Sociologia na Pandemia 13#

 

A velha sociologia pós-pandêmica

Por Samira Feldman Marzochi

 

À minha sobrinha Anna,

quando, aos nove meses, descobriu os “haidis”:

os que vivem, movem-se, relacionam-se

 e não são gente. 

 

 

A emergência da Covid-19, tomada como um novo fenômeno ecológico global, longe de pôr em questão os fundamentos da sociologia clássica, revela o quanto estes são relevantes para a compreensão da pandemia e orientação das condutas. A rápida disseminação entre populações humanas, em ambiente urbano e cosmopolita, de uma virose provavelmente originária, como tantas, de animais, leva-nos a retomar algumas noções fundantes da sociologia, como as de fato social, totalidade social, consciência coletiva, representações coletivas e sensíveis, simbólico e imaginário, dualidade humana, fato social total, indistinção entre natureza e cultura, entre outras. 

Mesmo que a “natureza” ainda seja percebida, pelo senso comum, como o substrato material ilimitado à disposição das necessidades humanas, fundo comum e universal de que se destacam as culturas particulares, a sociologia, desde o seu início, esforça-se por demonstrar que não é a natureza a origem da sociedade, mas o sistema social que hierarquiza e classifica como natureza a aparência da cultura. Em outras palavras, “natureza” é cultura aparecendo, inscrição no interior do mundo da linguagem fora do qual nada existe, senão como real ainda não simbolizado. Quando o real se impõe de modo inelutável e produz crises sociais, ao exemplo da pandemia de Covid-19, o vírus Sars-Cov-2, até então desconhecido, imediatamente ganha representação e lugar simbólicos.   

As crises ecológicas impulsionam a tomada de consciência, embora efêmera, de que a “natureza” não designa somente a reserva inesgotável para uso e descarte de dejetos, ou o ambiente externo e estranho à cultura e à tecnologia, mas também o interior do mundo social. Apenas submetida aos riscos extremos, gerados por seu modo de produção, consumo, e circulação mundial de pessoas e mercadorias, a sociedade contemporânea percebe o que a sociologia durkheimiana, desde o início, aprendeu com as filosofias aborígene e ameríndia: que não estamos separados da natureza e fazemos parte de uma só humanidade. A teoria sociológica se desenvolve ao abrir-se às formas ditas não ocidentais de pensar o mundo social, bem como aos outros ramos do conhecimento científico. 

Biólogos e infectologistas podem explicar de que modo algumas gripes e epidemias que acometem, periodicamente, populações humanas em âmbito mundial, resultam da produção e consumo de carne em larga escala, do confinamento de grande contingente animal em pequenos espaços, e do consumo ou aproximação, demasiada e inadequada, de animais silvestres. São doenças virais graves, de origem animal e altamente contagiosas entre as populações humanas, que estão associadas ao desmatamento, urbanização, crescimento populacional e globalização econômica. São, inicialmente, zoonoses, doenças animais transmitidas aos humanos pelos vírus que “saltam” de uma espécie à outra. 

Pesquisas científicas indicam que o vírus Hendra, originário de morcegos, foi transmitido de cavalos para pessoas na Austrália; que o Hantavírus e o Lassa, causadores de febre hemorrágica, surgiram de roedores; que o vírus da Febre Amarela teve macacos como reservatório; que o vírus Influeza foi transmitido de pássaros selvagens para aves domésticas e, em seguida, para pessoas (gripe aviária), às vezes depois de uma transformação na passagem pelos porcos (gripe suína). Há, ainda, a hipótese de que o sarampo tenha surgido de ovelhas e cabras, e o HIV-1 de chimpanzés. Em 29 de junho deste ano de 2020, a imprensa internacional noticiou a descoberta de um novo vírus da linhagem do Influenza, de potencial pandêmico, entre trabalhadores de matadouros e da indústria suína na China. 

Mas os morcegos, que abrigam variações do coronavírus, seriam o reservatório privilegiado de uma grande fração de outros vírus transmissores de doenças como Marlburg, Raiva, Ebola, Nipah, Tioman, Melaka, Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave, transmitida pelo Sars-CoV-1) e, muito provavelmente, da Covid-19 (transmitida pelo Sars-CoV-2), mesmo que tenha passado por um outro animal, o pangolim. Os vírus, em particular, não são microrganismos, como as bactérias, porque dependem das células de seres vivos para se replicar, mas sim invólucros de informação genética em constante transformação e que participam, ativamente, do processo de “seleção” e “adaptação” das espécies.  

Em última análise, são as invasões humanas dos territórios onde se concentram espécies animais, e as relações interespecíficas abusivas, a origem das mais importantes epidemias transmitidas pelos “novos” vírus que encontram o organismo humano indefeso, livre de anticorpos. Em contínua evolução, os vírus se mantêm infecciosos, enquanto nós permanecemos suscetíveis. Por isso uma sociologia pós-pandêmica, ainda que seja a mesma velha sociologia, não deveria eximir-se de priorizar a dimensão ecológica, a saúde humana, animal e vegetal, como decorrências das formas culturais de organização, produção e reprodução da vida material. Para tanto, deve ampliar a noção de relações sociais, tão cara a esta disciplina, às relações interespecíficas. 

O descentramento operado pela sociologia durkheimiana que, num primeiro momento, abala o pensamento moderno ao questionar a ideia de consciência e de razão centradas no indivíduo, para substituí-la pela noção sociocêntrica de “consciência coletiva” ou de razão centrada na sociedade, e que, mais tarde, desdobra-se em inconsciente e linguagem, pela via estruturalista e pós-estruturalista, caminha, agora, em direção ao ecocentrismo. Se a sociologia descobriu que “o homem é duplo” e ofereceu à psicanálise lacaniana as ideias elementares para se conceber o Sujeito como a porção coletiva do indivíduo, sendo esta a própria totalidade social inconsciente estruturada como linguagem, está a um passo de afirmar que o Sujeito é, também, a dimensão coletiva que atravessa os indivíduos das outras espécies. 

O que denominamos natureza seria, portanto, o inconsciente em movimento. Embora as outras espécies não falem como nós, é inegável que todos fazemos parte de um sistema comunicativo que a infectologia, entre outras disciplinas, pode comprovar: uma estrutura comum e universalmente válida da atividade inconsciente que a linguística confirma ao descobrir que, apesar da imensa diversidade de línguas humanas, há muito poucas leis fonológicas que valem para todas as línguas. Este lugar de encontro entre o Sujeito e o Outro, entre natureza e cultura, o inconsciente, seria o fundamento da intersubjetividade. É por meio dele que o outro deixa de ser mera projeção imaginária do eu. Deste modo, o inconsciente não é mais considerado o refúgio das particularidades individuais e adquire função simbólica.

Se a estrutura não pertence à consciência, mas ao comportamento, o Sujeito é da ordem do efeito, não da substância. Para a psicanálise pós-estruturalista, até mesmo na observação de comportamentos animais é possível admitir a existência de Sujeitos e de intersubjetividade. Neles se esboça um simbolismo coletivo, ainda que nada indique, é claro, a presença de especulação filosófica. A sociologia permite que se entenda o Sujeito, de forma geral, como aquele dotado de intencionalidade, que ocupa um ponto de vista ou um ponto de vista pressuposto, definido pelo olhar do Outro, e que varia segundo a especificidade dos corpos, afetos, afecções ou capacidades, modos de ser que constituem um habitus. Estes pontos de vista, no entanto, não são fixos, mas transitórios. É possível ocupar o ponto de vista do outro através da personificação, incorporando a natureza própria de outro círculo perspectivo. O Sujeito é, portanto, descentrado, perspectiva relacional. 

Esta nova etapa do descentramento sociológico exige, mais que as anteriores, a intensificação de uma característica própria da ciência, entendida como linguagem universal, que é a capacidade, não apenas de se colocar em dúvida, mas de abrir-se ao diálogo com outras fontes de conhecimento, – tradicionais, modernas, pós-modernas, – preocupadas com a ética e o equilíbrio socioambiental, e com a consideração da subjetividade da “natureza”. A filosofia dos grupos étnicos mais distantes dos grandes centros urbanos permitiu que o pensamento moderno avançasse e se desdobrasse, pondo-se a si mesmo em questão, para tomar consciência de seus limites e dos limites da consciência humana. 

Não é “o homem” que desaparece com as ciências humanas, como um perfil desfeito na areia, mas a humanidade que se expande para além da espécie humana. Quando a humanidade se torna objeto, conceito, põe em crise o seu referente e o supera. Questiona-se o homem branco, adulto, civilizado, para que se verifique sob que condições é possível o próprio conceito de universalidade. A sociologia durkheimiana, ao fazer do “homem” objeto científico, subjetiva todos os outros, pois se toda a vida social pode ser objeto, tudo pode ser sujeito. Não foi por acaso que a linguística, dedicada a investigar a linguagem nos animais, como fez Benveniste, pôde concluir que, também entre as abelhas, é a sociedade a condição da linguagem. 

Uma noção estendida de humanidade, ancorada em diferentes filosofias, subsidiaria a crítica ao especismo e o debate sobre o reconhecimento de animais, plantas, ilhas, rios, montanhas, mares, como sujeitos de direito ao pleno desenvolvimento, independentemente do seu valor afetivo, produtivo ou comercial. Dito de outro modo, o Sars-CoV-2 permite que se recupere o que a sociologia oferece como potência epistemológica desde o seu surgimento, e que foi pouco aproveitado pelo ensino e pela pesquisa sociológica no Brasil. 

Esta velha sociologia pós-pandêmica não deixaria de preconizar a cientificização do debate público para a democratização do conhecimento sobre os problemas socioambientais, assim como o fortalecimento do papel do Estado na educação, elaboração de leis e garantia dos direitos ambientais, – o que não se faria sem que se assegure a independência do campo científico em relação aos interesses eleitorais e econômicos. Apropriando-se da ciência, os grupos diretamente prejudicados pela destruição ambiental defender-se-iam da chamada violência epistemológica – a imposição de interesses políticos e econômicos sobre as coletividades subalternizadas, sob o disfarce de conhecimento especializado inacessível, quando se trata, apenas, de uma linguagem técnica rebuscada para deslegitimar demandas e desqualificar argumentos. 

A sociologia, em diálogo interdisciplinar com outras ciências e formas de conhecimento, pode bem demonstrar, didaticamente, os efeitos nocivos à saúde física e mental da espécie humana, das técnicas de exploração animal que acompanham a exploração do trabalho, e das tradições não problematizadas. A humanidade nunca se realizará plenamente se o preço do crescimento econômico for a desigualdade, o sofrimento de outras espécies e a destruição ambiental, pois o inconsciente, feito de linguagem e natureza, fundo comum a todos e elemento mediador da intersubjetividade, é a condição da constituição subjetiva. 

 

Samira Feldman Marzochi é docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

 

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