Sociologia na Pandemia #7

 

Pandemia e desigualdades socioambientais

 

Por Rodrigo Constante Martins

 

Ainda estão em jogo os modos pelos quais a pandemia da COVID-19 capitulará nossa história. Tanto o conhecimento sobre o vírus e sobre o alcance de suas interações com o meio e com o corpo humano, quanto as estratégias nacionais e internacionais de reação ao que se convencionou classificar como crise sanitária, vêm se deslocando rapidamente no tempo e no espaço. Em qualquer dos momentos desta crise, entretanto, há uma variável transversal que condiciona em larga medida sua dinâmica e alcance. Em lato senso, podemos classificar esta variável como questão ambiental.

 

O caráter interdisciplinar da moderna questão ambiental demanda esforços de uma verdadeira ecologia de saberes para o dimensionamento de sua interação com a pandemia da COVID-19. A este respeito, as perguntas são variadas e complexas. Dentre as mais relevantes: como o vírus SARS-CoV-2 responde ao clima? Por que suas formas anteriores (manifestas em 2002 e 2009 na China) não se tornaram pandemias e como foram ambientalmente controladas ou limitadas? Suas interações com climas e populações tropicais, equatorianas, mediterrâneas ou temperadas, revelam alguma particularidade importante? Quais as hipóteses mais sólidas para compreender as variações do ritmo e gravidade das contaminações em diferentes contextos sócio territoriais? No, Brasil, em particular, qual será a intensidade da relação já verificada na França e nos EUA entre poluição urbana e o número de óbitos?  No ritmo de expansão das queimadas e dos desmatamentos da era Bolsonaro, quais os riscos do agravamento das morbidades respiratórias que concorrem para os casos mais severos de ocorrência da COVID-19?

 

Desde a sociologia, aparatos analíticos importantes se acumularam nas últimas décadas para a problematização da questão ambiental. Um destes aparatos, e que certamente nos permite avançar sobre as incertezas do presente, se ampara na noção de risco. Na contemporaneidade, incertezas manufaturadas potencializaram as possibilidades de ruptura do tecido social. Desde o final da década de 1970, as incertezas nucleares e as expectativas de desastres ecológicos vieram marcar o caráter global dos riscos, quanto alteraram drasticamente as representações sociais e a consciência subjetiva de segurança dos problemas e perigos gerados.

 

As assertivas mais correntes em torno da noção de risco podem parecer, em um primeiro olhar, caminhos bastante azeitados para se observar a pandemia do COVID-19. Afinal de contas, o vírus ultrapassou fronteiras e hemisférios, alcançando números elevados de contaminados e provocando óbitos em diferentes classes e estratos sociais. A segurança das instituições modernas (Estado, industrialismo, mercado, ciência, etc), confrontada pelo SARS-CoV-2, fora profundamente impactada.

 

Mas a noção de risco e seu corolário mais geral – a saber, a modernização reflexiva – termina por deixar de lado a concretude das diferentes experiências que se multiplicam nos territórios atingidos. E, como bem podemos acompanhar nas notícias diárias de diferentes regiões do globo, estas experiências são atravessadas por ordens simbólicas específicas, que revelam gramáticas sobre o corpo e sobre suas ameaças que não são universais como desejaria o dispositivo técnico-epidemiológico. Ademais, assim como a moderna (des)ordem industrial se caracteriza pela produção e distribuição desigual de bens, a distribuição dos riscos também é marcada pelas diferenças políticas, econômicas e socioambientais.

 

Um exemplo sintomático a este respeito é a decisão sobre quais corpos devem se expor a situações de maior vulnerabilidade no atual contexto de pandemia. Nos EUA, os trabalhadores rurais foram alçados à categoria de “essenciais” pelo governo, de modo a poderem trabalhar durante a crise sanitária para a garantia da segurança alimentar dos norte-americanos. Note-se que as colheitas na agricultura norte-americana empregam anualmente cerca de dois milhões de trabalhadores e trabalhadoras rurais. Deste total, o próprio governo estima que mais da metade (isto é, mais de um milhão de trabalhadores) é formada por imigrantes ilegais. De acordo com o California Farm Bureau, no estado da Califórnia, entre os trabalhadores temporários, o percentual de imigrantes ilegais passaria dos 70%. Seriam, em sua grande maioria, trabalhadores mexicanos (The New York Times, The Coronavirus Outbreak, 02/04/2020).

 

Esta seleção dos corpos e dos territórios a serem lançados em situações de risco sugere que as instituições reflexivas (neste caso, Estado e mercado) operam fronteiras contingentes, com critérios móveis de inclusão/exclusão e utilidade. A mobilidade destes critérios termina por permitir que a distribuição dos riscos repercuta desigualdades sociais, econômicas e territoriais próprias do capitalismo industrial-informacional.

 

Uma alternativa importante para a compreensão não apenas destas situações de riscos, mas do próprio alargamento questão ambiental, se organiza em torno das noções de justiça e desigualdades ambientais. E estas noções se revelam particularmente sensíveis na identificação do alcance da pandemia da COVID-19 e, principalmente, no do desenho das populações mais vulneráveis.

 

No cenário das desigualdades ambientais, é conhecida a forte correlação entre indicadores de pobreza e a ocorrência de doenças associadas à poluição por ausência de água e esgotamento sanitário, ou por lançamento de rejeitos origem industrial. Esta desigualdade resulta, em grande parte, da vigência de mecanismos de privatização do uso dos recursos ambientais coletivos – tais como água, ar e solos – e da proteção seletiva do universo da política institucional. 

 

No Brasil, por exemplo, os conhecidos níveis de desigualdades socioambientais são centrais na interpretação dos números conhecidos da pandemia, bem como na construção dos seus prognósticos. Sabidamente, os bairros mais podres dos grandes centros urbanos brasileiros enfrentam condições de vulnerabilidade que passam pelos espaços habitacionais confinados, sem infraestrutura completa, nos quais frequentemente as condições sanitárias básicas se constituem em item raro. O acesso permanente à água potável, condição fundamental para as práticas de higiene corporal e limpezas necessárias no combate à disseminação do SARS-CoV-2, também se faz ausente. Neste cenário, não causa estranheza a tragédia instalada nas periferias de das regiões metropolitanas de Manaus, Belém, Fortaleza, Recife, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo.

 

Em setembro de 2019, a Comissão de Serviços e Infraestrutura do Senado Federal realizou uma audiência pública sobre a universalização do saneamento básico no Brasil. Na ocasião, dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) davam conta de que 48% da população brasileira não possuía coleta de esgoto, 46% dos esgotos eram tratados e pelo menos 35 milhões de pessoas no país não tinham acesso à água tratada (Agência Senado, Da Redação, 25/09/20190).

 

Estes dados espantam. Mas, abstraídos de seus contextos, parecem referir-se somente à infraestrutura ou à política pública em sentido lato. Entretanto, sob o olhar sociológico e, especialmente, sob a perspectiva socioambiental, estes dados ganham sentido quando articulados com a experiência concreta dos grupos sociais atingidos pela violência das cifras. E nesta experiência, o corpo não se faz apenas de matéria orgânica. É também tecido por relações de classe, etnia, raça, gênero, geração. Estas relações – ou marcadores – dão forma à história social tornada corpo. Por isso, ameaçado ou contaminado, o corpo traz consigo a história das desigualdades ambientais resultantes destes marcadores. Desigualdades ambientais cujos impactos mais perversos estão concentrados entre negros e negras pobres que vivem nas franjas dos direitos formais, longe da assistência regular à saúde e com acessos precários à água, saneamento e outras formas de segurança ambiental.

 

Mas o corpo não é apenas posicionado socialmente. Ele também age, busca deslocamentos. É, portanto, enfrentamento. E traz a subjetividade que pode levantar-se contra os constrangimentos desta história incorporada. Este levante parece tomar forma, por exemplo, nas estratégias locais de enfrentamento da crise sanitária empreendidas pelas diferentes comunidades que convivem cotidianamente com os produtos da desigualdade ambiental – caso emblemático das estratégias de prevenção e cuidado adotadas pela comunidade Paraisópolis, na cidade de São Paulo (Folha de São Paulo, Equilíbrio e Saúde, 05/05/2020).

 

Ainda a propósito do enfrentamento, os rumos que os desafios ambientais contemporâneos vêm tomando apontam para a urgência de inovações políticas. Inovações políticas que garantam as possibilidades de transformações nas formas de acesso e intensidades de usos dos recursos ecossistêmicos. A crise econômica resultante (e em alguns casos, como no Brasil, pré-existente e apenas aprofundada) pelo contexto da pandemia da COVID-19, acirra as disputas em torno de projetos de poder e, em última instância, de projetos de sociedade. O discurso em torno da “retomada” do crescimento econômico, que versa sobre a simples manutenção da experiência de combustão do mundo, poderá levar as sociedades contemporâneas a uma nova encruzilhada em futuro bem próximo. Esta encruzilhada pode ser produto das elevadas temperaturas globais, das alterações nos níveis dos oceanos, da toxidade das águas, do ar e dos corpos, ou mesmo de uma nova ameaça viral global. De qualquer (má)sorte, o desprezo pelas alternativas ao regimente de acumulação intensivo na exploração do trabalho e dos recursos ecossistêmicos nos será caro. No caso, caro não apenas em valores monetários, mas sobretudo em perdas de espécies, de vidas e dos modos sociais diversos de se experimentar a variedade ambiental que ainda nos cerca.

 

Rodrigo Constante Martins é docente do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós Graduação em Sociologia (PPGS) e do Programa de Pós Graduação em Ciências Ambientais (PPGCAm) da UFSCar