição de quarentena. Uma ampla mobilização reunindo 160 organizações da sociedade civil, lideradas pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC) e contemplando mais de um milhão de assinaturas e milhares de e-mails de pressão, contribuiu bastante para o bom andamento da proposta no Congresso Nacional. Parlamentares de esquerda, sobretudo do Partido Socialismo e Liberdade e do PT se uniram convencendo os de outras legendas, de modo a conseguirem, entre a última semana de março e a primeira de abril, a aprovação de um auxílio desse tipo. Na Câmara dos Deputados, ficou estabelecido o pagamento, por três meses, de uma renda mensal de 600 reais a trabalhadores informais e de 1200 reais para mães responsáveis pelo sustento da família, algo que pode ser prorrogado por mais três meses, devendo o auxílio ser concedido aos que tiverem renda mensal per capita de até meio salário mínimo – SM (1045 reais) ou renda familiar de até três SMs (3.135 reais). Vale lembrar que a proposta inicial do Governo Bolsonaro era de apenas 200 reais por chefe de família. No Senado Federal, foi ampliado o alcance do benefício a diferentes categorias profissionais vulneráveis, devendo ser pago com cota dupla, no valor de 1.200 reais, a famílias monoparentais, independentemente do sexo. 

A aprovação da renda emergencial superior ao PBF suscita o debate quanto aos recursos necessários para tal, algo relacionado à suspensão do pagamento da dívida pública enquanto durar a profunda crise econômica. Num segundo momento, o desafio será passar da renda emergencial para a universal e perene renda básica da cidadania, algo que possibilite a toda pessoa ter resguardada sua sobrevivência e de sua família enquanto um direito assegurado pelo Estado. Tal direito já é defendido, inclusive por economistas liberais em diversos países. A viabilidade disso passa pela criação de um fundo específico a ser alimentado também com recursos provenientes da taxação condizente de grandes lucros e fortunas. A universal renda básica da cidadania não constitui uma panaceia, mas sim uma forma efetiva de eliminação da pobreza extrema, com a grande vantagem de não sujeitar indivíduos ao trabalho aviltante, algo que contribui efetivamente para que os salários como um todo não sejam puxados para baixo.

A mobilização da sociedade civil em prol da aprovação da renda emergencial contou com a relevante participação de uma rede de indivíduos e entidades denominada Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC). Esta surgiu a partir do chamado inter-religioso do papa Francisco para jovens de até 35 anos, de diversos países,  para um encontro a  ocorrer em Assis (Itália), com ativistas e intelectuais em prol de outro paradigma socioeconômico para o mundo: o encontro da Economia de Francisco.  O  nome da ABEFC foi adotado por todo o valor moral também de Clara de Assis e pela compreensão de que feminino e masculino devem caminhar necessariamente lado a lado, sem primazia. Em sua carta de princípios é destacada a busca da passagem do egoísmo à generosidade; a humana dimensão da espiritualidade; a opção preferencial pelos pobres; a real democratização do acesso a dinheiro público; a individual renda básica da cidadania e a elevada taxação de grandes lucros e fortunas. 

A ABEFC está fazendo uma campanha estimulando diversas comunidades religiosas a se unirem e  também se articularem com sindicados e outras entidades em prol do auxílio imediato aos mais atingidos pela crise, afinal: ‘quem tem forme, tem pressa’. Afirma que tal apoio pode se dar tanto em auxílio direto e também divulgação de iniciativas solidárias grandes – destacando o portal da internet www.todomundo.org, liderado pela Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo – quanto em termos de efetivação e estímulo a práticas comunitárias locais. Dentre estas são ressaltados: a) a ajuda entre vizinhos; b) a realização de compras no lugar de idosos; c) a manutenção, com o maior salário possível, de todos empregados afastados, inclusive as domésticas; d) a prioridade às compras no pequeno comércio local; e) a abertura de prédios religiosos para as pessoas receberem doações e higienização; f) a suspensão, se possível, ou então a oferta de descontos em aluguéis de residências por três meses; g) a doação de: alimentos, remédios, produtos de proteção, higiene e limpeza, roupas e cobertores lavados. Procura-se, com isso, ariticular a reivindicação de direitos cidadãos com a ajuda humanitária.

 

André Ricardo de Souza é docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar. 


Sociologia na Pandemia #1

 

Combate ao Covid-19 e a falácia da política economicista

Por Jacob Carlos Lima, Felipe Rangel e Aline Suelen Pires

A pandemia do Covid-19 atinge o Brasil num contexto de grave crise econômica e política. Desde o golpe parlamentar de 2016, temos observado o desmonte de políticas e direitos sociais que marcaram a chamada Nova República, cujos princípios foram condensados na constituição de 1988, a “constituição cidadã”, reconhecida exatamente por privilegiar os direitos sociais. O atual governo tem aprofundado esse desmonte, elegendo o trabalho precário como modelo de capitalismo eficiente, favorecendo assim os interesses das elites econômicas em detrimento das condições de vida digna da população.

Já vínhamos experimentando os efeitos da perversidade dos princípios neoliberais que orientaram as recentes mudanças na legislação trabalhista, resumidas, nas palavras do presidente Bolsonaro, na necessidade de “escolha” entre emprego ou direitos. Escolha tão cruel quanto fictícia. Primeiro porque subverte a concepção de “emprego” como associada ao acesso a direitos, em oposição ao trabalho precário e desprotegido. Além disso, para quem precisa trabalhar para sobreviver, resta pouca margem de escolha. Assim, os discursos de empresários reconhecidos no Brasil, viralizados nas redes sociais nos últimos dias, expõem que, no limite, o “dilema” neoliberal representa a escolha entre economia ou vidas humanas, e não parece haver qualquer pudor em se fazer a opção pela primeira. 

Nesse contexto de vulnerabilização da população, a pandemia pode atingir a todos, mas certamente de modo desigual. A gravidade da pandemia tem um recorte de classe preciso. Seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), ou seja, permanecer em casa durante o surto da doença, tem se mostrado um privilégio. Com a ausência de proteções sociais, para muitos, não trabalhar significa não conseguir alimentar suas famílias. Situação agravada pelo fechamento necessários das escolas, que ofereciam as principais refeições para crianças e jovens de famílias pobres no Brasil. Para as classes médias e altas, o isolamento social tem uma expressão radicalmente distinta das favelas, onde há famílias que dividem um único cômodo e o saneamento básico e acesso à água limpa é precário, o que dificulta qualquer assepsia.

Grande contingente de entregadores de aplicativos, faxineiras, ambulantes, autônomos e trabalhadores informais em geral precisam continuar se expondo ao risco de contaminação e morte para, paradoxalmente, conseguir sobreviver. Ao fazerem isso, garantem certa comodidade e abastecem aqueles que podem permanecer em quarentena. Essa dinâmica escancara a fragilidade das relações de trabalho no país, caracterizadas pela naturalização da instabilidade e responsabilização de cada trabalhador por garantir suas próprias condições de vida. É a partir dessa rotinização do trabalho inseguro que, por exemplo, a larga informalidade, historicamente existente no país, passou a ser tratada como sinônimo de empreendedorismo. Tal como extensamente pesquisado e discutido pela sociologia do trabalho, a pandemia expõe a debilidade desses “empreendedores”, quando não têm nenhuma outra garantia que não sua própria disposição ao trabalho.

Os discursos do presidente da república e de grandes empresários advogando pelo fim do isolamento na pandemia, visto seus impactos na economia, buscam legitimar a tolerância ao sacrifício de milhares de vidas ressaltando que, para os trabalhadores, a ameaça é o desemprego e a pauperização, caso os empregadores sejam prejudicados. Quando a sobrevivência da população é vinculada apenas ao bom desempenho dos empresários, o fatalismo é inevitável. As pesquisas em ciências humanas e sociais demonstram que o capitalismo sempre se mostrou disposto a sacrificar vidas em benefício da lucratividade. Por isso, historicamente, mostrou-se necessária a criação de proteções sociais que regulassem as relações de compra e venda de trabalho. O mediador por excelência foi (e, tudo indica, precisa continuar sendo) o Estado, atuando para conter arbitrariedades na relação sempre hierárquica entre empregadores e trabalhadores, de modo a garantir condições dignas de vida para as parcelas mais vulneráveis da população 

Diferentemente, na lógica dessa (necro)política econômica, que informa os discursos desses empresários, não figura qualquer possibilidade efetiva de garantia social para a população que não a renda resultante da venda de sua força de trabalho. Produz-se assim o cenário em que as vozes que defendem, sem qualquer base científica, o chamado “isolamento vertical” são tanto os empresários que se isolam em suas casas de campo, iates e carreatas em carros de luxo, quanto os “empreendedores” informais, que, se não trabalharem, não comem.

Mesmo para aqueles que podem permanecer em suas casas, assistimos à outra dimensão da intensificação do trabalho. Sem qualquer preparo ou suporte, muitos têm sido obrigados a encontrar meios para trabalhar em home office. A modalidade de trabalho à distância pode funcionar em determinadas situações, para certas atividades, e com determinadas regras e apoios. Mas as pesquisas sobre trabalho digital e em home office evidenciam a intensificação do trabalho, com  jornadas ilimitadas, pausas e intervalos suprimidos, acúmulo de funções e tarefas e a tendência de patrões e clientes considerarem que os profissionais estão permanentemente disponíveis. Além disso, há impactos sobre a relação familiar, tendo em vista a necessidade de conciliação da vida doméstica com as novas circunstâncias do trabalho. Como em quase todas as esferas da vida social, também neste caso, as mulheres têm sido particularmente impactadas, ao serem responsabilizadas pelos cuidado da casa e da família – pais e avós idosos e filhos.

Professores, por exemplo, são obrigados a fazer videoaulas, exercendo, além de todas as tarefas didáticas habituais, a  preparação de conteúdos próprios para os vídeos, a função de filmar, editar e permanecer online todo o tempo para tirar dúvidas. O setor da educação privada e “governadores-gestores” aproveitam a situação de caos para testar, de maneira forçada, o ensino à distância, com o propósito de reduzir os custos das escolas, cada vez mais vistas como negócios lucrativos, sem qualquer preocupação com a qualidade do ensino. Ou seja, uma saída supostamente emergencial, que, ao final da pandemia, pode resultar em um saldo de maior precarização da educação e do trabalho. 

Os trabalhadores que ainda se encontram em situação de maior proteção e formalidade também têm sido bombardeados, nas últimas semanas, com ameaças e informações desconexas relativas à suspensão de contratos e redução de salários, por parte de um governo que administra com base no trending topics do Twitter e pela difusão de fake news. No momento de maior fragilidade e insegurança, os trabalhadores veem sua sobrevivência ameaçada. Para aqueles que estão sob a CLT, a Medida Provisória intitulada “Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”, aproveitando-se do desmonte propiciado pela Reforma Trabalhista, autoriza a redução de salários e jornadas por até três meses, mas um aprofundamento e ampliação dessas medidas não está descartado. O funcionalismo público, que já vinha sendo atacado,  segue sob ameaças de cortes, justamente no momento em que é mais demandado em sua atuação junto a sociedade. O mesmo ocorre com a Ciência, também duramente questionada e atacada nos últimos meses, que continua sofrendo perdas em um cenário em que seu papel nunca se mostrou tão fundamental.

Contudo, enquanto empresários e o executivo federal buscam aproveitar a crise para a implementação de políticas ainda mais draconianas, temos também assistido ao fortalecimento de propostas que buscam criar outras formas de garantia de vida digna, via redistribuição de renda e ampliação da seguridade social. Propostas de renda básica de cidadania, taxação de grandes fortunas e discursos de fortalecimento dos serviços públicos são exemplos disso.

Afinal, a crise também é um momento de disputa. Enquanto muitos esperam com apreensão a volta à normalidade, outros nos lembram que essa normalidade era ela mesma injusta e penosa para a maior parte da população. E, sendo assim, a crise aparece como uma possibilidade de transformação social. Mais do que lidar com as questões emergenciais com vistas a recuperar o contexto anterior, trata-se de identificar a possibilidade de construir um futuro alternativo, mais solidário do que a normalidade pré-pandêmica. 

A recuperação do papel estratégico do Estado parece ter encontrado um ambiente propício para voltar à agenda, visto a incapacidade do setor privado de responder ao contexto de vulnerabilidade social, dado seu darwinismo inerente. As políticas sociais, o SUS e a ciência desenvolvida nas universidades públicas, vistos anteriormente como custos desnecessários, passam a ser valorizados como únicas saídas para este momento. 

A disputa então é pela orientação da ação estatal. Por um lado, Estado e neoliberalismo não são incompatíveis. Pelo contrário, o Estado é um ator fundamental para a implementação das políticas neoliberais, evidenciando os interesses que representa: repasses bilionários aos bancos, por exemplo, não param de ser anunciados desde o início da epidemia no Brasil. Mas esse mesmo Estado também pode ser mobilizado para a garantia de proteção social e acesso a serviços públicos fundamentais, e a crise tem mostrado isso. 

Está evidente que sem Estado o capitalismo não funciona, ou só o faz com altíssimo custo em termos de vidas humanas. O mundo tem reconhecido isto. O presidente francês, por exemplo, no auge da crise em seu país, destacou as qualidades do Estado de bem-estar social, reconhecendo o equívoco da aposta no mercado como indexador máximo da política e das relações sociais. Em posição diametralmente oposta, no Brasil de Bolsonaro e asseclas, continua a resistência em consentir que um Estado social é saída para a crise, como se fosse possível tratar uma pandemia apenas como um problema fiscal.

É certo que algumas medidas para atenuar a tragédia têm sido tomadas, embora com atraso. São várias pragas a serem combatidas ao mesmo tempo – fanatismos religiosos frente à Ciência, populismos e autoritarismos irresponsáveis, política econômica letal. E é isso o que está em jogo no contexto atual, em um novo flanco de disputa aberto pela crise. Trata-se de um momento propício para defender um novo padrão de proteção social e o protagonismo do bem-estar da maioria da população, reivindicando sua primazia sobre a garantia dos rendimentos de grandes empresários.

 

Jacob Carlos Lima é docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

Felipe Rangel é pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

Aline Suelen Pires é docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

 

Iniciativa relacionada

O Podcast Quarentena publicou, no dia 18 de abril de 2020, um episódio com a participação dos professores Jacob Carlos Lima, Aline Suelen Pires e do pós-doutorando Felipe Rangel. Os pesquisadores discutiram alguns dos temas apresentados no texto publicado pelo Boletim Coletividades – Sociologia na Pandemia.
Para ouvir, acesse o link: http://www.labi.ufscar.br/2020/04/18/quarentena-dia-34/