Sociologia na Pandemia 20#

 

Solidariedade e políticas públicas: estratégias autônomas de prevenção e proteção em territórios periféricos nas cidades1

 

Por Tânia Guimarães Ribeiro e Daniela Ribeiro de Oliveira

 

Usando as lentes da sociologia para analisar os efeitos da pandemia enxergamos mais do que as estatísticas sobre o número de pessoas contaminadas e mortas nos mostram. Toda morte é social. Homens, mulheres, jovens, crianças, pessoas de grupos de risco fazem parte de um cenário no qual as escolhas para se protegerem do contágio não são meras opções para quem vive nas periferias do Brasil. A pandemia da Covid-19 nos provoca mais uma vez a enfrentar um dilema clássico: quais as causas que originam e mantém a solidariedade social? 

Em plena sociedade globalizada a reflexão deve considerar uma diversidade de questões que aprofundam o entendimento sobre o conflito de classes e demandam soluções diferenciadas para os novos e velhos problemas. A crise sanitária atual aprofunda a necessidade de pensarmos saídas que levem em conta as diferenças e as desigualdades sociais que impedem a (co)existência dos vários projetos de futuro dentro da sociedade brasileira. 

Observamos incomodadas uma aparente sensação de que a mídia corporativa e parte da sociedade brasileira somente agora descobrem a desigualdade na periferia. O longo caminho da desigualdade, sem a perspectiva interseccional, deixou de considerar demandas específicas dos diversos grupos sociais. As variáveis como cor/raça, gênero, pertencimento territorial, nem sempre são contempladas nas políticas públicas, em propostas homogeneizadoras e insuficientes. 

A discussão acirrada na internet, em redes sociais e sites da imprensa, questionando se a “economia deveria parar para salvar vidas” é um dos sintomas do abismo que apartam os territórios das favelas dentro das cidades. E como tal refletem dificuldades para a adoção de medidas de proteção que abarquem toda a sociedade. 

Os danos do moinho satânico que tanto sustentam a ilusão da autonomização do mercado frente a sociedade, quanto ampliaram as desigualdades sociais são bem conhecidas e analisadas pela sociologia crítica. E a crise da Covid-19 reaviva também o debate sobre a importância do Estado e das políticas púbicas para arrefecer os impactos na economia e, principalmente, garantir os direitos das pessoas. A “peste neoliberal” (Chomsky, 2020) [2] corrói os sistemas de proteção social e a democracia, e seus impactos — pela falta de saúde básica, de saneamento, de educação, de trabalho e renda — acentuam as discriminações “costumeiras” que estão evidentes em todos os lugares (Harvey, 2020) [3], e se ampliam nas periferias. 

Cabe perguntar: existe espaço para a construção de saídas autônomas e singulares para a crise provocada pela pandemia? Alguns territórios nas periferias brasileiras já pularam a frente na base do “é nós por nós mesmos”, buscando saídas possíveis, mobilizando suas redes de solidariedade, dentro e fora dos seus espaços, conforme observamos em Belém-PA e na capital de São Paulo.

 

A solidariedade possível – estratégias coletivas na periferia 

Desde o mês de março de 2020 acompanhamos por meio das redes sociais duas mobilizações sociais realizadas em duas capitais brasileiras, Belém, no norte do país, e São Paulo, no sudeste. Práticas que vem revelando como as pessoas, que moram e trabalham em lugares que nos acostumamos a chamar de periferia, criaram estratégias coletivas para o enfrentamento dos impactos decorrentes da Covid-19. 

Na capital paulista, as ações realizadas em Paraisópolis surpreenderam pelo grau de organização e pela amplitude dos projetos sociais postos em prática pela União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis (UMCP), fundada em 1983. Considerada a maior favela de São Paulo, Paraisópolis tem cerca de 100 mil habitantes e 85% desta população é formada por nordestinos, segundo o perfil da UMCP, no Facebook [4]. A repercussão de suas atividades vem chamando atenção da mídia, nacional e internacional, que indagam: “Por que Paraisópolis controla melhor a pandemia do que o município de São Paulo?”. 

Acompanhando por meio de suas redes sociais e a mídia local, ressaltamos as ações do coletivo Tela Firme, no bairro da Terra Firme, o sétimo mais populoso da capital paraense, com mais de 61 mil habitantes (IBGE, 2010). Sem tanta repercussão na mídia, as mobilizações locais se infiltram em outros bairros periféricos da cidade, como Jurunas e Guamá, por meio de uma rede de ações grafadas nas redes sociais pela hashtag #Covid19PeriferiasBelém. As postagens buscam dar visibilidade a outros coletivos da capital, divulgando as campanhas realizadas nos diferentes bairros, bem como mobilizar a sociedade informando sobre o impacto da pandemia nas periferias e em busca de doações. 

Por que Paraisópolis chamou tanta atenção da mídia e dos especialistas em políticas públicas nesse momento? Percorrendo a produção jornalística e publicações especializadas, nelas são ressaltadas a capacidade de organização coletiva da União de Moradores e suas ações autônomas para o combate à proliferação da Covid-19. E, em boa parte, são ressaltadas a ausência do Estado e a falta de políticas públicas de prevenção e combate a pandemia.  

Delineamos, nessa busca, ações e projetos da União de Moradores que sustentam as estratégias, particularmente, no combate a Covid-19. Criada há mais de 35 anos, a associação parece ter se beneficiado de uma aprendizagem social, construindo uma ampla rede de parcerias. Os projetos se desenvolvem com pequenos empreendimentos locais – restaurantes, comércio de alimentos, artesãs -, com organizações populares, ONGs, instituições governamentais, empresas privadas, entre outros. 

Essa rede de parcerias sustentou as estratégias de prevenção e redução do impacto na saúde dos moradores de Paraisópolis, com a atuação do voluntariado local. O território foi dividido por setores e o “presidente de rua”, eleito pelos vizinhos, é responsável pela divulgação de informações e por acionar redes de cuidados, identificando os doentes e os encaminhando para o atendimento médico. No apoio, contam com ambulâncias e equipe médica, contratados pela União de Moradores, e leitos de recuperação, ocupando duas escolas púbicas.

Numa outra ponta, e visando a geração de renda para os moradores, foram confeccionadas, por artesãs locais remuneradas, máscaras para que fossem distribuídas no local. Investiu-se no comércio local para a compra de itens das cestas básicas. As campanhas de financiamento coletivo buscaram distribuir recursos para que as empregadas domésticas pudessem ficar em quarentena, e, ainda, incentivou a compra de marmitas, em restaurantes locais, para a distribuição aos moradores em condições mais vulneráveis. Essa dinâmica de mobilização social tem sido apontada como a responsável pela menor taxa de mortes no local. Dados da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo mostraram que, no mês de maio de 2020, o índice de mortalidade pela Covid-19, em Paraisópolis, media quase um terço da média municipal. 

Não se pode perder de vista as diferenças econômicas e sociais que marcam esse território de 100 mil habitantes. E nem mesmo as diferenças de vivências dentro desse espaço, que não homogêneo. Então indagamos, esse modelo de mobilização é sustentável ao longo do tempo? E ele poderia sanar os déficits sociais dos grupos que ocupam o território das favelas? Respostas mais significativas requerem pesquisas mais aprofundadas e duradouras, mas são inspirações para a imaginação sociológica. E as experiências locais e suas estratégias singulares são parte desse processo, como vemos nos dois retratos aqui destacados.

Acompanhando as redes sociais (Instagram e Facebook) do Coletivo Tela Firme, organização social presente no bairro Terra Firme, observamos a sua capacidade de articular e mobilizar outras organizações e movimentos populares locais e nacionais [5], a fim de garantir doações para os moradores impactados pelo isolamento social. Os alimentos, kits de materiais de higiene e máscaras de tecido são distribuídos para os que perderam seu trabalho e fonte de renda e aos que já se encontravam em situação de vulnerabilidade. A campanha Terra Solidária dá nome a ação. Importante ressaltar que o foco original de atuação do coletivo envolve a elaboração de estratégias de visibilização e ressignificação da periferia a partir do audiovisual. O coletivo é um importante articulador cultural local e é responsável por mobilizar jovens da TF (Terra Firme) na produção cinematográfica, revelando sua realidade, seu território, seus anseios. 

As ações iniciadas a partir da campanha Terra Solidária, centrada no coletivo, tomou maior dimensão ao convergir na constituição da “Rede Amazônica de Solidariedade e Resistência”. Trata-se da articulação de 24 instituições de diferentes espectros em torno de campanhas para doação de produtos alimentícios e cujo mote é “doar é cuidar”. Uma característica comum dessas organizações sociais envolvidas na Rede Amazônica é sua trajetória histórica de movimento social, fundado em raízes de organização popular, com capilaridade nos territórios das periferias de Belém. Individualmente, as organizações sociais desta rede já atuavam em suas bases com ações de formação educacional; práticas religiosas, ação política e recreativa. 

A mobilização da rede se faz também pela elaboração de estratégias de prevenção e cuidados da saúde que se basearam em duas frentes: a informativa e a da constituição de um GT de Saúde – “Saúde Livre”. A informativa centrou esforços na confecção de materiais sobre as formas de prevenção da contaminação e na distribuição de máscaras confeccionadas por moradores participantes ou de outras organizações sociais locais. Voluntários envolvidos direta e indiretamente, com o coletivo distribuíram materiais no bairro e em pontos comerciais (feiras e mercados) que se mantiveram em funcionamento, mesmo durante o lockdown decretado na primeira quinzena de maio de 2020. 

Num segundo momento do isolamento, acompanhando os casos de violência doméstica e infantil, o coletivo elaborou material e passou a atuar no campo no combate a prática de violência que durante o isolamento aumentou vertiginosamente. A segunda ponta de ação é a formação do GT de Saúde que envolveu a atuação voluntária dos agentes de saúde do Programa Saúde da Família (PSF). Esses trabalhos foram pouco divulgados em suas redes sociais, não sendo possível identificar a real atuação no bairro da Terra Firme. Entretanto, no Jurunas, outro bairro na periferia de Belém que se articulou coletivamente para o enfrentamento da Covid-19, verificou-se que essa estratégia foi mais efetiva, na medida em que foram realizados atendimentos médico por equipe voluntária de saúde.           

Analisando os canais de divulgação das ações sociais organizadas pelo coletivo Tela Firme, não identificamos a participação de grupos empresariais, seja na doação específica para o combate ao Covid-19, seja em outras atividades rotineiras. Como apontamos, a rede de conexões foi estabelecida prioritariamente por movimentos populares cuja organização tende a pautar ações e discursos cujo conteúdo de resistência, de crítica social, e de reivindicação de políticas públicas escampam, em alguma medida, da lógica do empreendedorismo como referência de ação e como horizonte a ser atingido. 

Tentando refletir sobre como as ações dessa rede de coletivos e movimentos sociais significaram em termos de respostas aos impactos da pandemia, apontamos inicialmente o apoio imediato às famílias que perderam qualquer forma de geração de renda. Em fevereiro, foram divulgados dados da PNAD Contínua (2020) – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – pelos quais Belém lidera o ranking da informalidade no mercado de trabalho, tendo 62,4% dos trabalhadores atuando na informalidade. O coletivo segue com a campanha Terra Solidária, bem como segue com sua mobilização principal de denúncia contra a ausência de políticas públicas.  

Cabe considerar que arranjos como esses, enraizados na experiência local, podem iluminar a reflexão sociológica sobre os vários caminhos para a construção dos laços sociais e para a tomada de decisões no plano político. Essas experiências, além de originarem saídas genuínas para o sofrimento social, tornam-se referências para as futuras políticas púbicas voltadas aos territórios das favelas, sem prescindir da atuação do Estado. Pois os territórios das favelas guardam contextos e grupos sociais diferenciados. As distâncias entre as formas de organização social e atuação, as estratégias, a rede de parcerias e as ações entre os contextos regionais e locais – Paraisópolis e Terra Firme – são marcas a serem consideradas. A rede de mobilização nos bairros das periferias das duas capitais revela, de alguma forma, a expressão da fala rapper Emicida para quem “É nóis por nóis” na periferia. A afirmação do rapper revela-se na passagem de um dos moderadores da rede social do coletivo: “Só nós poderemos resolver por nós mesmo nossos problemas. Não esperar que ninguém faça, ou que caia do céu”.

 

Tânia Guimarães Ribeiro é docente da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA. 

Daniela Ribeiro de Oliveira é pesquisadora de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA.

 

Notas

[1] Essa comunicação é fruto de pesquisa exploratória realizada pelas pesquisadoras, que vêm desenvolvendo estudos nos temas sobre conservação ambiental, desigualdades, território e trabalho. A quarentena forçada implicou na continuidade da observação de campo por meio de pesquisas nas redes sociais. 

[2] Noam Chomsky et la peste néolibérale. Un entretien de Srećko Horvat avec Noam Chomsky [version texte]. Acessado em 20 de abril de 2020. Disponível em: https://la-bas.org/la-bas-magazine/textes-a-l-appui/noam-chomsky-et-la-peste-neoliberale. 

[3] HARVEY, David. “Política anticapitalista em tempos de COVID-19” que faz parte da coletânea DAVIS, Mike, et al: Coronavírus e a luta de classes. Terra sem Amos: Brasil, 2020.

[4] Fundação da União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis, disponível em http://www.facebook.com/ParaisopolisSP, acessado em 02 de agosto de 2020

[5] Esses são alguns dos movimentos sociais estiveram envolvidos na articulação e na campanha de doação os seguintes movimentos MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), SindPREVs Pará; instituições da Igreja Católica (Cáritas do Brasil, CNBB, Movimento EMAÚS), torcidas organizadas de times de futebol do Pará (Esporte Clube e Remo), CMP (Central de Movimentos Populares), Mirante do TF (Casa de Cultura do Terra Firme), UNICEF.