Sociologia na Pandemia #5

 

Quatro lições da pandemia sobre a mobilidade no mundo contemporâneo

 

Por Svetlana Ruseishvili

 

A proliferação acelerada do SARS-coV-2 (“o novo coronavírus”) tem sido uma das maiores preocupações da saúde pública globalmente. 

O vírus viaja. 

Assim como mercadorias, ideias, informações, capitais e seres humanos no mundo contemporâneo, o vírus parece ter embarcado na complexa teia de mobilidade que despreza limites municipais, fronteiras nacionais e barreiras geográficas. É justamente a mobilidade do vírus que se tornou um dos maiores desafios a ser enfrentado. 

Mas o vírus não viaja de forma autônoma, ele embarca nos indivíduos que, por sua vez, são cada vez mais rápidos e eficientes em seu movimento. 

Não por acaso que as primeiras medidas adotadas pelos países ao redor do mundo foram as restrições de mobilidade humana. Fronteiras fechadas, pessoas imobilizadas em suas casas, controle rígido da mobilidade urbana. Paradoxalmente, o direito a livre movimento, um dos pilares do liberalismo, parece ter se tornado o maior aliado do vírus mortal que põe em xeque a estrutura demográfica, econômica e social da vida coletiva contemporânea. 

A dimensão e o alcance global da restrição de mobilidade humana internacional são inéditos na história moderna. De acordo com os dados levantados pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) da ONU, no início de maio, 219 países, territórios e áreas impuseram algum tipo de restrição de entrada nos pontos fronteiriços, que compreende a restrição de entrada para os passageiros vindos das áreas de risco, medidas sanitárias compulsórias (quarentena, exames médicos) ou interrupção de concessão dos vistos de entrada [1].  

O objetivo desse texto é refletir sobre algumas características essenciais da mobilidade humana no mundo globalizado composto por Estados-nação que a pandemia trouxe à tona. Antes discutidos nos textos científicos, hoje esses aspectos são vividos por cada um de nós no dia a dia marcado pelo isolamento, distanciamento social e a (auto)vigilância. São as lições da pandemia sobre a maneira com qual a mobilidade e a fixidez são geradas e gerenciadas na tensão entre a agência dos indivíduos e os dispositivos de segurança dos Estados-nação. 

A mobilidade é uma noção fundamental para pensar a sociedade liberal capitalista contemporânea. No plano das ideias, laissez-faire e laissez-passer resumem a centralidade das liberdades individuais como valores supremos. No plano econômico, a (i)mobilidade de trabalho, a circulação de mercadorias e do capital são processos constitutivos da valorização do valor e, consequentemente, da reprodução do capitalismo, – conceitos marxianos, tão bem desenvolvidos nos últimos trabalhos de David Harvey [2]. 

No entanto, nem tudo e nem todos se movem de forma igual no mundo contemporâneo. Embora a mobilidade migratória esteja ativamente construída por alguns regimes políticos populistas como um problema social a ser resolvido, o número de migrantes internacionais, refugiados e solicitantes de refúgio é consideravelmente menor que o número de viajantes de curta duração. De acordo com as estimativas de agências internacionais, nos últimos anos foram registradas 1.4 bilhões de entradas de viajantes internacionais de curta duração [3], enquanto 244 milhões eram migrantes, ou seja, viviam fora de seu país de origem [4]. É evidente que a diferença entre os viajantes e os migrantes ou solicitantes de asilo diz respeito não apenas a categorias nas quais são enquadrados pelos agentes de controle fronteiriço, mas sobretudo ao tempo, à velocidade, à rota e ao conforto de seu deslocamento. 

 

Lição n. 1. A mobilidade é distribuída de forma desigual

Embora alguns governos tentem promover uma assimilação entre a figura do migrante e a disseminação do vírus, os fatos têm desmentido esse argumento. Uma investigação do The Intercept [5] mostrou que em ao menos 93 países o paciente zero tinha vindo ou tinha passado por algum país da Europa. A maioria deles viajou de avião e por um período curto: negócios, turismo e visitas de curta duração. Em alguns países da África, a classe política foi afetada pelo vírus de forma precoce em comparação com a sociedade como um todo, o que suscita a relação desse fato com a sua maior mobilidade. Parece claro que o principal agente disseminador do vírus internacionalmente é alguém que viaja sem grandes obstáculos e em grande velocidade. Nesse mesmo sentido, a Organização Mundial de Saúde afirma que os viajantes causais ou frequentes (turistas, políticos, executivos, etc) são mais propensos a transmitir doenças infecciosas do que migrantes e deslocados forçados, cujo deslocamento é muitas vezes mais lento e que tendem a permanecer nos locais de instalação por períodos de tempo maiores [6]. 

 Lição n. 2. A mobilidade deve ser pensada em relação à imobilidade

Nos países com grande índice de desigualdade social, como o Brasil, a segunda lição da pandemia se revela com mais clareza. Enquanto alguns segmentos da sociedade adotaram medidas de auto-isolamento, transferindo as atividades cotidianas para dentro de suas casas, outros tantos continuam trabalhando fora de casa. Sob a ótica da mobilidade, enquanto uns se sujeitam à imobilidade, outros não tem outras escolhas a não ser se manter em mobilidade para sobreviver. A pandemia nos ensina que o impacto da mobilidade na vida das pessoas só pode ser pensado em relação ao seu binómio, a imobilidade, a fixidez. 

A historiadora marxista Silvia Federici já mostrou como o advento do capitalismo condenou certos grupos sociais tanto à mobilidade compulsória (trabalhadores precários expulsos dos campos pelo cercamento, por exemplo), quanto à imobilidade compulsória (mulheres cuidando dos filhos e dos idosos) [7]. Hoje, a pandemia revela que as sociedades mais desiguais continuam reproduzindo o mesmo padrão da mobilização e imobilização forçada, incluindo nesse processo novos segmentos de população fortemente marcados pelo gênero, raça, classe, etnia e nacionalidade. 

Assim como a mobilidade só faz sentido quando é pensada dialeticamente em relação ao seu oposto: a fixidez, a díade mobilidade-imobilidade não pode ser compreendida fora da dinâmica social do capitalismo globalizado que a produz e molda em diferentes escalas, local, regional e global. 

 

Lição n. 3. O fechamento de fronteiras não impede as pessoas a migrarem, mas aumenta os riscos relacionados à migração

O fechamento de fronteiras e outras medidas de contenção do vírus, sobretudo, o isolamento, suspenderam o curso estabelecido de políticas de acolhimento dos migrantes. Na França, por exemplo, todos os procedimentos de solicitação de refúgio e entrevistas para a concessão da autorização de residência foram suspensos. De um lado, isso gerou alguns efeitos positivos, dentre eles a suspensão das detenções dos migrantes irregulares (já que a expulsão dos estrangeiros também foi interrompida) e a prorrogação automática da validade da autorização de residência por três meses. Por outro lado, grande número de migrantes foi condenado a existir num limbo jurídico, sem acesso à regularização migratória e por isso ainda mais exposto aos riscos relacionados com a COVID-19 [8].

Nos Estados Unidos, o governo de Donald Trump suspendeu por 60 dias a emissão dos “green cards” e restringiu por, ao menos 120 dias, a entrada de imigrantes no país. O premiê da Hungria, Viktor Orbán, suspendeu, por tempo indeterminado, o acesso de refugiados a áreas de fronteira. 

No Brasil, o governo de Bolsonaro resolveu fechar a fronteira com a Venezuela assim que a Organização Mundial de Saúde decretou a pandemia [9], embora o número de infectados por coronavírus no Brasil tenha sido muito maior que na Venezuela. Além de ser motivada por considerações ideológicas, a medida pôs em xeque as políticas de proteção dos deslocados forçados, ao determinar que o descumprimento da portaria implicaria na “deportação imediata e a inabilitação de pedido de refúgio”, contrariando inclusive os princípios da Lei de migração n. 13.445/2017. A norma não protegeu o país do vírus e ainda forçou os migrantes venezuelanos a se aventurar em travessias arriscadas. A restrição de mobilidade internacional por via aérea só foi adotada posteriormente [10], muito depois que o vírus tenha sido importado da Europa pelos viajantes. 

Assim, os efeitos da restrição da mobilidade internacional impactaram diversos grupos de pessoas em movimento de maneiras diferentes. Aqueles que tem acesso às viagens rápidas, seguras e confortáveis optam por adiar os seus deslocamentos ou a adotar meios de transporte individuais. Ao mesmo tempo, o recrudescimento do controle fronteiriço põe os indivíduos que fazem travessias perigosas em um risco ainda maior, já que, como sabemos das últimas décadas da história da migração na Europa e nos Estado Unidos, as barreiras físicas não impedem os indivíduos a migrarem, mas aumentam os riscos ligados à travessia. Os primeiros, obrigados à imobilidade, ficam seguros em suas casas. Os segundos ficam expostos ao vírus nos campos de refugiados, centros de retenção e acampamentos improvisados numa perigosa iminência de uma catástrofe humanitária. 

Enquanto suspendeu a circulação internacional regulada e ordenada, o fechamento de fronteiras trouxe à tona a maneira assimétrica com a qual o acesso à mobilidade segura, rápida e confortável é distribuído entre diversos grupos sociais, nacionais e étnicos.

 

Lição n. 4. Combater a ilegalização de migrantes beneficia a sociedade como um todo

Diferentemente dos países liderados pela extrema-direita, o governo de Portugal concedeu a todos os migrantes, refugiados e solicitantes de asilo a regularização coletiva, garantindo assim o seu pleno acesso ao sistema de saúde pública [11]. Essa decisão foi justificada pela evidência lógica de que conceder aos migrantes irregulares o acesso à saúde protege a sociedade como um todo.

Em Nova York, um dos bairros mais afetados pelo vírus é o Queens, que também abriga grande parcela da população migrante da cidade. Em parte, os altos índices de contaminação se devem ao fato de que os migrantes são empregados em setores de economia informal ou que exigem pouca qualificação e, portanto, não podem optar pelo trabalho remoto. Em parte, isso se deve à falta de seguro médico e do acesso à saúde, assim como ao medo de serem detidos e deportados, já que muitos desses migrantes são indocumentados e criminalizados pelo governo de Trump. Como sabemos, a ilegalização dos migrantes é produzida pelo Estado e tem se tornado um mecanismo eficaz para produzir a mão de obra barata, precarizada e disciplinada pelo medo. 

No entanto, a pandemia revela que a ilegalização dos estrangeiros pode por em risco toda a sociedade e elevar o número de casos graves e óbitos. Sem acesso ao tratamento médico e ausentes nas estatísticas oficiais, os migrantes criminalizados pela ausência de documentos constituem um dos grupos mais vulneráveis e mais expostos à contaminação. Além disso, a falta de regularização migratória pode se tornar um fator que os impede a acessar as medidas de auxílio emergenciais, colocando em extremo risco econômico e sanitário, como tem acontecido no Brasil nas últimas semanas [12]. 

Ainda é cedo para fazer previsões sobre o futuro da mobilidade humana após a pandemia. Alguns autores apontam para as consequências nefastas da normalização das medidas restritivas emergenciais para a liberdade do movimento, outros acreditam que a COVID-19 pode convencer as sociedades que apenas as medidas coletivas, solidárias e universais são capazes de proteger a população dos perigos de epidemia, pobreza e violência. 

O vírus trouxe à tona a maneira com a qual a desigualdade sistêmica produz padrões de mobilidade e imobilidade que podem proteger uns e ameaçar outros. Essas lições devem servir para produzir novos argumentos e novas agendas nas lutas sociais. Estamos diante de um dilema ético, afirma Gurminder Bhambra: como podemos continuar a ignorar as populações migrantes que, como vem sendo escancarado pela pandemia, são tão fundamentais para a nossa sobrevivência [13]?

Muitos puderam sentir na pele como é viver a sua mobilidade costumeira ser sujeita a todo tipo de controle, restrição e vigilância. “Todos somos refugiados agora”, sugere Steve Ali, um refugiado sírio que vive hoje em Londres [14]. O momento pode ser propício a desenvolver a empatia por aqueles que buscam por meio da mobilidade a proteção e o futuro. 

Para os migrantes, a pandemia veio a exibir, novamente, o lugar reservado para eles na sociedade de classes. Como aponta David Harvey, a classe trabalhadora europeia e estadunidense é fortemente marcada pela raça, gênero e nacionalidade e possui clara origem migratória [15]. A falta de escolha que os migrantes enfrentam entre se contaminar em nome de cuidar dos outros e conservar a renda ou ficar desempregados sem qualquer benefício é uma dura lição da pandemia para eles, para os governos e para todos nós. 

 

Svetlana Ruseishvili é Docente no Departamento de Sociologia da UFSCar

 

Referências bibliográficas

[1] International Organization for Migration. Global Mobility Restriction Overview. 4 May, 2020. Disponível em: https://migration.iom.int/. Acesso em 7 de maio de 2020.

[2] Ver Harvey, David. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo, Boitempo Editorial, 2011. ___. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo, Boitempo Editorial, 2016. ____. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo, Boitempo Editorial, 2018. 

[3] United Nations World Tourism Organization. International Tourism Highlights. 2019 edition. Disponível em: https://www.e-unwto.org/doi/pdf/10.18111/9789284421152. Acesso em: 7 de maio de 2020. 

[4] International Organization for Migration. World Migration Report, 2018. 

[5] Penney Joe. “Coronavírus começou na China, mas a Europa foi polo do contágio global”. The Intercept, 4 de abril de 2020. Disponível em : https://theintercept.com/2020/04/04/coronavirus-europa-china/?fbclid=IwAR32xyVHJX_WDgcMBBRI2jdSloVSFX05k0t1_v9mxWMtsZfsyyeFcJSy Yms. Acesso em: 30 de abril de 2020. 

[6] Mantovani, Flávia. « Pandemia pode levar a restrições de migrações pelo mundo”. Folha de São Paulo, 27 de abril de 2020. Disponível em : https:/www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2020/04/27/. Acesso em: 30 de abril de 2020. 

[7] Federici, Silvia. Calibã e a bruxa. São Paulo, Editora Elefante, 2018.

[8] Agier, Michel et al., « Personnes migrantes en centres de rétention et campements. Désencamper pour protéger », in : Annabel Desgrées du Loû (dir.), Dossier « Les migrants dans l’épidémie : un temps d’épreuves cumulées », De facto [En ligne], 18 | Avril 2020, mis en ligne le 10 avril 2020. Disponível em: http://icmigrations.fr/2020/04/07/defacto-018-01/. Acesso em: 7 de maio de 2020. 

[9] Brasil. Presidência da República. Portaria n. 120, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros provenientes da República Bolivariana da Venezuela, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa.

[10] Brasil. Presidência da República. Portaria Interministerial n. 203, de 28 de abril de 2020. Dispõe sobre a restrição excepcional e temporária de entrada no País de estrangeiros, por via aérea, conforme recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa.

[11] Alberti, Mia; Cotovio, Vasco. Portugal coronovirus: Migrants and asylum-seekers given full citizenship rights during coronavirus outbreak. CNN World, March 31, 2020. Disponível em: https://edition.cnn.com/2020/03/30/europe/portugal-migrants-citizenship-rights-coronavirus-intl/index.html. Acesso em: 30 de abril de 2020. 

[12] Martinez-Vargas, Ivan; Mantovani, Flávia. “Caixa barra pagamento de auxílio emergencial a imigrantes”, Folha de São Paulo, 7 de maio de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/caixa-barra-pagamento-de-auxilio-emergencial-a-imigrantes.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa. Acesso em: 7 de maio de 2020. 

[13] Gurminder K. Bhambra. “Rethinking Brexit in the light of Covid-19”, Discover Society, April 22, 2020. Disponível em: https://discoversociety.org/2020/04/22/rethinking-brexit-in-the-light-of-covid-19/?fbclid=IwAR0PNiG63BToC57UEcHZg2iw9fNVkygU6wkYDuqIhUGCg9Sb. Acesso em: 7 de maio de 2020. 

[14] Ali, Steve. “We are all refugees now”, GQ, 11 April, 2020. Disponível em: https://www.gq-magazine.co.uk/politics/article/coronavirus-refugees-isolation?fbclid=IwAR2VF4S68Rtkimzi3A5Fi3eXbaNtHi1uJsTGzXQJGiZthzOeuh8NauE. Acesso em: 7 de maio de 2020. 

[15] David Harvey: Política anticapitalista em tempos de coronavírus – Blog da Boitempo. Publicado em 24 de abril de 2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/24/david-harvey-politica-anticapitalista-em-tempos-de-coronavirus/. Acesso em: 7 de maio de 2020.