Combate à Covid-19 e a falácia da política economicista

Por Jacob Carlos Lima, Felipe Rangel e Aline Suelen Pires

A pandemia do Covid-19 atinge o Brasil num contexto de grave crise econômica e política. Desde o golpe parlamentar de 2016, temos observado o desmonte de políticas e direitos sociais que marcaram a chamada Nova República, cujos princípios foram condensados na constituição de 1988, a “constituição cidadã”, reconhecida exatamente por privilegiar os direitos sociais. O atual governo tem aprofundado esse desmonte, elegendo o trabalho precário como modelo de capitalismo eficiente, favorecendo assim os interesses das elites econômicas em detrimento das condições de vida digna da população.

Já vínhamos experimentando os efeitos da perversidade dos princípios neoliberais que orientaram as recentes mudanças na legislação trabalhista, resumidas, nas palavras do presidente Bolsonaro, na necessidade de “escolha” entre emprego ou direitos. Escolha tão cruel quanto fictícia. Primeiro porque subverte a concepção de “emprego” como associada ao acesso a direitos, em oposição ao trabalho precário e desprotegido. Além disso, para quem precisa trabalhar para sobreviver, resta pouca margem de escolha. Assim, os discursos de empresários reconhecidos no Brasil, viralizados nas redes sociais nos últimos dias, expõem que, no limite, o “dilema” neoliberal representa a escolha entre economia ou vidas humanas, e não parece haver qualquer pudor em se fazer a opção pela primeira.

Nesse contexto de vulnerabilização da população, a pandemia pode atingir a todos, mas certamente de modo desigual. A gravidade da pandemia tem um recorte de classe preciso. Seguir as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), ou seja, permanecer em casa durante o surto da doença, tem se mostrado um privilégio. Com a ausência de proteções sociais, para muitos, não trabalhar significa não conseguir alimentar suas famílias. Situação agravada pelo fechamento necessários das escolas, que ofereciam as principais refeições para crianças e jovens de famílias pobres no Brasil. Para as classes médias e altas, o isolamento social tem uma expressão radicalmente distinta das favelas, onde há famílias que dividem um único cômodo e o saneamento básico e acesso à água limpa é precário, o que dificulta qualquer assepsia.

Grande contingente de entregadores de aplicativos, faxineiras, ambulantes, autônomos e trabalhadores informais em geral precisam continuar se expondo ao risco de contaminação e morte para, paradoxalmente, conseguir sobreviver. Ao fazerem isso, garantem certa comodidade e abastecem aqueles que podem permanecer em quarentena. Essa dinâmica escancara a fragilidade das relações de trabalho no país, caracterizadas pela naturalização da instabilidade e responsabilização de cada trabalhador por garantir suas próprias condições de vida. É a partir dessa rotinização do trabalho inseguro que, por exemplo, a larga informalidade, historicamente existente no país, passou a ser tratada como sinônimo de empreendedorismo. Tal como extensamente pesquisado e discutido pela sociologia do trabalho, a pandemia expõe a debilidade desses “empreendedores”, quando não têm nenhuma outra garantia que não sua própria disposição ao trabalho.

Os discursos do presidente da república e de grandes empresários advogando pelo fim do isolamento na pandemia, visto seus impactos na economia, buscam legitimar a tolerância ao sacrifício de milhares de vidas ressaltando que, para os trabalhadores, a ameaça é o desemprego e a pauperização, caso os empregadores sejam prejudicados. Quando a sobrevivência da população é vinculada apenas ao bom desempenho dos empresários, o fatalismo é inevitável. As pesquisas em ciências humanas e sociais demonstram que o capitalismo sempre se mostrou disposto a sacrificar vidas em benefício da lucratividade. Por isso, historicamente, mostrou-se necessária a criação de proteções sociais que regulassem as relações de compra e venda de trabalho. O mediador por excelência foi (e, tudo indica, precisa continuar sendo) o Estado, atuando para conter arbitrariedades na relação sempre hierárquica entre empregadores e trabalhadores, de modo a garantir condições dignas de vida para as parcelas mais vulneráveis da população

Diferentemente, na lógica dessa (necro)política econômica, que informa os discursos desses empresários, não figura qualquer possibilidade efetiva de garantia social para a população que não a renda resultante da venda de sua força de trabalho. Produz-se assim o cenário em que as vozes que defendem, sem qualquer base científica, o chamado “isolamento vertical” são tanto os empresários que se isolam em suas casas de campo, iates e carreatas em carros de luxo, quanto os “empreendedores” informais, que, se não trabalharem, não comem.

Mesmo para aqueles que podem permanecer em suas casas, assistimos à outra dimensão da intensificação do trabalho. Sem qualquer preparo ou suporte, muitos têm sido obrigados a encontrar meios para trabalhar em home office. A modalidade de trabalho à distância pode funcionar em determinadas situações, para certas atividades, e com determinadas regras e apoios. Mas as pesquisas sobre trabalho digital e em home office evidenciam a intensificação do trabalho, com jornadas ilimitadas, pausas e intervalos suprimidos, acúmulo de funções e tarefas e a tendência de patrões e clientes considerarem que os profissionais estão permanentemente disponíveis. Além disso, há impactos sobre a relação familiar, tendo em vista a necessidade de conciliação da vida doméstica com as novas circunstâncias do trabalho. Como em quase todas as esferas da vida social, também neste caso, as mulheres têm sido particularmente impactadas, ao serem responsabilizadas pelos cuidado da casa e da família – pais e avós idosos e filhos.

Professores, por exemplo, são obrigados a fazer videoaulas, exercendo, além de todas as tarefas didáticas habituais, a preparação de conteúdos próprios para os vídeos, a função de filmar, editar e permanecer online todo o tempo para tirar dúvidas. O setor da educação privada e “governadores-gestores” aproveitam a situação de caos para testar, de maneira forçada, o ensino à distância, com o propósito de reduzir os custos das escolas, cada vez mais vistas como negócios lucrativos, sem qualquer preocupação com a qualidade do ensino. Ou seja, uma saída supostamente emergencial, que, ao final da pandemia, pode resultar em um saldo de maior precarização da educação e do trabalho.

Os trabalhadores que ainda se encontram em situação de maior proteção e formalidade também têm sido bombardeados, nas últimas semanas, com ameaças e informações desconexas relativas à suspensão de contratos e redução de salários, por parte de um governo que administra com base no trending topics do Twitter e pela difusão de fake news. No momento de maior fragilidade e insegurança, os trabalhadores veem sua sobrevivência ameaçada. Para aqueles que estão sob a CLT, a Medida Provisória intitulada “Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”, aproveitando-se do desmonte propiciado pela Reforma Trabalhista, autoriza a redução de salários e jornadas por até três meses, mas um aprofundamento e ampliação dessas medidas não está descartado. O funcionalismo público, que já vinha sendo atacado, segue sob ameaças de cortes, justamente no momento em que é mais demandado em sua atuação junto a sociedade. O mesmo ocorre com a Ciência, também duramente questionada e atacada nos últimos meses, que continua sofrendo perdas em um cenário em que seu papel nunca se mostrou tão fundamental.

Contudo, enquanto empresários e o executivo federal buscam aproveitar a crise para a implementação de políticas ainda mais draconianas, temos também assistido ao fortalecimento de propostas que buscam criar outras formas de garantia de vida digna, via redistribuição de renda e ampliação da seguridade social. Propostas de renda básica de cidadania, taxação de grandes fortunas e discursos de fortalecimento dos serviços públicos são exemplos disso.

Afinal, a crise também é um momento de disputa. Enquanto muitos esperam com apreensão a volta à normalidade, outros nos lembram que essa normalidade era ela mesma injusta e penosa para a maior parte da população. E, sendo assim, a crise aparece como uma possibilidade de transformação social. Mais do que lidar com as questões emergenciais com vistas a recuperar o contexto anterior, trata-se de identificar a possibilidade de construir um futuro alternativo, mais solidário do que a normalidade pré-pandêmica.

A recuperação do papel estratégico do Estado parece ter encontrado um ambiente propício para voltar à agenda, visto a incapacidade do setor privado de responder ao contexto de vulnerabilidade social, dado seu darwinismo inerente. As políticas sociais, o SUS e a ciência desenvolvida nas universidades públicas, vistos anteriormente como custos desnecessários, passam a ser valorizados como únicas saídas para este momento.

A disputa então é pela orientação da ação estatal. Por um lado, Estado e neoliberalismo não são incompatíveis. Pelo contrário, o Estado é um ator fundamental para a implementação das políticas neoliberais, evidenciando os interesses que representa: repasses bilionários aos bancos, por exemplo, não param de ser anunciados desde o início da epidemia no Brasil. Mas esse mesmo Estado também pode ser mobilizado para a garantia de proteção social e acesso a serviços públicos fundamentais, e a crise tem mostrado isso.

Está evidente que sem Estado o capitalismo não funciona, ou só o faz com altíssimo custo em termos de vidas humanas. O mundo tem reconhecido isto. O presidente francês, por exemplo, no auge da crise em seu país, destacou as qualidades do Estado de bem-estar social, reconhecendo o equívoco da aposta no mercado como indexador máximo da política e das relações sociais. Em posição diametralmente oposta, no Brasil de Bolsonaro e asseclas, continua a resistência em consentir que um Estado social é saída para a crise, como se fosse possível tratar uma pandemia apenas como um problema fiscal.

É certo que algumas medidas para atenuar a tragédia têm sido tomadas, embora com atraso. São várias pragas a serem combatidas ao mesmo tempo – fanatismos religiosos frente à Ciência, populismos e autoritarismos irresponsáveis, política econômica letal. E é isso o que está em jogo no contexto atual, em um novo flanco de disputa aberto pela crise. Trata-se de um momento propício para defender um novo padrão de proteção social e o protagonismo do bem-estar da maioria da população, reivindicando sua primazia sobre a garantia dos rendimentos de grandes empresários.

 

Jacob Carlos Lima é docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

Felipe Rangel é pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

Aline Suelen Pires é docente do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar.

 

Iniciativa relacionada

O Podcast Quarentena publicou, no dia 18 de abril de 2020, um episódio com a participação dos professores Jacob Carlos Lima, Aline Suelen Pires e do pós-doutorando Felipe Rangel. Os pesquisadores discutiram alguns dos temas apresentados no texto publicado pelo Boletim Coletividades – Sociologia na Pandemia.
Para ouvir, acesse o link: http://www.labi.ufscar.br/2020/04/18/quarentena-dia-34/